Misturar política com ciência acabou resultando em adesão precipitada a
conclusões negativas de uma pesquisa condenada por especialistas. Vilma Gryzinski:
“Tem pessoas defendendo a hidroxicloroquina porque gostam de Donald Trump e pessoas se opondo a ela porque não gostam de Donald Trump.”
“Este assunto deveria envolver dados, não opiniões, muito menos política. O mundo enlouqueceu.”
Impossível definição melhor do que a do médico catalão Carlos
Chaccour, em entrevista ao Guardian, o mais tradicional jornal de
esquerda da Inglaterra.
A simpatia ideológica do Guardian é mencionada para ressaltar o
mérito da imparcialidade do jornal ao ser o primeiro a tratar de um
assunto que saiu da medicina e caiu na política, com os péssimos e
previsíveis resultados.
Aparentemente, a questão também pode ter sido manipulada por aproveitadores.
O estudo sobre a hidroxicloroquina que apareceu na revista médica The
Lancet já foi chamado por um jornal indiano de um dos maiores
escândalos científicos do século.
Indiano porque envolve dois autores originários da Índia, o
cardiologista Mandeep Mehra, o diretor de um hospital importante em
Boston, e Sapan Desai, criador de um agora suspeitíssimo site com
informações médicas em tempo real chamado Surgisphere.
Motivo das suspeitas: dois estudos, com dados impossíveis ou
desmentidos, um sobre a hidroxicloroquina, outro sobre um vermífugo
também usado, em base emergencial, para pacientes com Covid-19. Ambos usaram o banco de dados da Surgisphere.
Sobre a hidroxicloroquina, os autores disseram que não apenas não
tinha efeito positivo como aumentava a letalidade, em mais de 20% o que
provocou um impacto enorme, inclusive por causa da politização do
assunto e o desejo de deixar Donald Trump em apuros – com o equivalente
brasileiro, claro.
Os perfis profissionais de pessoas no comando do site Surgisphere
foram criados há apenas dois meses e incluem uma modelo de fotos de
“conteúdo adulto”.
“Muitos pacientes leram a respeito. Milhares estavam fazendo os
testes. Como poderiam continuar?”, disse Chaccour, o médico que já havia
tido suspeitas sobre o estudo com a outra substância, o invermectin,
também baseado num banco de dados improvável.
Em honra da ciência amparada na ética e nas práticas consagradas, o
estudo foi imediatamente repudiado por médicos e pesquisadores,
inclusive contrários ao uso da hidroxicloroquina.
A Organização Mundial de Saúde,
cuja reputação foi arruinada sob o atual diretor, o etíope Tedros
Adhanom, tomou a medida mais precipitada: anunciou imediatamente que
estava suspendendo seu estudo internacional, o mais amplo, sobre a droga
antimalária. Depois, voltou atrás.
Mais um vexame na conta da OMS, que se deixou alegremente enganar pelos chineses no começo da epidemia.
Tudo que foi escrito acima não significa que a medicação funcione ou não no tratamento de infectados pelo novo coronavírus.
Outro estudo recente, de Oxford, defende que é um medicamento inútil para tratar a Covid-19.
Mas é prudente saber como existem elementos e interesses
comprometidos com outras causas que não a seriedade em relação a uma
doença que já matou mais de 400 mil pessoas e derrubou a economia do mundo ocidental.
Os dados utilizados pela Surgisphere são simplesmente furados, como
apontaram os pesquisadores e médicos que os denunciaram de imediato.
“Se achávamos que o nível de confusão sobre a hidroxicloroquina havia
atingido o ápice, estávamos errados”, comentou o jornal francês Le
Figaro.
A França é um dos países onde o assunto é mais controvertido por
causa de um conhecido defensor do remédio para uso na Covid-19, Didier
Raoult, um médico marselhês de cabelo comprido que já foi chamado de
charlatão, entre outros xingamentos.
No começo de abril, Emannuel Macron fez uma visita a Raoult da qual nada transpirou.
O simples fato de que o presidente saiu de Paris, no auge da
epidemia, já foi suficiente para provocar uma enxurrada de especulações.
“O castelo de cartas desabou”, comemorou Raoult sobre o estudo micado da Lancet.
A revista fez o que tinha que fazer e se retratou da publicação repleta de dados falsificados.
Três dos quatro autores também retiraram seus nomes.
Entre outras afirmações, o estudo dizia que tinha sido baseado em
dados de 96 mil pacientes em 12 mil hospitais ao redor do mundo.
Como uma start-up iniciante poderia ter tido acesso a uma base de
dados tão grande e variada, inclusive em hospitais africanos sem as
mínimas condições de conectividade?
Entre as inconsistências: o estudo dizia ter analisado os dados de
600 pacientes e 73 mortos por Covid-19 na Austrália. Na data fornecida,
havia 67 óbitos no país.
Um hospital australiano mencionado informou jamais ter tido contato com o banco de dados.
O cardiologista Mandeep Mehra, o autor principal , pediu verificação dos dados em que tinha se baseado para assinar o estudo.
“Agora ficou claro para que, na minha esperança de contribuir para
essas pesquisas num momento de grande necessidade, não tive o rigor
necessário com a base de dados”, desculpou-se.
Os dominós – ou cartas, como disse o médico francês – foram caindo.
Qual seria o interesse da start-up em se envolver em enganos que, inicialmente, escaparam do rigor da revisão pelos pares?
Sapan Desai, seu criador, é um cirurgião vascular baseado nos Estados Unidos. Sua reputação está destruída.
Além da politização a respeito de um medicamento – absurda, mas
inteiramente de acordo com o atual espírito dos tempos –, existem
interesses geopolíticos gigantescos em tudo o que se refere à pandemia.
A China tem um regime que certamente entende a extensão dos danos à
imagem do país pela forma como manipulou as informações sobre o novo
vírus.
Para recuperá-la, entre outras manobras, está distribuindo ajuda em
máscaras e outros equipamentos – com MADE IN CHINA escrito bem grande –
até via terceirizados.
Na competição pela vacina, que passa por uma uma espécie de
geopolitização, a China pode até pular a fase final de testes de alguma
de suas cinco candidatas e lançar uma novidade em setembro. De vilã
passaria a benfeitora da humanidade.
A Índia, com sua enorme capacidade de produção de remédios, a maior
do mundo em genéricos, aposta na hidroxicloroquina e outros tratamentos
sem patente.
Políticos de todo o mundo podem ter seus destinos atrelados à doença e seus efeitos.
Estudos científicos e seus autores não são absolutamente imunes a
interesses políticos, geopolíticos e financeiros – inclusive no
financiamento de publicações médicas. E de universidades também.
Quem não quer ser enganado tem que ficar esperto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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