É impossível chegar a um consenso, porque vivemos em um mundo que escolheu abrir mão de algumas premissas básicas para a vida em sociedade, como o reconhecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres (o que não tem nada a ver com a orientação sexual de cada um). Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Com
raras exceções, homens de 18 a 60 anos estão proibidos de deixar a
Ucrânia enquanto durar a guerra, porque precisam ficar disponíveis para
combater o invasor russo. É uma situação comum nas guerras: os homens
podem ser convocados para lutar e, portanto, não podem deixar o país em
busca de segurança. Mulheres e crianças podem.
É
o que está acontecendo na Ucrânia: um mês após o início do conflito, o
número de refugiados já passa de 3,6 milhões, segundo o Acnur, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. A Polônia é o destino
mais frequente, já tendo acolhido mais de 2 milhões de ucranianos. A
imensa maioria desses refugiados é composta por mulheres, idosos e
crianças.
Daí
as imagens, de partir o coração, mostrando pais de família se
despedindo das esposas e filhos que podem deixar o país, bem como as
filas de refugiadas na fronteira – que foram, aliás, objeto de
comentários sem noção de um deputado brasileiro em visita ao país
(comentários que, nas redes sociais e na mídia do ódio do bem, se
tornaram um escândalo maior que a guerra).
Imagens
de despedidas assim também aconteceriam no Brasil, onde o serviço
militar é obrigatório para os homens – que, mesmo quando são
dispensados, se tornam reservistas e podem ser convocados a lutar em
defesa da pátria, na hipótese de uma eventual invasão pelas forças
armadas de um país vizinho. Mulheres e crianças poderiam deixar o país.
Ora,
ao longo da História da civilização, os homens nunca acharam injusto
esse tratamento desigual, ao contrário: sempre foi algo auto-evidente
que a segurança e a proteção de mulheres e crianças vêm na frente. São
os homens que vão para a guerra, e as mulheres nunca reclamaram disso – e
estão certíssimas.
Tenho
a convicção de que nenhum soldado ucraniano no front gostaria que suas
mulheres e filhos estivessem ao seu lado, expostos a tiros e bombardeios
– porque, justamente, defender a pátria, para um soldado, significa,
também, defender sua família.
Pois
bem, leio que a guerra na Ucrânia está confrontando a agenda
identitária das minorias trans, o que lança algumas questões éticas
sobre o tema. Escrevo sem nenhuma ironia e consciente de que qualquer
pessoa que integre uma minoria – qualquer minoria – já sofreu com o
preconceito e passou por situações de intolerância que uma pessoa
“comum” sequer imagina. Isso posto, vamos ao que está acontecendo na
Ucrânia.
A
primeira situação é a de homens trans (mulheres biológicas que se
identificam como homens). Como o registro na carteira de identidade
indica que eles (elas? elus?) são mulheres, essas pessoas estariam
formalmente autorizadas a deixar o país, mesmo tendo optado pela
identidade masculina - e supostamente aceitando os ônus e os bônus de
ser homem.
Ignoro
o número de homens trans na Ucrânia, bem como quantos se valeram da
prerrogativa do sexo biológico para escapar da guerra, ou quantos foram
coerentes com suas escolhas e permaneceram para defender seu país. Mas,
seguramente, contribuiria para a popularidade da bandeira trans se os
homens trans ucranianos ficassem para lutar, já que querem ser
reconhecidos e tratados como homens.
A
segunda situação está gerando mais controvérsia: são as mulheres trans,
homens biológicos que se identificam como mulheres. Nesta semana, li
reportagens como esta e esta, algumas criticando o fato de que o governo ucraniano está proibindo a saída do país dessas pessoas.
Os
guardas da fronteira estariam ordenando que elas (eles? elus?) deem
meia-volta e lutem pelo seu país. Seria uma forma de discriminação,
alega-se. Mas as leis marciais na Ucrânia são claras: homens biológicos
com idade entre 18 e 60 anos devem ficar e lutar. As leis não abrem
exceção para mulheres trans. Para os guardas da fronteira, são apenas
homens tentando fugir do seu dever.
(Mas teve bastante repercussão o caso de uma mulher trans que conseguiu fugir da Ucrânia, Zi Faamelu (foto abaixo), como relata esta reportagem.)
O que dá para concluir daí?
Primeiro,
que a vida real é muito diferente das narrativas das redes sociais e da
grande mídia. Um guarda de fronteira ucraniano, que possivelmente já
perdeu parentes na guerra, pode se sentir indignado ao ver um homem
biológico, ou uma “pessoa com pênis”, querer fugir do país pela simples
motivo de se sentir mulher; mas, nas redes sociais, este guarda seria
seguramente cancelado pelos militantes do ódio do bem que nunca viram
uma guerra de perto.
Segundo,
que o problema aumenta e se torna mais complicado quando as minorias
lutam não pela igualdade de direitos, por tolerância e respeito, mas por
um tratamento diferenciado e compensatório – que também pode ser
interpretado como privilégio.
Ou
bem se luta para que não faça nenhuma diferença pertencer ou não a uma
minoria, ou seja, por uma situação em que ninguém pode ser prejudicado,
nem beneficiado, por pertencer a um determinado grupo, ou a luta será
para trocar de lugar com o opressor e adotar a mesma prática que se
afirma combater, isto é, a de supor que, pelo acaso de ter nascido rico
ou pobre, homem ou mulher, ou pertencendo a tal ou qual etnia, ou ainda,
por escolher ser gay ou hetero, eu tenho direito a vantagens e
benefícios que as outras pessoas não têm.
Quem
está com a razão, o guarda de fronteira ou Zi Faamelu e outros
ucranianos trans que querem deixar o país? Resposta: é impossível chegar
a um consenso, porque vivemos em um mundo que escolheu abrir mão de
algumas premissas básicas para a vida em sociedade, como o
reconhecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres (o que
não tem nada a ver com a orientação sexual de cada um). Isso funciona na
mídia e nas redes sociais. Na realidade dura e crua de uma guerra, não.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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