A ânsia de em tudo ver manifestações de racismo – a tese do racismo
sistêmico, ou estrutural - conduz, por um processo reativo, a uma
espécie de legitimação espúria dos comportamentos racistas. Artigo do
professor Paulo Tunhas para o Observador:
A sociedade portuguesa é um corpo doente, cada vez mais doente de
maleitas várias, que começa a produzir entusiasmadamente delírios em
grande escala, sendo um dos mais notórios a actual conversa sobre o
racismo. Passo rapidamente sobre a manifestação de uma dúzia de
mascarados em frente à sede da SOS Racismo e a carta em que se ameaçavam
dez pessoas com inusitada cortesia apelidadas de “anti-racistas” e
“anti-fascistas”, e não referidas com os habituais predicados que a
selvajaria usa habitualmente para se dar a conhecer ao mundo. Trata-se
de um puro caso de polícia, um caso grave porque envolve ameaças de
morte, que convém esclarecer o mais depressa possível e que obriga a uma
acção pronta por parte das autoridades, e não me parece, de resto, que a
investigação apresente dificuldades transcendentes. Do ponto de vista
político, ou mesmo sociológico, não vejo como, de momento, lhe atribuir
grande significado. Infelizmente, a selvajaria sempre se encontrou bem
distribuída entre os habitantes do nosso velho planeta e não é agora que
a coisa vai mudar.
O que verdadeiramente interessa, do ponto de vista político e
sociológico, são outras coisas. Em primeiro lugar, o carácter mimético –
e, portanto, num certo sentido artificial – do omnipresente discurso
sobre o racismo em Portugal. Em larga medida, ele entronca nos protestos
americanos provocados pela morte de George Floyd. É como se não
pudéssemos de modo algum ficar para trás, já que tal assinalaria de
forma inequívoca o nosso atraso relativamente ao que de mais mediático o
mundo contemporâneo nos dá. Em segundo lugar, o presente surto de
discurso “anti-racista” (e, concomitantemente, “anti-fascista”) tem uma
origem directa muito óbvia: o progresso significativo, nas sondagens, de
um partido populista de direita como o Chega de André Ventura. É sem
dúvida preciso não ver nada do mundo à nossa volta para não perceber que
é o Chega, com a sua ameaça de superar em votos o Bloco de Esquerda
(para não falar do PCP), que é, para a maior parte dos opinadores, o
verdadeiro e único objecto do discurso “anti-racista”, e é-o pela
simples razão do seu iminente crescimento eleitoral. Tudo o resto, a
começar pela suposta “Nova Ordem de Avis”, ou lá como se chama a coisa
desconhecida, é um disfarce mais ou menos inventivo.
É claro que, nesta matéria, o jornalismo não pode dizer o óbvio. E o
óbvio é que foi António Costa, ao inventar a “geringonça”, dando assim
um poder e um relevo inéditos à extrema-esquerda (PCP e Bloco), que
criou na sociedade todas as condições possíveis e imaginárias para que
surgisse um movimento simétrico de direita radical, segundo a tipologia
que o muito atacado Riccardo Marchi sugere. Dito de outra maneira: não
fosse a projecção social do Bloco, com todos os favores de que goza na
comunicação social, André Ventura nunca teria ultrapassado os limites de
uma influência mínima. O Chega alimenta-se por inteiro do que Costa e o
jornalismo fazem do Bloco e de outras organizações afins. É o antídoto
imaginário para um discurso radical que quase se apresenta sem
contraditório na sociedade, e que uma oposição inerme, errática e
informe nada faz para colocar no seu devido lugar.
Quer isto dizer que a querela do racismo é um puro efeito de
superfície, sem conteúdo substantivo? De modo algum. A questão do
racismo é um problema real em todas as sociedades e Portugal não está
imune a ela, como por milagre. À nossa escala – que é, de resto,
relativamente reduzida -, o racismo declina-se de várias maneiras, e é
sem dúvida necessário estar atento a elas e combatê-las através de
reformas e políticas que se revelem necessárias e exequíveis. O problema
é que, pelo caminho que vamos, com a terrível ideologização de tudo e o
folclore que costumeiramente a acompanha, o caminho que se percorre é
exactamente o inverso: o de uma condução à sua acentuação. Como se, para
estarmos certos da sua eliminação final, tudo fosse feito para o
fomentar.
