Como a inépcia aumenta o custo da pandemia. J. R. Guzzo, em sua coluna para a revista Oeste:
O Brasil está tendo de encarar um plus a mais, em matéria de desgraça
explícita, com a combinação desse vírus mortal que nos atormenta com a
inépcia desvairada por parte dos “gestores” a quem, para infelicidade
geral da nação, o destino entregou a tarefa de administrar a nossa vida
durante estes tempos difíceis. A covid-19 já é um horror mais do que
suficiente para qualquer um. Mas no caso do Brasil o preço a pagar está
sendo o dobro (mais, talvez?) do que poderia ser, pois as
“administrações regionais”, a quem o Supremo Tribunal Federal deu
poderes de AI-5 para decidir tudo sobre a epidemia, mostraram até agora
uma inépcia sem limites para executar a tarefa que lhes foi entregue.
Nada fora do padrão, é claro: o Brasil sofre a doença crônica do “mau
governo” desde o governador-geral Tomé de Souza. Em condições normais
de temperatura e pressão, os brasileiros se acostumaram, bem ou mal, a
conviver com a incompetência sem limites dos governantes; aguenta-se a
roubalheira diária, a produção permanente de dificuldades para quem
trabalha, os impostos pagos e jogados no lixo, a incapacidade de ter
ideias decentes, a estupidez da burocracia e por aí afora. Mas quando
chega um momento como o atual, em que dificuldades fora do comum
exigiriam a presença nos governos de pessoas capazes de fazer alguma
coisa mais inteligente do que se faz na média, o que se vê é a qualidade
miserável, tanto do ponto de vista mental como do ponto de vista
profissional, dos que são pagos para tomar decisões.
A observação mais simples dos fatos mostra que indivíduos que não
conseguiriam cuidar direito nem de um aquário com dois peixes se veem,
por força de um sistema político-eleitoral suicida, à frente de cidades
com milhões de habitantes para administrar — e com os poderes de “tempos
de guerra” que uma decisão aberrante do STF lhes concedeu. Como um
negócio desses poderia dar certo? Não pode e não dá. Ninguém aqui é
louco para dizer que o governo federal, no seu conjunto ou nos seus
detalhes, seria melhor que os 27 governos estaduais e os 5.500 prefeitos
para enfrentar uma calamidade com o calibre da covid-19. O Brasil é o
Brasil, e o nível dos 12 milhões de funcionários que nos governam nos
três níveis da administração é basicamente o mesmo; não há gênios
federais e idiotas municipais. Mas isso não muda em nada o desastre que
está sendo imposto ao país e à sua população pela inépcia dos que mandam
em alguma coisa.
Não há cidadãos que estejam pagando mais caro pela crise do que paulistanos e cariocas
São Paulo e Rio de Janeiro, por serem as maiores e mais populosas
cidades do país, são, inevitavelmente, as que pagam o maior preço pela
baixa qualificação de seus prefeitos para enfrentar uma crise deste
tamanho. Bruno Covas e Marcelo Crivella servem, levando-se em conta a
competência média dos prefeitos brasileiros, para produzir o desastre
controlado das gestões municipais em tempos sem cólera. Mas quando chega
a cólera o resultado de sua presença no leme é isso aí que se está
vendo há três meses. Haverá, com certeza, gente pior que eles. Mas não
há outras duas cidades com 12 milhões e com 6 milhões de habitantes no
Brasil; não há, em consequência, cidadãos que estejam pagando mais caro
pela crise do que paulistanos e cariocas. Nenhum dos dois, para piorar,
recebe a menor colaboração de seus governadores no sentido de fazer
alguma coisa que preste, ou melhor do que estão fazendo.
Covas, por estar na prefeitura da maior cidade do Brasil, é também o
que produz mais prejuízo — mas é óbvio que ele tem feito o possível para
dar sua contribuição pessoal aos ferimentos que São Paulo vem sofrendo
desde o começo da epidemia. Não poderia mesmo ser de outro jeito. Nos
centros mais avançados da medicina e da pesquisa mundial, os cientistas,
com todo o trabalho e os esforços que vêm fazendo, admitem que a
ciência ainda não entende a covid-19. Eles não têm respostas,
simplesmente, para questões fundamentais que todos nós colocamos. Como
pode passar pela cabeça de alguém, então, que Bruno Covas saiba
realmente alguma coisa sobre isso — e que tome decisões diárias a
respeito? Mais: como achar que um secretário da prefeitura, médico ou
não, está capacitado a baixar decretos sobre os deveres das pessoas em
relação à epidemia? E um fiscal ou guarda de rua? Mas cada um deles, do
prefeito ao guarda, se acha o máximo em matéria de coronavírus — tanto
assim que não param de mexer nas coisas.
