O que o barraco do Leblon tem a ver com o deputado Rodrigo Maia, e sua sugestão obscena ao ministro da Economia? Coluna de Guilherme Fiuza para a Gazeta do Povo:
Rodrigo
Maia recomendou a Paulo Guedes que assista “A queda”. É um filme sobre a
derrocada de Adolf Hitler. Esse gesto distinto lembra um telefonema
recebido pelo mesmo Guedes de João Dória, logo após o pedido de demissão
do então ministro Sergio Moro: o governador de São Paulo convidava o
ministro da Economia a abandonar o barco também, em plena pandemia. Com
recados como este para o principal condutor da gestão nacional, o
presidente da Câmara dos Deputados diz trabalhar pela estabilidade
política do país.
Vamos
então recomendar também um filme a Rodrigo Maia. Ele precisa assistir,
urgente, a “O barraco do Leblon”. Nem precisa serviço de streaming ou
assinatura. É só entrar no YouTube e dar de cara com esse clássico da
vida contemporânea. Uma das principais funções da arte é gerar
identificação, e o presidente da Câmara vai se identificar totalmente
com o fenômeno de expressividade egresso da obra.
Segue
a sinopse. Um carro conversível passa lentamente por uma rua nobre do
Rio de Janeiro, e o primeiro impacto é pura engenharia estética: uma
mulher de biquíni à noite. Ela se destaca na parte alta do carro, com
seu corpão impondo-se aos passantes como um outdoor. Em movimento de
sutil sensualidade, a gata se inclina em direção ao condutor do veículo,
exibindo ainda mais seus predicados aos inocentes do Leblon.
De
repente a cena é cortada por um evento bruto. Um objeto invade o quadro
doce, risca a atmosfera romântica e atinge as costas nuas da fêmea
ornamental. É um objeto leve – uma garrafa vazia de plástico – mas
agressão é agressão. Está desfeito o encanto.
A
potranca interrompe os movimentos suaves na sua ribalta móvel,
desembarca bruscamente e marcha aprumada em direção ao agressor, que se
encontra numa das mesinhas de bar distribuídas pela calçada. É uma
agressora. Como se estivesse vestida para matar, e não num sumário
biquíni, a deusa do pecado se transfigura em guerreira impávida e
desfere um golpe certeiro – um tapão, como se diz nas artes marciais de
calçada – na oponente.
Como
uma soldada em missão cumprida, tendo transformado implacavelmente a
agressora em vítima, a dama do biquíni noturno dá meia volta sem perder o
prumo e marcha decidida de volta para o conversível – com a placidez de
quem parece firmemente resolvida a mergulhar de volta no amor, como se
nada tivesse acontecido. Provavelmente nem suou.
O
que o barraco do Leblon tem a ver com o deputado Rodrigo Maia, e sua
sugestão obscena ao ministro da Economia? Nada. O processo de
identificação inerente à arte se dá, no caso, na fase interpretativa.
Sim, essa obra-prima da baixaria chique mobilizou um embate intelectual à
altura daqueles que sobrevinham aos filmes de Godard ou Glauber. E a
crítica especializada achou uma forma de ideologizar o barraco.
Os
éticos da empatia talibã, que estão há seis meses patrulhando biquíni à
luz do dia e dedurando até quem sobe numa bicicleta, estavam prontos
para apontar seus canhões contra a vulgaridade dessa gente
subdesenvolvida e sem classe que afronta as regras de respeito à vida.
Mas a maior tara de um reacionário é parecer que não é. E foi assim que
os patrulheiros da Seita da Terra Parada acharam um jeito esperto de
enaltecer a Afrodite barraqueira contra a agressora “conservadora”. Pode
morrer de rir porque foi exatamente isso que aconteceu.
Os
cúmplices do maior atentado à liberdade coletiva neste século viraram
libertários em um segundo. Bastou uma pirueta retórica, com uma
desinibição que nem uma garota de programa de biquíni num carro
conversível à noite teria. Fica em casa, deputado. E dá uma olhada nesse
clássico de conversão da hipocrisia em posição política. É muito mais
pedagógico que a queda de Hitler.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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