Há uma história narrada no D. Quixote de Cervantes (págs. 310-347 da
verdadeiramente excelente tradução de Miguel Serras Pereira, D. Quixote,
2015) que, a propósito de outras desventuras, ilustra às mil maravilhas
o que pretendo dizer, se aceitarmos uma analogia parcial. É a história
do “curioso impertinente”, cuja leitura não poderia recomendar mais
entusiasticamente. Relendo-a trinta anos depois da primeira vez, o
maravilhamento foi maior ainda. Nunca como no século XVI e inícios do
século XVII a prosa tanto prolongou a poesia e recebeu desta a sua
particular e enigmática inteligência da verdade.
A história passa-se em Florença. Anselmo e Lotário são os melhores e
mais inseparáveis amigos do mundo. Entretanto, Anselmo conhece Camila,
de uma extraordinária beleza, e casa-se com ela. Tudo corre pelo melhor,
até que Anselmo faz um curioso pedido a Lotário. Quer ter a certeza –
quer ter uma prova indisputável – da absoluta fidelidade de Camila, da
sua capacidade de resistir a todas as tentações, e pede ao amigo que a
tente seduzir. Só com essa prova obtida a sua felicidade poderá ser
perfeita. Lotário explica-lhe longa e eloquentemente que jamais poderá
fazer aquilo que o seu melhor amigo deseja, mas Anselmo não desiste
enquanto o outro não se compromete a fazer o que lhe pede. Todas as
ocasiões são propiciadas por Anselmo para a sedução, mas Lotário,
esperando que a loucura passe, nada faz para conquistar Camila, narrando
no entanto a Anselmo declarações de amor imaginárias a que Camila
responderia com desdém e protestos de amor fiel e verdadeiro por
Anselmo. Bom, Anselmo descobre que Lotário nada fez de facto do
prometido e, na ânsia da certeza absoluta, da prova sem contradição
possível, volta a insistir. Até que, fatalmente, Lotário se apaixona por
Camila, e esta por ele. A partir daí, Lotário continua, nas conversas
com Anselmo, a descrever a esplêndida virtude de Camila, com quem vive
um grande amor, e Anselmo finalmente acredita nele e julga-se na posse
da felicidade maior que almejava: Camila é-lhe inteiramente fiel. “Ao
que busca o impossível, é justo que seja negado o possível”, escreve
Cervantes, e os amigos, quando se vêem, juntam-se “para celebrarem os
dois a mentira e a verdade mais dissimulada que jamais pudera
imaginar-se”. No fim da história, Anselmo acaba por descobrir a verdade e
a impertinência da sua curiosidade, e as três personagens morrem, mas
isso já não interessa para aqui.
Se referi esta passagem do D. Quixote é porque me parece que o grosso
do anti-racismo contemporâneo padece da impertinência do amigo Anselmo.
O delírio é de tipo idêntico. A ânsia de em tudo ver manifestações de
racismo – a tese do racismo sistémico, ou estrutural, reside exactamente
em tal entendimento das coisas – conduz, por um processo reactivo, a
uma espécie de legitimação espúria dos comportamentos racistas, tal como
a busca de uma prova indisputável da fidelidade conjugal leva à perda
do objecto amado. O “anti-racista profissional” não tolera a imperfeição
e a precaridade dos arranjos sociais, privando-se do possível que é
desejável e que pode ser melhorado em nome de um impossível que o faz
alucinar o mal em todo o lado. Como se diz, o que é demais é erro, e o
erro aqui é a produção de um efeito contrário ao desejado.
Durante anos, e apesar de embirrar com a coisa, que tem algo de
patológico, como todas as monomanias, fui pensando que, apesar de tudo, o
“jornalismo de causas” poderia ter, mesmo que em pequena escala, um
efeito positivo sobre os costumes. Inocência minha. Hoje – ao ler, por
exemplo, os artigos da jornalista Joana Gorjão Henriques no Público –
estou convencido que os resultados negativos anulam por inteiro o que
possa haver de salubre na intenção. A metamorfose do delírio de Anselmo,
da sua ideia fixa, numa cruzada contra um racismo omnipresente e
comprometendo o todo da sociedade, o folclore ridículo do “Não
passarão”, ameaça lançar, quanto mais não seja por pura reactividade,
indivíduos pacatos nos braços de quem os prometa salvar da opressão de
uma opinião selvagem e inquisitorial, da qual a falada “monitorização do
discurso de ódio” é apenas a expressão mais soft. Se é por aí que os
nossos professores de costumes querem ir, visando a “descolonização das
mentalidades”, como sugere o antropólogo Miguel Vale de Almeida, convém
avisá-los que estão a ir por muito mau caminho.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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