O verdadeiro problema é que Biden arrasta consigo um Partido Democrata que, desde o segundo mandato de Obama, evoluiu numa direção catastrófica e nociva. Artigo do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Também
eu vi o debate entre Trump e Biden. Afinal de contas, quem não se
interessa, mesmo na pequena Lusitânia, pelo que se passa no centro do
Império? Vi-o na SIC, acompanhado regularmente pelos breves comentários
da jornalista da casa, Teresa Dimas: risinhos e piadinhas quando Trump
falava, palavras de admiração (“propostas concretas”, etc.) quando era a
vez de Biden. Enfim, uma jornalista da SIC a fazer o papel de
jornalista da SIC, quer dizer: a fazer o papel de qualquer membro das
várias delegações regionais da CNN ou do New York Times.
Confesso
que não achei o debate tão vertiginosamente mau como, na aparência,
muita gente julgou. Trump foi igual a si mesmo, nas suas qualidades e
defeitos, e Biden, provando que a ciência hoje em dia faz milagres,
esteve alerta a maior parte do tempo, conseguindo mesmo imitar Trump por
uma vez ou outra. Esta minha opinião não foi partilhada por grande
parte dos órgãos de comunicação, que, mesmo defendendo a “vitória” de
Biden, julgaram o debate declaradamente horrível. O que, se alguma
coisa, me leva a concluir que ele terá corrido melhor a Trump do que me
pareceu.
Dito
isto, o debate não foi uma felicidade. O que, atendendo às coisas, não é
difícil de explicar. Os nossos juízos políticos dão-se, pelo menos, em
três planos diferentes. O primeiro é, por assim dizer, quase
inteiramente negativo. Avaliam-se os riscos inerentes às posições em
confronto e decide-se por aqueles que nos parecem menores. O segundo
contém elementos negativos e positivos. Há a tal avaliação dos riscos, e
o juízo que dela decorre, mas essa avaliação é acompanhada de uma
ligação, mais directa ou mais indirecta, à questão do que é bem viver em
sociedade. O terceiro e último plano é aquele que incide primeira e
quase exclusivamente nesta última questão. É o plano de que
tradicionalmente a filosofia se ocupa, desde Platão e Aristóteles, mas
que tem um equivalente na consciência comum, por menos educada que seja.
E, acrescento, a tal consciência comum tem toda a legitimidade para se
pronunciar no capítulo. Em matéria política, não há “especialistas”,
como em física ou em biologia. Todos temos, de forma mais distinta ou de
forma mais confusa, a ideia do que é uma sociedade boa, por mais
“deplorável” (para utilizar uma palavra célebre) que a posição dos
outros nos pareça.
Por
razões sociais e históricas, largamente comuns à sociedade americana e
às sociedades europeias, este último plano tende a eclipsar-se do debate
político, e esse eclipse afecta parcialmente também o segundo plano.
Dito de outra maneira, a interrogação sobre a natureza da sociedade e
sobre a forma que deve adoptar o bem-viver colectivo sobrevive apenas no
discurso político de uma forma fruste e esfarrapada, por mais
artifícios retóricos com que se tente disfarçar este simples e maciço
facto. Guardadas as devidas distâncias, e atendendo às particularidades
locais, o que se passa em Portugal não é grandemente distinto do que se
passa nos Estados Unidos.
O
debate entre Trump e Biden, por razões que transcendem largamente as
idiossincrasias particulares de qualquer um dos dois indivíduos, só é
praticamente susceptível de ser analisado no primeiro plano que
indiquei, com uma eventual e muito superficial comunicação com o
segundo. Ou, se se quiser: a sua avaliação só pode contar com critérios
que incidem sobre a dimensão dos riscos que se correm. Claro que essa
avaliação repousa ainda, em larga medida, sobre aquilo que cada um de
nós julga ser o bom modo de viver em sociedade: a questão permanece, de
direito, a questão primeira. Mas, de facto, o seu modo de existência no
debate político presente é mais fantasmático do que real.
Isto
tudo – e não peço desculpa pelo tempo que gastei a dizê-lo, porque me
parece, com razão ou sem ela, importante – para chegar a uma conclusão
relativamente simples. Ela é, como seria de esperar, essencialmente
negativa. Biden não é, obviamente, um perigoso esquerdista apostado na
destruição da civilização ocidental e arredores. É um velhíssimo
político, nem sequer especialmente antipático (Trump é mais “antipático”
do que ele), notoriamente debilitado tanto física como mentalmente.
Este último aspecto não apresenta uma gravidade plena: há soluções
previstas para os problemas que isso possa criar. O verdadeiro problema é
que Biden arrasta consigo um Partido Democrata que, desde o segundo
mandato de Obama, um homem obviamente inteligente, mas cuja acção
política se revelou nefasta a vários títulos, evoluiu numa direcção
catastrófica e nociva até mais não, prolongando tendências na sociedade
americana desde que a chamada “esquerda académica” ganhou uma grande
importância, desde finais dos anos 80, princípios dos 90.
Alguns
exemplos de crenças partilhadas pela muito representativa ala esquerda
dos democratas, que não deixarão em caso algum de ter consequências
significativas nos Estados Unidos e por esse mundo fora caso Biden seja
eleito: admissão da tese do “racismo sistémico”, uma espécie de
“melaninismo” que ocupa o lugar do defunto marxismo-leninismo, que nunca
teve real significado nos Estados Unidos; desenvolvimento de uma
concepção radical e selvagem do combate às chamadas “alterações
climáticas”; instauração de um clima em que a polícia e as forças da
ordem sejam sistematicamente encaradas de um ponto de vista adversarial;
promoção da cultura do “cancelamento”, que significa nem mais nem menos
do que uma tentativa de obliteração do passado e o impedimento de a
“conversa da humanidade” dialogar com ele e medir reflexivamente as
várias distâncias que dele nos separam; justificação de um
multiculturalismo activo que se encontra muito longe de qualquer
legítimo e desejável convívio com a multiculturalidade que é a condição
natural do alargamento da democracia; crescimento exponencial de uma
intolerância virtuosa que, por todas as razões aqui mencionadas, e por
muitas outras que se poderiam acrescentar, ameaça tomar conta do todo da
sociedade. Como explicava no outro dia, numa entrevista ao Figaro, um
professor americano, Joseph Bottum, todas estas atitudes vêm de pessoas
“que querem estar certas de ser «boas pessoas». Sabem que são boas
pessoas se se opuserem ao racismo. Pensam ser boas pessoas porque se
opõem à destruição do ambiente. Querem ter a boa «atitude», e essa é a
razão pela qual os que não têm a boa atitude são expulsos das
universidades ou do seu trabalho por razões insignificantes. Antes,
era-se excluído da Igreja, hoje é-se excluído da vida pública”.
Face
a isto, face à ameaça da intensificação a níveis nunca vistos de algo
que já ocupa uma boa parte do nosso quotidiano, face a esse maniqueísmo
que generalizadamente tomou conta dos espíritos, não vejo como não
preferir uma posição como a de Trump, que finalmente representa
sobretudo a barreira possível contra a verdadeira loucura que ameaça
tomar conta de tudo. Dir-se-á que é uma razão inteiramente negativa. E
é. Há várias coisas em que se podem dizer coisas abonatórias de Trump
(em matéria de política externa, nomeadamente), mas as razões negativas
são as mais prementes e decisivas. E, como eu encaro a coisa, as
bastantes, pelo menos vendo o mundo a partir da Lusitânia.
LOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário