Ao receber Bolsonaro em Moscou, o presidente russo usa o Brasil em seu complicado jogo contra as potências ocidentais. O plano é mostrar que ele pode ter outros aliados na América Latina para além de Cuba e Venezuela. Duda Teixeira para a Crusoé:
O
presidente brasileiro Jair Bolsonaro tem uma audiência marcada com o
seu homólogo russo, Vladimir Putin, na manhã da próxima quarta-feira,
16, em Moscou. Na sequência, os dois devem almoçar juntos no Kremlin, a
sede do governo. Ansioso para mostrar que não se tornou um pária
mundial, Bolsonaro não titubeou ao aceitar o convite formalizado pelo
governo russo ainda no ano passado. Mas, salvo um ou outro compromisso
vago na área de comércio ou algum tipo de cooperação, não há muito o que
o Brasil possa extrair do encontro. Para Putin, por outro lado, os
benefícios a serem auferidos são múltiplos, especialmente após ele ter
deslocado mais de 100 mil soldados para a fronteira com a Ucrânia e ter
deflagrado uma crise mundial.
A
viagem de Bolsonaro ocorrerá bem em meio à disputa entre os Estados
Unidos e a Rússia por influência no leste europeu. Já no início de
novembro do ano passado, fotos de satélite denunciaram a concentração de tanques e soldados russos perto da fronteira com a Ucrânia,
indicando uma invasão iminente. Oficiais russos então insinuaram que as
manobras ocorriam por causa do incômodo com a expansão da Organização
do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. O convite de Putin a Bolsonaro
chegou no final de novembro, com as cartas abertas e a crise já
deflagrada.
A
recepção ao presidente brasileiro em Moscou será uma forma de os russos
descontarem aquilo que eles perceberam como uma invasão da Otan em sua
própria área de influência, demarcada pelas antigas fronteiras da União
Soviética e de seus antigos aliados. Esse troco já começou, com a viagem
do presidente da Argentina, Alberto Fernández, à Rússia no dia 3 de
fevereiro. Apenas treze dias irão separar os dois encontros dos
governantes latino-americanos. “O Kremlin quer dizer aos americanos que,
assim como eles interferiram com a Otan na área deles, os russos podem
avançar no quintal dos americanos, a América Latina. É esse o principal
simbolismo dessas visitas”, diz a cientista política Regina Smyth, que
dá aulas de autoritarismo na Universidade Indiana e escreveu um livro
sobre o sistema político russo.
Após
o anúncio da viagem de Bolsonaro, os Estados Unidos deram seguidos
sinais de desconforto. O secretário de estado americano, Antony Blinken,
chegou a telefonar para o ministro de Relações Exteriores do Brasil,
Carlos França, para manifestar descontentamento. Blinken aproveitou para
pedir que o Brasil assumisse uma postura mais incisiva contra uma
possível invasão da Ucrânia. A demanda parece não ter surtido efeito.
Até a publicação desta edição, o Itamaraty não havia emitido nenhuma
nota pedindo uma solução diplomática ou algo do tipo. Com a realização
da viagem de Bolsonaro, a chance de isso acontecer fica ainda menor.
“Brasil é Brasil. Rússia é Rússia. Faço um bom relacionamento com o
mundo todo. Assim como se o Joe Biden me convidar, estarei nos EUA com o
maior prazer”, disse o presidente brasileiro.
Está
claro que Bolsonaro deseja enviar um recado aos Estados Unidos de
Biden, ao aceitar se reunir com Putin neste momento. Mas não deixa de
ser inusitado que, ao entrar no jogo russo, ele está pondo o Brasil para
desempenhar um papel relativamente similar ao que exercem Venezuela e
Cuba – países comandados por ditaduras de esquerda, aquelas que ele não
cansa de mencionar em seus discursos, e que há décadas se submetem à
influência russa. Em meados de janeiro, o vice-chanceler da Rússia,
Sergei Ryabkov, chegou a dizer que não descartava enviar tropas e
armamentos para os territórios cubano e venezuelano, caso um acordo não
fosse alcançado na Ucrânia, uma evidente ameaça a Washington. A Rússia
quer que haja um compromisso formal dos Estados Unidos e aliados de que o
seu antigo satélite jamais integrará a Otan. Nenhuma das duas ditaduras
latino-americanos fez qualquer contestação.
Após
a declaração de Ryabkov, um ex-diretor do serviço de inteligência da
Venezuela afirmou que duas bases militares russas já funcionam no país.
