Ao dificultar a ação dos Estados e municípios, Bolsonaro comete crime de
responsabilidade. Artigo do professor Bolívar Lamounier, publicado pelo
Estadão:
Para bem compreender o que está acontecendo no Brasil creio ser útil
começar pelo dicionário. Cabo de guerra, por exemplo. O Aurélio ensina
que essa velha expressão designa “um jogo ou competição em que dois
grupos de contendores puxam em direções opostas as pontas de uma corda
grossa, vencendo a que conseguir arrastar a outra”.
Transpondo a ideia do cabo de guerra para o plano da política, logo
percebemos uma grave implicação. Se a capacidade física dos contendores
for aproximadamente igual, o resultado pode ser um prolongado empate.
Ora, o essencial da política pública é a escolha entre alternativas e a
implementação das ações de governo que dela decorre. Vigente o empate no
cabo de guerra, as duas forças se neutralizam e tais ações perdem
eficácia, como temos visto no combate à pandemia do coronavírus. Esse
empate pode tornar nossa situação muito mais perigosa do que a existente
em outros países. A persistir tal empate, nós, cidadãos comuns,
pagaremos o pato.
Em nosso cabo de guerra temos, de um lado, os governadores e
prefeitos fazendo o que podem, com recursos insuficientes e enfrentando a
propagação do coronavírus, um inimigo onipresente e assombrosamente
ágil. Do outro, Jair Bolsonaro, um presidente que não se notabiliza por
elevado senso de responsabilidade, fomentando aglomerações, forçando a
barra para que o desejável relaxamento da quarentena se transforme num
estouro da boiada e, não menos importante, insistindo num remédio, a
cloroquina, cuja eficácia no tratamento da covid-19 não parece superior à
de um licor de jenipapo.
Tem saída isso? Tem, mas para bem compreendê-la precisamos primeiro
esclarecer um aspecto da nossa cultura política, em especial certas
noções referentes ao sistema de governo presidencialista de governo. Não
tendo escoimado de uma vez por todas o ranço caudilhista e populista
que nele se incrustou desde os primórdios da República, temos
inconscientemente sustentado a equivocada noção de que o presidente da
República é a instância última da legitimidade política.
Fato é, no entanto, se formos um pouco além do pensamento
estritamente jurídico, que a legitimidade em última instância não reside
na Presidência da República, e sim no Supremo Tribunal Federal (STF).
Se assim não fosse, como iríamos entender sua função arbitral de última
instância? Sendo ele a cúpula do Judiciário, a ele cabe dirimir todos os
impasses, incluídos aqueles que se constituem no embate entre os outros
dois Poderes, entre os partidos políticos e entre os demais agentes
políticos. A proposição que venho de enunciar não é fruto de
especulação, pois está constitucionalmente especificada em institutos
como a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de
constitucionalidade (Adin) e a ação de descumprimento de preceito
fundamental (ADPF), entre outras.
Voltemos, então, ao cabo de guerra que estamos presenciando no
combate ao coronavírus. Dando prioridade ao princípio federativo e ao
que a Constituição expressamente determina, o STF, atribuiu aos Estados e
municípios a responsabilidade primária pela missão de organizar o
vírus. Não se trata, como é óbvio, de uma atribuição privativa do
município, e sim concorrente com a dos Estados e da União. Essa
determinação do STF implicou uma clara dilatação do papel desses dois
entes federados, que se vem manifestando na aquisição de equipamentos de
proteção, na imposição de restrições ao direito de ir e vir e à
atividade econômica, além, é claro, da função precípua de manter os
sistemas de saúde e funerários. Uma eloquente ilustração da dilatação a
que me refiro é o inusitado empenho que os Estados tiveram de assumir na
importação de equipamentos de proteção para o pessoal médico, tendo
mesmo se deparado com dificuldades bizarras, num momento em que o
comércio internacional parece ter retornado a práticas simplesmente
selvagens.
Não preciso deter-me no destaque dado pela Constituição aos
municípios (CF88VII). Comentando esse ponto, o professor Antônio Sérgio
P. Mercier acertadamente escreve: a cooperação entre o município, o
Estado e a União diz respeito, entre outras finalidades, à “prevenção ou
debelação dos perigos que dizem respeito à saúde da população, como
endemias, epidemias e a possibilidade do aparecimento de moléstias
transmissíveis” (Costa Machado e Anna Cândida da Cunha Ferraz,
organizadores, A Constituição Federal Interpretada, Editora Manole).
O que acabo de expor deve ser suficiente para ilustrar o enorme risco
com que a saúde dos brasileiros se vai deparar enquanto persistir o
cabo de guerra entre o presidente Jair Bolsonaro, puxando uma ponta da
corda, e os Estados e municípios puxando a outra. Do exposto deve-se,
pois, inferir que Jair Bolsonaro, ao dificultar a ação dos Estados e
municípios durante uma emergência gravíssima, reiteradamente comete
crimes de responsabilidade, configurando-se, pois, claramente, a
conveniência da abertura do processo de impeachment.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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