O envenenamento de Alexey Navalnyi constitui um sério desafio não só
para a Alemanha, mas para toda a União Europeia. Não se pode ficar
indiferente a uma sucessão de violações de direitos humanos. Artigo de
José Milhazes para o Observador:
A chanceler alemã Angela Merkel está entre os políticos europeus que
mais diplomacia tem usado para que o diálogo entre a União Europeia e a
Rússia não se torne completamente hostil. Isto faz com que seja
praticamente impossível acreditar que ela não tivesse factos sólidos e
convincentes para afirmar categoricamente que Alexey Navalnyi, um dos
rostos mais conhecidos da oposição a Vladimir Putin, foi envenenado.
“Alexey Navalnyi tornou-se vítima de um ataque com emprego de um agente
químico nervoso do grupo Novitchok. Não há dúvida que esse veneno está
presente nas análises”, declarou ela e pediu esclarecimentos “urgentes” a
Moscovo.
Da capital russa não chegaram esclarecimentos, mas uma enxurrada de
insultos e insinuações que fazem de Merkel a mais terrível “russófoba”.
E, como não podia deixar de ser, os ataques subiram de nível.
Desta vez, não podia faltar Alexandre Lukashenko. O ditador
bielorrusso, que deve a sua sobrevivência política ao Kremlin, não podia
deixar de dar um contributo “essencial” para “desmascarar” as
autoridades alemãs. Num encontro com o primeiro-ministro russo Mikhail
Michustin, Lukashenko revelou: “Devo dizer-lhe que, ontem ou anteontem,
já não me recordo ao certo, antes da intervenção de Merkel, nós
interceptámos uma conversa. Compreendemos que Varsóvia conversa com
Berlim… A nossa espionagem militar radioelectrónica interceptou, porque
nós claro que lutamos contra os membros da NATO na esfera da rádio. E
nós interceptámos uma conversa interessante onde (eu vou dar-lhe para
ler, vamos prepará-la e enviar para o FSB) se afirma claramente que isso
é uma falsificação. Não houve qualquer tipo de envenenamento de
Navalnyi”.
O presidente bielorusso não podia perder a oportunidade para “puxar a
brasa à sua sardinha” e dizer que o “caso Navalnyi” visa “tirar a
vontade a Putin de pôr o nariz nos assuntos da Bielorrússia”.
Os órgãos de informação oficiais russos, principalmente a televisão,
apresentaram a revelação do ditador bielorrusso como uma autêntica bomba
informativa, mas, desta vez, o Kremlin foi mais contido. “Lukashenko
apenas disse isso. Disse que o material seria entregue ao Serviço
Federal de Segurança da Rússia”, comentou Dmitri Peskov, porta-voz de
Putin, que acrescentou também estar à espera de novos dados da parte das
autoridades alemãs.
Também nós ficamos a aguardar o conteúdo da “conversa interessante”,
mas é de ressaltar que ela foi tão interessante que Lukashenko já não se
recorda se foi ontem ou anteontem. Igualmente ficou por saber qual a
razão de ele não se ter antecipado a Merkel e ter prevenido mais uma
“provocação” das autoridades alemães. Uma coisa é certa, o envenenamento
do opositor russo não tirou ao presidente Putin a vontade de “pôr o
nariz nos assuntos da Bielorrússia”.
Nestas situações, o comportamento das autoridades russas é mais do
que previsível, confundindo-se nas explicações e justificações, o que
leva a colocar a questão da responsabilidade directa de Putin em mais um
caso de banditismo político.
Tal como em casos anteriores, o dirigente russo deveria fazer tudo
para esclarecer a situação, exigir a detenção e o julgamento dos
executores e mandantes de crimes políticos, mas tal não sucede:
ex-agentes secretos, jornalistas e opositores russos são assassinados no
país e no estrangeiro, mas o Kremlin nada mais faz além de “sacudir a
água do capote”. E com uma insistência que desperta sérias dúvidas.
Putin pode não estar envolvido directamente neste tipo de crimes, que
podem ter sido realizados pelos serviços secretos à revelia do
presidente ou por organizações criminosas russas, mas, se assim for,
isso será ainda mais grave. Putin, tentando parecer ser senhor absoluto
do país, que resolve uma avaria na canalização de uma velhota no Extremo
Oriente ou a falta de um vestido de baile para uma menina da Sibéria,
não controla forças influentemente perigosas no seu país, bem como o
fabrico e emprego de armas químicas proibidas por numerosos tratados
internacionais. E, se não controla, não se pode excluir a possibilidade
de, um dia, ele poder vir a ser vítima de substâncias como o Novitchok
ou o polónio. A história está cheia de exemplos.
O envenenamento de Alexey Navalnyi constitui igualmente um sério
desafio não só para a Alemanha, mas para toda a União Europeia e para o
mundo. O isolamento da Rússia não interessa a ninguém, tanto mais num
momento em que se alastra uma profunda crise económica mundial, mas
também não se pode ficar indiferente a uma sucessão de violações de
direitos humanos e de tratados internacionais.
Moscovo deu um argumento ideal aos que consideram que Berlim deve
cancelar a construção do gasoduto North Stream-2, que vai ligar
directamente os territórios russo e alemão através das águas do Mar
Báltico. Angela Merkel sempre se bateu pela conclusão do projecto, não
obstante os protestos e pressões dos Estados Unidos e de alguns países
europeus que fazem fronteira com a Rússia. Será que a chanceler irá
ceder desta vez?
Ou será que irá novamente imperar a política de sacrifício dos
direitos humanos perante as vantagens económicas? Não seria a primeira e
última vez. Aliás, o Kremlin tem aqui uma rica experiência.
P.S. Não posso deixar de publicar aqui uns poucos parágrafos de um
texto que poderia ter sido tirado de um qualquer jornal soviético, mas
foi copiado do último número do Avante, órgão oficial do Partido
Comunista Português : «Se vamos enfrentar-nos uns aos outros, sabem o
que acontecerá. Uma guerra civil, no mínimo. Mas não se preocupem, não a
teremos», disse Lukashenko durante um encontro com habitantes da cidade
de Baránavichi. Segundo a mesma fonte, quando o presidente chegou à
cidade, a primeira coisa que fez foi questionar Anatoli Lis, governador
da província de Brest, onde se localiza Baránavichi, sobre o
desenvolvimento da campanha agrícola e a preparação dos centros
educativos tendo em vista o novo ano escolar, que arrancou no começo
deste mês. O governador informou que a província prevê para este ano uma
colheita de 1,6 milhões de toneladas de cereais, incluindo colza e
milho, ao que Lukashenko respondeu que «depois de um verão quente,
literal e metaforicamente, chegou a hora de usar a nossa energia para
fins criativos».
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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