Os que agem movidos por ressentimento e desejo de vingança corrompem a luta legítima. Bruno Garschagen para a revista Oeste:
O racismo é abjeto, infame. Numa perspectiva social, é pensamento e
ato intoleráveis numa sociedade civilizada. No âmbito político, trata-se
de um tipo de coletivismo que projeta numa pessoa de pele preta um
conjunto de vicissitudes. É triste que ainda haja quem assim pense, quem
assim aja.
Não acredito que alguém nasça racista. É, desgraçadamente, questão de
aprendizado, de treinamento social, que muitas vezes começa em casa.
São comentários explícitos ou velados no seio familiar e nos meios
sociais que moldam uma perspectiva restrita a respeito da identidade de
uma parcela numerosa da sociedade tão somente em função da cor da pele.
Se, no passado, a ciência foi usada para legitimar teses racistas,
que vinculavam determinados comportamentos e tendências à cor da pele, a
características físicas (antropologia criminal de Cesare Lombroso), ao
pertencimento a um povo (judeu), à origem geográfica (o sertanejo
segundo Euclides da Cunha), algo dessas falsas teorias ficou no
imaginário popular e foi sendo passado de geração em geração. Alguns se
perderam na história, outros permaneceram para nos envergonhar.
Quando menciono o problema da perspectiva restrita a respeito de uma
identidade coletiva em função da cor da pele, tenho em mente o seguinte:
se alguém é treinado para ser racista, os exemplos que terá em mente
serão os piores possíveis.
Todas as vezes que ressurge a discussão sobre o racismo contra
pessoas de pele preta só me vêm à mente todos os que admiro. E daí me
pergunto: como alguém pode ser racista, como pode alimentar um racismo
abstrato e coletivista, diante de alguém que não conhece ou perante
nomes célebres como Machado de Assis, Antônio Pereira Rebouças e seus
filhos André e Antônio, Luís Gama, Lima Barreto, Castro Alves,
Pixinguinha, Errol Garner, Miles Davis, Cassius Clay, Ruth de Souza,
Sammy Davis Jr., Bill Cosby, Billie Holiday, Diana Sands, Viola Davis,
Michael Jordan?
Eles e tantos outros gênios são dignos de admiração por aquilo que
eram, fizeram, deixaram como legado não pela cor da pele, elemento
secundário e irrelevante. Se o sucesso que conquistaram puder ser usado
para combater o racismo, melhor escolha não há: o exemplo é força
poderosa de persuasão e incentivo para crianças, jovens, adultos.
Por isso é perturbador quando a luta legítima e necessária contra o
racismo é usurpada por ideólogos e militantes de esquerda, por seus
fantoches e inocentes úteis, em várias partes do mundo. E é ainda mais
chocante quando essa mesma batalha civilizada é usada de maneira abjeta
para cometer ou defender a violência.
Como justificar a destruição de patrimônio privado, de lojas, de
propriedade de pessoas de pele preta ou de locais nos quais elas
trabalham? Nesse período de pandemia, quando a economia está combalida,
atacar o comércio é atacar o trabalho também dos indivíduos de pele
preta que lá trabalham, como mostram os vários lamentos gravados em
vídeos que têm circulado nas redes sociais.
E a forma como as manifestações explodiram mundo afora, com
características e ações similares, incluindo a aparente contraposição
entre manifestação pacífica versus manifestação violenta (uma versão
singular do good cop/bad cop), só induz à impressão de que existe uma
articulação internacional que se aproveita de tantos que vão para as
ruas achando que participam de atos espontâneos.
O uso imoderado de palavras-chave como lugar de fala, genocídio
negro, racismo estrutural, estruturas de poder, dívida histórica,
exclusão não deixa dúvida quanto à natureza ideológica do discurso de
parte dos manifestantes e da opinião de especialistas. Há nisso uma
influência marxista aplicada à cor da pele (em vez da luta de classes, a
luta de raças) que prevalece sobre o tema fundamental: o racismo, que
existe, que tem de ser combatido, mas que jamais será minimizado e
superado por uma ideologia de conflito, de revolução permanente, de
ressentimento, de destruição. O embate como estratégia impede a aliança e
a ajuda mútua para neutralizar o mal. E foi precisamente esse
pensamento revolucionário que orientou (e orienta) o discurso, a ação e a
violência de grupos que convertem uma luta positiva em negativa.
