Ao contrário do que diz a narrativa que impulsiona os protestos
violentos, os números mostram que casos como o de George Floyd são
exceção, não a regra. Artigo de Rafael Mangual para o City Journal e
traduzido para a Gazeta:
Depois da morte de George Floyd, que estava sob custódia da polícia
de Minneapolis — morte que, pelo vídeo, parece ter sido o caso do uso
excessivo e injustificado da força policial —, arruaceiros botaram fogo
em cidades dos Estados Unidos, destruindo propriedades e atacando os
policiais. Para muitos, esses distúrbios civis são surpreendentes. Não
deveriam ser.
A polícia é alvo de uma campanha venenosa de décadas, campanha essa
que pinta a polícia como uma engrenagem violenta na máquina de um
sistema de justiça criminal racialmente opressor. À medida que mais e
mais pessoas aceitam essa narrativa, ignorando o incrível progresso
alcançado no que diz respeito à tolerância racial, a questão deixa de
ser se os Estados Unidos enfrentarão protestos em larga escala como os
da década de 1960 — quando as acusações de racismo na força policial
faziam sentido — e se torna apenas uma questão de quando.
Muitos dos que apoiam os protestos se dizem frustrados com a atenção
dada a um punhado de agitadores que pregam a violência e os saques —
comportamento, dizem, que distorce a imagem de um movimento
majoritariamente pacífico. A frustração deles é compreensível, mas
também irônica: a narrativa que levou milhares às ruas é, em si, uma
distorção. Assim como a violência que aterroriza o povo norte-americano
não representa os manifestantes pacíficos que estão exercendo seu
direito de expressar seu descontentamento, a violência policial
retratada em vídeos que viralizaram não caracteriza a polícia enquanto
instituição.
Isso não quer dizer que a polícia seja perfeita ou que os policiais
jamais abusem do poder. Eles não são perfeitos e muitos sucumbem ao que
pode ser uma viciante sensação de autoridade. É algo que eu mesmo já
enfrentei. Isso tampouco quer dizer que não haja espaço para se melhorar
a polícia, a fim de tornar a relação entre policiais e cidadãos mais
segura e menos traumática. Mas, para que haja a esperança de se transpor
o abismo representado pelo asfalto cheio de cacos de vidro que separa
os arruaceiros dos policiais, as hipérboles destrutivas precisam ser
reconhecidas pelo que elas são.
Os dados sobre o uso da força revelam o profissionalismo e o
autocontrole dos policiais. Ainda assim, como acontece a respeito de
tantos outros aspectos do debate sobre a reforma da justiça criminal nos
Estados Unidos, o contexto e a nuance são geralmente desprezados em
favor do obscurantismo e da caricaturização.
Pegue, por exemplo, o artigo escrito pela colunista Catherine
Rampell, do Washington Post, no qual ela lamenta: “no ano passado, a
polícia norte-americana matou mais de mil pessoas. Em comparação, na
Inglaterra e no País de Gales menos de cem pessoas morreram em confronto
com a polícia nas últimas duas décadas”. Apesar de os fatos
corresponderem à realidade, a observação ignora as diferenças entre os
países. Os Estados Unidos abrigam quase 330 milhões de pessoas, por
exemplo, enquanto a Inglaterra e o País de Gales têm, somados, uma
população de cerca de 59 milhões de pessoas.
A comparação também ignora as enormes diferenças na criminalidade.
Com base nos dados de 2018, a Inglaterra e o País de Gales têm cerca de
726 homicídios por ano. Compare esse número com os homicídios em quatro
bairros vizinhos no West Side de Chicago (Humboldt Park, Austin, East e
West Garfield Park), que, em 2018, tiveram 121 assassinatos. Isso
equivale a 16% de todos os homicídios na Inglaterra e no País de Gales.
Uma estatística reveladora, levando em conta que a população estimada
nesses bairros é de apenas 189.846 habitantes — aproximadamente 0,3% da
população da Inglaterra e do País de Gales. A taxa de assassinatos
nesses quatro bairros (63,73/100 mil habitantes) é 50 vezes maior do que
a taxa na Inglaterra e no País de Gales (cerca de 1,23/100 mil
habitantes).
Nos distritos policiais do sudoeste e oeste de Baltimore — com uma
população total de 103.052 pessoas — houve 100 homicídios em 2018. Em
outras palavras, uns poucos bairros de duas cidades norte-americanas
respondem por 30% dos homicídios vistos em toda a Inglaterra e País de
Gales — e a população total desses lugares (292.898 habitantes)
representa apenas 0,5% da população da Inglaterra e País de Gales.
Esses números explicam por que os Estados Unidos têm mais conflitos
fatais entre a polícia e os cidadãos do que democracias europeias com as
quais o país costuma ser comparado. A taxa mais alta de uso da força
também deve ser contextualizada à luz da atividade policial como um
todo. Em 2018, estima-se que os policiais tenham disparado suas armas
3.043 vezes, matando 992 pessoas. Sem mais informações, é compreensível
que se possa dizer que esses números sugerem que violência policial é
algo comum. Mas é preciso levar em conta que, no mesmo ano, estima-se
que os 686.665 policiais do país realizaram 10,3 milhões de prisões —
uma fração dos mais de 50 milhões de interações (dados de 2015) entre
policiais e o povo (investigações, blitz, abordagens, etc.).
Como argumentei recentemente na publicação The Federalist Society
Review, mesmo que atribuíssemos cada um dos 3.043 disparos estimados
para policiais diferentes, estaríamos dizendo que, no máximo, 0,4% dos
policiais sacaram e dispararam suas armas em 2018. E, se supuséssemos
que os tiros ocorreram durante uma prisão distinta, estaríamos dizendo
que, no máximo, a polícia usou a força letal em apenas 0,003% das
prisões.
Isso está de acordo com outros dados que mencionei nestes artigos há
dois anos — isto é, um estudo de 2018 publicado pelo Journal of Trauma
and Acute Care Surgery, que analisou mais de 114 mil prisões em três
departamentos de polícia de porte médio, descobriu que mais de 99% das
prisões foram feitas sem o uso da força. Em 98% dos casos em que o
policial teve de usar a força, os suspeitos “não foram feridos ou
tiveram ferimentos leves”.
O contexto histórico também é importante. Em 1971, a polícia de Nova
York fez 810 disparos com armas de fogo, ferindo 221 pessoas e matando
93. Em 1990, esses números caíram para 307, 72 e 39, respectivamente. Em
2016, a polícia fez apenas 72 disparos, ferindo 23 pessoas e matando 9.
Isso é um avanço real que seria visto com espanto por todos os que
observam manifestantes insultando e jogando pedras e coquetéis Molotov
nos policiais cansados e desmoralizados de Nova York.
Por mais problemáticos que sejam casos como o de George Floyd, temos
de lembrar que são casos isolados. Isso não consola nem faz justiça
àqueles feridos ou mortos por policiais que fazem um uso injustificável
da força, tampouco para seus familiares. Mas pode ajudar a diminuir a
temperatura de um ambiente inóspito para o debate saudável.
Basear o debate sobre a melhora da polícia em dados, e não em
hipérboles, pode ajudar a rebater a narrativa tóxica quanto ao
policiamento, narrativa essa que ganhou grande aceitação na sociedade. A
persistência dessa narrativa só levará a mais destruição e anarquia.
Rafael A. Mangual é diretor jurídico do Manhattan Institute for Policy Research e editor do City Journal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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