O “novo normal” é conversa de bandido, e apontar exemplos estrangeiros da barbárie é acentuá-la. Uma sociedade civilizada não deixa morrer jovialmente pessoas que teriam cinco, vinte anos pela frente. A crônica semanal de Alberto Gonçalves no Observador:
Estive
para escrever sobre o debate presidencial Trump-Biden, mas julgo que os
americanos são capazes de aguentar uns tempos sem a minha opinião.
Afinal, já contam com inúmeras análises de proveniência lusitana
susceptíveis de os esclarecer devidamente, incluindo as dos prof. Costa
Ribas e as daquele rapaz, que em 2016 lançou um livrinho a antecipar a
presidência de Hillary Clinton.
Também
pensei em escrever sobre a luta do Ministro dos Transportes para manter
a TAP nas mãos dos portugueses. Mas uma simples crónica não seria
agradecimento bastante pelos esforços do fulano, que prometeu dividir
por todos nós os lucros da companhia, no dia, lá para 2860, em que a TAP
os der. Os invejosos, e anti-patriotas, criticam o dinheiro que a TAP
custa aos contribuintes e ignoram o dinheiro que lhes poupa: só esta
semana, a TAP adiou a compra de 15 aviões e poupou 800 milhões. Para a
semana, adia-se a compra de 30 e embolsam-se 1.600.000.000€. De uma
empresa assim vale a pena ser accionista.
Por
fim, quase escrevi sobre o advento da “linguagem inclusiva” às Forças
Armadas. Mas um momento histórico merece celebrações e não textos. Se há
coisa de que a tropa necessita é de moderação na linguagem. Os leigos é
que não sabem das indecências que se passam lá dentro: há documentos
militares que, sob a assinatura, legendam “o requerente”, em lugar de
“o/a requerente/o/a”. E, pelos vistos, há instrutores malformados que
berram: “Porta-te como um homem!”, em lugar de “Porta-te como homem,
mulher, género fluido ou o que te aprouver, se não for incómodo, sim?” E
depois querem ganhar guerras.
Na
verdade, não vou escrever sobre nada. Vou apenas relembrar uma
insignificância, tão insignificante que finta a atenção do público,
tipicamente ocupado com bola, a ninfomaníaca da CP, o distanciamento
social e outras urgências. É o seguinte: em Portugal, nos últimos meses e
nos próximos, morreu e morrerá de morte evitável uma quantidade talvez
inédita de gente. A Inquisição local matou mil e tal criaturas. A Grande
Guerra, umas 10 mil. A Guerra Colonial cerca de 8 mil. De Março a
Agosto de 2020, morreram 4 ou 5 mil portugueses que não deviam ter
morrido. A diferença, face às calamidades anteriores, é que esta
calamidade ainda não terminou, e não se adivinha quando terminará.
Não
falo da Covid. Falo do combate à Covid. Desde Março, a Covid causou 2
mil vítimas, praticamente todas pacientes de doenças graves e com idades
médias equivalentes à esperança de vida (e na maioria abandonadas nos
“lares”). No mesmíssimo período, o combate à Covid matou, convém
insistir, 4 ou 5 mil. Ou seja, 4 ou 5 mil desgraçados foram desta para
melhor porque as “autoridades” optaram, e contra a razoabilidade básica
continuam a optar, por reservar os serviços de saúde para o diagnóstico e
o tratamento dos casos de Covid. No processo, facultativo e deliberado,
mais de um milhão de consultas e cirurgias ficaram adiadas, ou
provavelmente canceladas em situação de falecimento prematuro. As contas
não são complicadas. No final, as contas serão terríveis.
É
claro que se toleraria o erro inicial das “autoridades”, a princípio
confrontadas com uma doença de consequências desconhecidas. Aconteceu
noutras paragens. O problema é que, depois de esclarecido o carácter
comparativamente moderado da Covid e os custos – clínicos, nem me refiro
aos económicos – da histeria, as “autoridades” teimaram no erro e
teimaram na histeria. Aliás, reforçaram a histeria para não admitir o
erro – e para estender a prepotência. Diariamente surgem regras e
comunicados, sempre anedóticos, que visam aumentar o pânico. Agora está
em curso uma campanha da DGS em que “celebridades” caseiras tentam
assustar os jovens com o risco da Covid: “Agora o alvo és tu!”. O alvo
desta sinistra imbecilidade, querem eles dizer. Os jovens não sofrem com
a Covid. O alvo, de facto, são os que sofrem de cancro, do coração ou
acidentes vasculares, e que se vêem entregues ao destino, na medida em
que semelhantes maleitas não possuem o glamour do fascinante
coronavírus. O problema é que isto não é um problema: é, repito, uma
escolha, e nesse sentido um crime.
Não
é um crime oculto. É verdade que a generalidade dos “media”, atafulhada
com os 15 milhões em subsídios, reproduz a propaganda oficial e
massacra o consumidor com a Covid. Porém, até os “media” domesticados lá
informam, nas entrelinhas e nos rodapés, dos adiamentos nos hospitais,
das linhas de atendimento que não atendem, dos mortos em excesso, da
incúria, da negligência e da irresponsabilidade absolutamente grotesca
de tudo isto. Sucede que o português médio não liga. Não liga. Enquanto
ele próprio, ou um familiar, não forem acometidos de um badagaio sério e
votado ao desprezo hospitalar, o português médio continuará a
preocupar-se exclusivamente com a máscara na cara e o álcool-gel nas
mãozitas, todo contente com o seu civismo.
O
civismo do português médio é nulo. O brutal desinteresse que por aí vai
perante a desgraça de tantos concidadãos é uma doença muitíssimo pior
que o vírus da moda. Não são refugiados da Papuásia, que de longe
enfeitam os “telejornais” e as boas consciências. É a senhora por quem
passamos na rua, o homem a quem dizemos bom dia, a senhora que nos
atende na confeitaria. Ou atendia: alguns dos nossos vizinhos estão a
morrer de desleixo e ninguém se importa com tamanha tragédia. Ninguém se
zanga com a cáfila que consente a tragédia. Ninguém liga. Enfim, dizem
que é o “novo normal”. O “novo normal” é conversa de bandido, e apontar
exemplos estrangeiros da barbárie é acentuá-la. Uma sociedade civilizada
não deixa morrer jovialmente pessoas que teriam cinco, vinte, quarenta
anos pela frente.
E
não, não é o comportamento vergonhoso das “autoridades” que alimenta a
indiferença. É a indiferença que permite o comportamento vergonhoso das
“autoridades”. E que permitirá que estas, e os senhores que as
representam, saiam impunes da chacina que, por estupidez e desumanidade,
provocaram. Milhares de mortos. Um crime sem castigo. Um país sem cura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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