Sem regras comuns de conduta decente e respeito mútuo, o legítimo e indispensável debate político transforma-se num conflito tribal — em que a força, não a moderação, acabará por ser o árbitro final. Artigo do professor João Carlos Espada, publicado pelo Observador:
Num
dos seus notáveis artigos de domingo no Público, António Barreto
escreveu ontem mais um poderoso argumento contra a radicalização da
nossa vida política e intelectual. No texto intitulado “Ruptura e Cooperação”,
António Barreto recorda que os nossos séculos XIX e XX foram férteis em
conflitos irredutíveis, rupturas com o passado e perseguições mútuas
entre tribalismos rivais. O autor argumenta em seguida, muito
certeiramente em meu entender, que essa preferência pela ruptura está
também na origem da fragilidade das nossas instituições: “Ruptura e
terra queimada: eis as razões para a inexistência ou a fragilidade das
instituições. Aqui estão as causas das mudanças de famílias e de
clientes. De saneamento. De corrupção. De nepotismo. Aqui se encontram
as origens da ‘confiança política’, um dos piores traços da vida pública
portuguesa, que mais não é do que um salvo-conduto para legitimar o
favoritismo, a partidocracia, o nepotismo e a corrupção”.
Diz
ainda António Barreto que as consequências da preferência pela ruptura,
em detrimento da cooperação, são claras e foram experimentadas no
passado: “Guerra política, classe contra classe, ideologia contra
ideologia. […] O centro será assim estilhaçado, dissolvido e desfeito
nas grandes vagas da alternativa radical, sonho dos revolucionários,
desejo dos justicialistas e obsessão dos populistas”.
Curiosamente,
e talvez sintomaticamente, esta mesma tribalização do debate político e
intelectual é o tema do artigo de Anthony O’Hear, intitulado “D’où parles-tu? The Post-truth world”, na mais recente edição da revista Standpoint de Londres. Recordando a obra de Karl Popper — sobre a qual, em 2004, coordenou quatro volumes na Routledge de Londres — O’Hear argumenta que as vagas actuais de tribalismo são produto do relativismo niilista pós-moderno.
Recordando
os argumentos de Nietzsche, Foucault, Derrida, Baudrillard e Lyotard
contra a existência de padrões objectivos de verdade e de decência,
Anthony O’Hear retoma o vigoroso alerta de Popper: o abandono da ideia
de padrões objectivos de verdade e de decência conduzem — estão a
conduzir — à simples gritaria entre denúncias rivais: “Se a verdade é
uma ilusão, tudo o que podemos perguntar é ‘d’où parles-tu?’, em vez de
‘será verdade o que tu dizes?’[…] Se não existe verdade nem justiça para
além das ‘construções’ de cada um para servir os seus próprios
interesses, então nada resta para discutir entre opiniões diferentes
senão perguntar de onde vem cada uma das opiniões, que interesses
servem, que propósitos obscuros visam. […] Isto conduz à divisão do
espaço público entre amigos e inimigos, com todo o potencial para
censura e repressão que são características das sociedades fechadas.”
Anthony O’Hear, que é membro fundador do International Advisory Board do IEP-UCP e assíduo participante no Estoril Political Forum,
recorda em seguida a fundamental distinção de Popper entre verdade
objectiva e conhecimento subjectivo falível da verdade objectiva. Porque
somos falíveis, discordamos sobre diferentes percepções da verdade
objectiva — cuja certeza nos está vedada. Mas, porque acreditamos que
existe verdade objectiva, encetamos civilizadamente um diálogo crítico
sobre as nossas percepções falíveis — e confiamos que podemos aprender
com os erros mutuamente detectados através desse diálogo crítico. É
nesta esperança reformista que se fundam as sociedades abertas e as
democracias liberais.
Estas mesmas preocupações estão no centro do livro de Pedro Rosa Ferro recém-editado entre nós pela Almedina. No centro de Política, Ciência e Consciência
está também a percepção de uma degradação do debate público e uma crise
de confiança na democracia liberal. À semelhança de Anthony O’Hear,
Pedro Ferro coloca o relativismo niilista na origem desta crise: “Uma
das causas da crise da democracia — do cansaço da democracia liberal —
será precisamente o obscurecimento das suas fundações morais. Se a
democracia for percebida apenas como um mecanismo de decisão colectiva —
mero registo de factos empíricos e mecânica eleitoral, sem referências
valorativas —, é natural que as pessoas se voltem, em períodos de
tensão, para alternativas aparentemente mais eficazes.”
A
questão central recordada por Pedro Ferro — sintomaticamente também
central no texto de O’Hear — é que da premissa de que os valores são
arbitrários ou equivalentes não se extrai necessariamente a conclusão de
que devemos respeitar os valores dos outros. Na verdade, a conclusão
mais plausível é que qualquer conclusão é válida — dado que qualquer
conclusão será ainda um valor, e os valores, de acordo com a premissa
niilista, são arbitrários e equivalentes.
Por
esta razão, o cepticismo total da premissa niilista não conduz à defesa
da liberdade e da tolerância. Pelo contrário, abre caminho a uma luta —
sem regras comuns de conduta decente — em que a força, não a moderação,
acabará por ser o árbitro final. Como recordam Pedro Ferro, Anthony
O’Hear e António Barreto, foi este niilismo radical que permitiu o
crescimento do comunismo, do nacional-socialismo e do fascismo no início
do século passado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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