A partir da década de 1960, um movimento que começou nas ruas
percebeu que o mundo acadêmico era uma oportunidade de ouro para fazer a
cabeça dos jovens, conquistar respeitabilidade teórica e formar um
exército intelectual. Deu certo.
Desde então, as universidades norte-americanas começaram a sofrer um
ataque ideológico vil, mas seus representantes acovardaram-se,
deixaram-se acuar e permitiram que as instituições fossem profundamente
modificadas — e não para melhor —, pois não se tratava apenas de agregar
novas disciplinas, mas de extinguir todas aquelas vistas como
eurocêntricas e representantes de “uma visão branca”.
O objetivo supremo da militância de esquerda, que também já se aliava
a alguns movimentos negros, era claro: converter o mundo acadêmico em
instrumento de formação de militantes políticos, em centros de
afrocentrismo e de engenharia social, como mostram, por exemplo, Allan
Bloom em seu The Closing of the American Mind, Roger Kimball em Radicais
nas Universidades e Jonah Goldberg em Fascismo de Esquerda.
Mesmo as principais universidades dos Estados Unidos foram
aparelhadas e nada indica, hoje, que o processo possa ser revertido. Na
terça passada, por exemplo, a Harvard Political Review aproveitou as
manifestações no país para enviar aos assinantes de sua newsletter um
artigo publicado no site no fim de maio (“Remaking Ethnic Studies”) em
que celebrava seu departamento de estudos étnicos e lamentava não haver
em maior número. O texto, escrito por Swathi Kella, estudante da
Universidade Harvard, confirma o problema profundo descrito por Bloom,
Kimball e Goldberg.
No início do artigo, Swathi diz que a disciplina de estudos étnicos
nasceu a partir da “crescente consciência racial que definiu a década de
1960”. Logo em seguida, ela cita o pedagogo socialista Paulo Freire
como autor de “um trabalho inovador chamado Pedagogia do Oprimido”, no
qual ele responsabilizava “as instituições educacionais tradicionais de
doutrinar os alunos nas salas de aula com base em hierarquias de poder”.
Logo Freire, que, em livros como Pedagogia da Autonomia, defendeu a
doutrinação ideológica nas escolas, a politização do ensino, o fim do
capitalismo, enfim, parte da cartilha defendida em disciplinas como a de
estudos étnicos e por professores e estudantes como a autora do texto.
O que vem acontecendo há décadas nas instituições de ensino superior
do Ocidente é o contrário da ideia e missão da universidade defendidas
por intelectuais do calibre do Cardeal Newmann, Otto Maria Carpeaux,
Michael Oakeshott, Kenneth Minogue. E não é só na alteração dos
currículos. Pesquise no YouTube e você encontrará vídeos em várias
partes do mundo de alunos invadindo salas e eventos dentro de
universidades para impedir aulas e palestras, para intimidar e travar o
debate.
As manifestações pela morte de George Floyd não podem ser reduzidas
aos atos de violência, mas devem ser tratadas de acordo com a natureza
ideológica evidente dentro da qual a violência é instrumental, não
acidental. É em nome dessa ideologia que muitos agem, outros seguem e
tantos justificam com frases do tipo “discordo da violência, mas…”. Os
que agem movidos por ressentimento e desejo de vingança, os que veem na
destruição e no roubo uma catarse momentânea para suas frustrações
corrompem a luta legítima dos que denunciam o racismo e destroem as
pontes com todos aqueles que devem ser aliados.
Trata-se de uma escolha ética: uma passeata pacífica chama atenção
para o combate ao racismo e angaria apoio para medidas concretas e
corretas; manifestação violenta provoca reação social e conduz à perda
da legitimidade política. Além disso, políticas públicas que podem ter
efeito positivo e ajudar na resolução do problema social que também
afeta os pretos (mas não só, considerando que a maioria dos pobres é
formada por pardos) são apenas parte de um conjunto de soluções, não o
pagamento de uma dívida histórica.
Se não existir um esforço comum para combater o racismo e a violência
policial contra pessoas de pele preta e se, por outro lado, forem
mantidas a retórica do confronto e as agressões, haverá muitos dispostos
a reagir simetricamente.
Jamais percamos de vista a verdade fundamental: o combate ao racismo
não é — nem deve ser — uma luta ideológica: é — e deve ser — uma luta
civilizacional.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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