O prefeito já fez e desfez pelo menos três tipos de rodízio para o
tráfego de veículos na cidade; é óbvio que não sabia o que estava
fazendo em nenhuma das três vezes. Já bloqueou avenidas e mandou
desbloquear. Para dificultar a movimentação das pessoas, em nome do
“distanciamento social”, congestionou gravemente os ônibus e o metrô. Os
números municipais sobre a doença não fazem nexo. Não combinam com os
do Estado nem com os da própria prefeitura; já chegaram a informar que o
número de recuperados é maior que o número de infectados. Covas já
falou em abrir o comércio, no futuro, por “quatro horas” diárias; não
disse quais. Das 6 às 10 da manhã? Das 4 da tarde às 8 da noite? Raro é o
dia em que não faz alguma ameaça nova para uma população que ele não
considera à altura, realmente, de suas expectativas de conduta.
Por que não havia hospitais e leitos de UTI antes da doença?
São Paulo vive há três meses num mundo imaginário, controlado pelo
prefeito, seus analistas de marketing, bajuladores profissionais,
“comunicadores” e médicos que querem estar de bem com quem manda e com
os hospitais da elite. Trabalho, para essa gente, só existe na forma de
“teletrabalho” e de “home office”. Comer é por “delivery”, no
“aplicativo”. Compra-se “on-line”. Atividade física? É só acompanhar
aulas de ginástica e de ioga na televisão — ou pegar sua bike e pedalar
pelas ciclovias da prefeitura com seu capacete último tipo importado a
mil e tantos reais. A única ideia que ocorre nessa bolha é: “Fique em
casa”. Qual é o problema que alguns veem em atender a uma instrução tão
óbvia? Basta seguir o roteiro de vida exposto acima. Não ocorre ao
prefeito que haja entre os 12 milhões de moradores de São Paulo seres
humanos diferentes dele e das pessoas que o cercam — gente que, imaginem
só, não é funcionário público nem vive de renda e precisa trabalhar
todos os dias para ganhar a vida.
Também não passa pela cabeça de ninguém, nessas esferas, internar-se
num hospital público em caso de doença. É por isso, exatamente, que essa
mesma prefeitura de São Paulo, tão fascinada hoje com a “saúde pública”
e a missão de “salvar vidas”, jamais construiu uma rede municipal de
hospitais com o nível de qualidade necessário para enfrentar uma doença
que chama a atenção da mídia. Para doença que só mata pobre, é claro, o
interesse da imprensa e das autoridades locais sempre oscilou entre zero
e menos um; só agora, com a covid chegando perto, descobriram que o
sistema público de saúde pode “entrar em colapso”. Daí os gestores fazem
“hospitais de campanha” que rendem foto na primeira página do jornal e
vídeo no “horário nobre” da televisão — e pagam dezenas de milhões de
reais (sem licitação) para que esses hospitais sejam operados por
organizações privadas. Por que não havia hospitais e leitos de UTI antes
da doença? A população já pagou os impostos para a sua construção e
operação. Mas isso tudo, no mundo das autoridades, é detalhe cansativo —
e, além do mais, conversa de “direita”.
O Brasil é hoje o terceiro país com maior número de mortos pela
covid-19 — mais de 30.000, segundo os “números oficiais” que são
divulgados pelas diversas autoridades da área de saúde. Só as
“autoridades regionais”, e ninguém mais, foram autorizadas a cuidar da
epidemia no Brasil. De quem é, então, a responsabilidade direta por essa
derrota? Não espere uma resposta honesta de seu prefeito ou de seu
governador. A certeza é uma só: ninguém que ocupe qualquer cargo de
responsabilidade em qualquer governo “local” pode dizer que alguma coisa
deu certo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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