Esse vício em ter seu nome associado à causa do momento, essa obsessão
em se mostrar uma pessoa “do bem” tem algo de tão ridículo quanto um
adolescente trocando de voz. Paulo Polzonoff Jr, via Gazeta do Povo:
No fim de semana, bateu um vento gelado e úmido de nostalgia e, de
repente, me peguei ouvindo Mutantes – a iconoclasta banda que tanto me
fez rir na adolescência. E lembrei, sem vergonha alguma do ridículo, que
meus ouvidos contestadores se deliciavam com versos típicos da época,
como “as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”. Era
impossível ouvir “Panis et Circenses” sem abrir um sorrisinho
presunçoso na cara espinhenta.
Até que bati com o dedinho na quina da cama e me dei conta: a geração
maluquinha dos Mutantes venceu aquilo que chamam de “guerra cultural”.
E, por isso, os contestadores d’antanho sofreram uma rasteira da
história. Hoje em dia as pessoas na sala de jantar não estão mais
ocupadas em nascer e morrer. Elas são ocupadas em garimpar aceitação.
E bota ocupada nisso! Veja os casos recentes da pandemia de
coronavírus e do assassinato de George Floyd. As pessoas na sala de
jantar, antes ocupadas em nascer e morrer (o que era visto como um
pecado imperdoável pelos que pregam o surgimento de um homem superior,
que pense em política o tempo todo), agora comem com o celular na mão,
sem falar umas com as outras, buscando saciar, na multidão de anônimos
ou semianônimos das redes sociais, uma insaciável sensação de
pertencimento.
Por isso é que elas passam os dias dando opinião sobre tudo e
qualquer coisa. Sobre assuntos gigantescos e ultracomplexos, diante dos
quais a opinião delas é insignificante, e sobre assuntos que, há vinte
ou trinta anos, não despertariam muito mais do que um bocejo ou uma
risadinha de canto da boca. Sobre polêmicas reais a respeito das quais
chamais se chegará a qualquer conclusão e sobre polêmicas falsas cuja
relevância no tal “grande esquema das coisas” não vale nem o esforço de
se tirar os olhos da comida, mas que hoje são vistas como uma
oportunidade de existir – e de ser reconhecido como alguém inegavelmente
virtuoso.
É o neoexistencialismo virtual que Sartre nunca ousou propor. Nele, a
ideia de que o homem só existe quando reconhecido pelo outro ganhou
outra dimensão. O neoexistencialismo virtual transformou essa busca pela
sensação de existir, que só se manifestaria no reconhecimento pelo
outro, numa busca pela própria Salvação. E é por isso que as pessoas na
sala de jantar ignoram tanto o nascer quanto o morrer e se concentram
nessa versão bufa do existir. Que, vale a pena repetir, só é possível
com o reconhecimento alheio.
Desse caldeirão macabro é que brotam os exércitos de ativistas de
sofá cuja causa não importa, desde que ela venha recoberta por uma fina
camada de virtude facilmente identificável. Entre o nascer e o morrer,
esses soldadinhos cheios de autoimportância marcham pelo universo
virtual com suas frases feitas e os indefectíveis badges e hashtags.
Eles não querem, de fato, mudar o mundo para melhor. Querem (na verdade,
precisam) que você os reconheça com seres “do bem” a fim de que sintam
que estão vivos, que existem.
Por isso essas pessoas na sala de jantar não tiram mais o olho do
celular ou do computador. E escrevem manifestos recheados de palavras
lindas e endossam isso e repudiam aquilo e ficam indignadas com cem mil
pontos de exclamação!!! De certo modo, elas dão a vida (no sentido de
abdicar deste tempo maravilhoso entre o nascer e o morrer)em troca dessa
deliciosa aceitação, desse gozo de pertencimento, desse existir
extasiante.
Não que elas pretendam se autoimolar como os monges budistas na TV de
tubo da minha infância, claro. Elas tampouco se importam com a
concretização ou não do objetivo. Ontem foi #MeToo, hoje é badge
antifascista no avatar e amanhã é imagem toda preta no Instagram. O
importante é comungar nessa versão perversa do “bem”. E de uma forma bem
explícita (likes, coraçõezinhos, comentários do tipo “é isso, cara!”,
“tamo junto”), para que fique bem claro que as pessoas na sala de
jantar, para além do nascimento e aquém da morte, existiram de fato.
Sartre é filósofo da juventude. E ouvir Mutantes depois de certa
idade pode ser, reconheço, sinal de demência. Coincidência que me leva a
acreditar que essa necessidade patológica de aceitação, esse vício em
ter seu nome associado à causa do momento, essa obsessão em se mostrar
uma pessoa “do bem” tem algo de tão ridículo quanto um adolescente
trocando de voz.
Quero crer que, lá no alto, sobre as nuvens que por ora derramam uma
chuva fraca e fria, há um anjo todo tenso e preocupado com os destinos
da Humanidade sendo consolado por outro anjo, mais experiente, que diz,
ou melhor, profetiza:
— Vai passar. É só uma fase.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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