MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O gêmeo

 



De repente, chega o táxi. Ele me estende a mão ― áspera, trêmula, quente ― e diz até logo. Então eu percebo que aquele homem é o meu irmão que não nasceu. Paulo Briguet, via Brasil Sem Medo, sobre um encontro inesperado no ponto de táxi:


Ligo para o rádio-táxi e fico esperando no ponto, à sombra. Abro as Confissões enquanto o carro não vem. Um homem se aproxima em silêncio. Observo-o rapidamente: barba mal-feita, de vários dias; boné de brinde; camisa puída de mangas longas; mãos de trabalhador braçal. Vem caminhando a passos hesitantes, não sei se de vergonha ou de cachaça, ou ambos. Quando eu começo a achar que o homem já se distancia, ele aparece ao meu lado e diz:

― Tá lendo a Bíblia, irmão?

― Não é a Bíblia, mas o assunto é o mesmo.

― Tá esperando alguém?

― O táxi.

Ao ouvir o nome do meio de transporte, ele consulta os bolsos.

― Sabe o que é, irmão? Tenho que ir para Cambé fazer um serviço, mas faltam dois reais para eu inteirar o dinheiro da passagem.

“Pedintes não costumam ter um repertório variado”, penso com maldade, enquanto consulto a carteira. Antes, fecho o livro na página 33. Tenho uma nota de 5 e uma de 20. Dou a primeira ao homem. Ele levanta as mãos para o céu:

― Glória a Jesus Cristo Nosso Senhor!

Alisa a nota, como quem acabou de receber um tesouro. Senta-se ao meu lado e agradece profusamente. Eu sorrio meio sem graça. Ele faz questão de dizer:

― Tem muita gente que pede só para tomar pinga, mas eu não. Sou trabalhador. Vou pegar um serviço lá em Cambé. Só não tinha o dinheiro da passagem.

Para quebrar o silêncio, pergunto ao homem onde ele nasceu. Ele diz o nome de uma cidade do Norte Velho.

― Eu sou gêmeos ― complementa.

Demoro dois segundos para compreender que não é o signo do zodíaco; o homem tem um irmão gêmeo.

― E ele é parecido com o senhor?

― Nada! Quem vê nem diz que a gente é irmão.

O homem conta que é viúvo e tem duas filhas gêmeas. A esposa morreu no segundo parto – também seriam gêmeos.

De repente, chega o táxi. Ele me estende a mão ― áspera, trêmula, quente ― e diz até logo. Então eu percebo que aquele homem é o meu irmão que não nasceu.

Paulo Briguet é cronista e editor-chefe do BSM.
 
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