Bernardo Guimarães Ribeiro
Como se diz frequentemente, não há respostas simples para questões complexas. Por isso, talvez esse texto seja maior do que a maioria se disponha a ler. Por outro lado, aos que se dedicarem a avançar, as possíveis explicações ao menos terão o condão de gerar inquietação. E, se isso for feito, terei atingido um dos objetivos.
A primeira premissa que devemos ter bem assentada é a de que a sexualidade de um indivíduo representa apenas uma pequena parte do conjunto de valores que possui – trabalho, estudo, esporte, lazer, amizades, família, propósitos de vida, envolvimento em projetos sociais, religiosidade, tudo são circunstâncias que permeiam sua existência. Ademais, a história de vida de uma pessoa projeta-se sobre suas ações: “Eu sou eu e minha circunstância”, dizia Ortega y Gasset. Clodovil – que era gay – costumava referir-se à sua sexualidade como apenas uma nota de rodapé do livro da sua vida. Ele com certeza sabia o que estava dizendo: a vida tinha inúmeras outras condições mais importantes que a orientação sexual.
Do tempo de Clodovil para hoje, muita coisa mudou. A causa LGBT tornou-se uma pauta política, tendo a sexualidade e suas decorrências sido elevadas a um patamar prioritário no modus vivendi. Deixava de ser mais uma das circunstâncias humanas para ser a única, ao menos para a militância e para os divisionistas que exploram o ressentimento tribalista como mote para declarar guerra ao mundo. Esse turning point alterou a rota da humanidade, inaugurando mais um grupo identitário, a favor do qual todo e qualquer gay deveriam militar, sob pena de banimento do clã. A emergência desse fenômeno tribal, na medida em que condensou um movimento, excluiu dissidentes, sobretudo os gays que teimavam em permanecer com sua nota de rodapé em vez de delegar a faculdade de raciocinar à militância. Em que medida nasce essa dissidência é o que conjecturo a seguir.
Para compreender um pouco melhor, recorro ao método utilizado pelo psicólogo e professor norte-americano Jonathan Haidt[1], que, após muitos experimentos sociais e pesquisas, concluiu que a matriz moral humana se assenta basicamente em seis pilares: cuidado/dano; liberdade/opressão; justiça/trapaça; lealdade/traição; autoridade/subversão; e pureza/degradação. A partir desses alicerces, Haidt avaliou o grau de relevância de cada um em relação às ideologias. Gays ativistas (progressistas) normalmente são conectados de uma forma muito mais robusta com os pilares do cuidado/dano e da liberdade/opressão, ao passo que conferem menor importância aos demais esteios morais, até mesmo se contrapondo a alguns eles, como autoridade e lealdade. No entanto, há uma parcela considerável de homossexuais cujo padrão moral não é tão restrito e condensado, mostrando-se mais equitativo na atribuição de relevância. Haidt explica que a matriz moral conservadora encontra-se mais bem distribuída entre as diversas tipologias, contemplando as seis facetas de uma forma equivalente.
Posta essa premissa, já podemos extrair uma conclusão muito óbvia: uma pessoa que tenha consolidados valores morais das seis vertentes dificilmente será tragada para um grupo identitário. Logo, sua compreensão de mundo tende a ser ampla e menos tribal. Disso decorre que, ainda que se trate de um homossexual, não colocará sua sexualidade em primeiro plano, devendo identificar-se menos com pautas do endogrupo e mais com valores compartilhados com toda a sociedade – em suma, os seis tipos de moral. Um indivíduo assim pode ser patriota e nacionalista (alicerce da lealdade), contrária a qualquer política pública que privilegie minorias (alicerce da justiça), defensora de estruturas sociais rígidas (alicerce da autoridade) e extremamente tradicionalista, religiosa e defensora da família (alicerce da pureza). Por seu turno, indivíduos homossexuais demasiadamente envolvidos com a coesão do seu grupo, tendem a canalizar toda a sua base moral a favor, por exemplo, de agendas inclusivas (alicerce da liberdade). É desse entendimento – e apenas dele – que podemos, sem qualquer dúvida, depreender por que há gays conservadores.
Costuma-se afirmar serem os conservadores preconceituosos. Aceitamos a crítica em certa medida, uma vez que a aversão ao novo não deixa de representar certo preconceito. Por outro lado, não me consta que progressistas o sejam em menor medida. Em inúmeros debates que enfrentei em minha vida, foi com progressistas que tive as piores experiências em termos de preconceito: ser chamado de branco, heterossexual e representante do patriarcado é normalmente a fórmula de censura preferida, um artifício nada democrático eleito como meio de interditar o debate. “Lugar de fala”, dizem eles; eu chamo de “fascismo identitário”, parafraseando o conterrâneo Antônio Risério[2]. Falar sobre preconceito é sempre muito difícil devido ao tabu envolvido, mas o preconceito é apenas defesa e ele se estabelece em quaisquer dos lados de um debate moral.
Avancemos para uma segunda etapa de entendimento a respeito do conservadorismo gay. A terceira onda do feminismo, ocorrida já neste século, trouxe a noção de identidade de gênero para a mesa de debate. Se a primeira onda buscava a igualdade entre os sexos, a segunda tentou desconstruir os papéis sociais de cada sexo. Mas, percebam que, até então, falava-se em sexo. Como explicam Helen Pluckrose e James Lindsay[3], até a segunda onda do feminismo, o movimento preservava as “categorias estáveis”. Com a terceira onda, o caráter de gênero tornou fluidas as acepções estanques de sexo, promovendo uma verdadeira revolução conceitual – a última relação que tomei conhecimento já contava com mais de 80 categorias de gênero catalogadas. Mas o que isso tem a ver com o conservadorismo e os homossexuais?
Homossexualidade é uma condição humana. Ocorre que ela está, assim como a heterossexualidade, assentada em “categorias estáveis” do binômio homem/mulher. Isto é, o gay se vê como homem, assim como a lésbica se entende mulher. Nenhum dos dois nega a sua condição biofisiológica. A fluidez de gênero, por seu turno, destrói essas “categorias estáveis”, introduzindo elementos subjetivos que visam a alterar a realidade objetiva. Assim, mesmo o homossexual pode ter uma postura extremamente cética em relação aos novos arranjos sociais de gênero, justamente por abolirem a própria condição humana binária. Dessa forma, a utilização de banheiros, as disputas em competições esportivas e programas de inclusão para transsexuais constituem cenários de privilégio para certos grupos não extensíveis aos cidadãos em geral que podem contar com a resistência até mesmo dos homossexuais, numa postura nitidamente conservadora por colidir com seus valores.
Isto posto, a genealogia do conservadorismo entre homossexuais parece acomodar-se sobre essas duas conjecturas apresentadas: uma, ligada à matriz de valores morais e uma outra, mais posicional, que percebe com desconfiança e incerteza as tentativas de modificação da realidade objetiva por desejos unicamente pessoais. Seja por uma, seja por outra – moralidade ou ceticismo –, ambas laboram na linha conservadora, o que corrobora, ao cabo, dois postulados bastante esquecidos na atualidade: o de que, antes, somos todos humanos e a única minoria é mesmo o indivíduo.
[1]A Mente Moralista – Por que pessoas boas são segregadas por política e religião
[2]Sobre o Relativismo Pós-moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária
[3]Teorias Cínicas Críticas – Como a Academia e o ativismo tornam raça, gênero e identidade o centro de tudo. E por que isso prejudica todos.
* Este e muitos outro conteúdos conservadores você encontra em https://www.burkeinstituto.com
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