No final do ano passado, um general venezuelano disse que instrutores da
companhia privada russa Vega treinavam membros da Guarda Nacional
Bolivariana. Na semana passada, o ministro da Defesa da Colômbia, Diego
Molano, declarou que o Irã e a Rússia estão ajudando na mobilização de
soldados venezuelanos próximos à fronteira com a Colômbia.
Como
o presidente brasileiro e seus filhos costumavam se gabar de ter
evitado que o Brasil se tornasse uma Venezuela sob o governo do PT, a
aproximação com o aliado de Nicolás Maduro é paradoxal. “Essa é uma
contradição evidente, que deve ter sido notada pelo Itamaraty e
comunicada ao presidente”, diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida.
“Mas acho que, no final, prevaleceu o desejo do ministro de Relações
Exteriores, Carlos França, de mostrar que está trabalhando arduamente
para reduzir o isolamento do Brasil.”
A lista de convidados do Kremlin vai além da América Latina, e a parte mais relevante aceitou ir a Moscou para discutir concretamente a crise na Ucrânia.
Apenas neste mês de fevereiro, passaram por lá o primeiro-ministro da
Hungria, Viktor Orbán, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o
presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev. Estão sendo esperados o
primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, e o presidente do
Paquistão, Imran Khan. Putin esteve em Pequim, para encontrar-se com o
ditador chinês Xi Jinping, e pode passar pela Turquia, para um encontro
com presidente Recep Erdogan.
Com
todos esses compromissos, Putin quer se colocar como um líder global
com inúmeras amizades e emplacar a leitura de que tem sido injustamente
espezinhado pelos Estados Unidos e pelos britânicos. Trata-se de uma
forma de tentar enfraquecer a posição americana e da Otan. Para o
público interno, jornais e canais de televisão russos já formataram
aquilo que precisa ser dito, ao mostrar o presidente com tantos
convidados ilustres. “O que os veículos de imprensa têm contado são
histórias de aliados que, heroicamente, têm driblado as pressões do
malvado Departamento de Estado americano para se solidarizar com Putin”,
diz Roman Osadchuk, pesquisador do Laboratório de Pesquisas Forenses
Digitais, do Atlantic Council, em Kiev, capital da Ucrânia. “Nessa
narrativa, o Brasil é mostrado como um aliado da Rússia e o bloco dos
Brics é retratado como uma união poderosa capaz de lutar contra o mundo
unipolar, dominado pelos Estados Unidos”, acrescenta o pesquisador, que
acompanha a propaganda russa nas redes e nos veículos de comunicação.
Na
próxima semana, Putin terá a oportunidade de emitir todos esses sinais,
para seu público interno e para o mundo, mesmo que ele e Bolsonaro
passem a maior parte do tempo falando de bifes, de fertilizantes ou de
possíveis acordos de cooperação nas áreas cultural e acadêmica. Mas o
líder russo pode se dar ainda melhor, caso seu colega brasileiro se
arrisque em declarações improvisadas. “Putin não tem apreço por
governantes sem conhecimento do mundo e que falam de maneira coloquial,
mas ele costuma tirar proveito dessas características. Ele fez isso com o
então presidente dos Estados Unidos Donald Trump e poderá repetir com
Bolsonaro”, diz Regina Smyth, da Universidade Indiana.
Como
presidente, Donald Trump esteve pessoalmente com Vladimir Putin cinco
vezes. Em todas elas, o americano cuidou para que o teor das conversas
não fosse revelado aos demais funcionários do Departamento de Estado ou
ao público. Trump ainda assumiu, sem pestanejar, a versão de Putin de
que a Rússia não interferiu nas eleições americanas de 2016,
contrariando as conclusões das agências de inteligência americanas.
“Putin disse que não foi a Rússia (a culpada). Não vejo qualquer razão
por que seria”, disse Trump em uma entrevista coletiva ao lado do
presidente russo, na Finlândia, em 2018.
Em
janeiro deste ano, Jair Bolsonaro foi indagado por um apoiador se Putin
era conservador – “gente como a gente”, nas palavras do militante. A
resposta do presidente foi a de que o russo “é conservador, sim”. A se
considerar o significado do termo apenas na área comportamental, seu
emprego foi correto. Putin reprime gays, é contra o aborto, defende a
família e aliou-se com a Igreja Ortodoxa para perpetuar-se no poder.
Contudo, ao ignorar completamente a parceria russa com Venezuela e Cuba e
seu forte componente ideológico, Bolsonaro demonstra que está
relativizando as características de seu anfitrião. É um mau presságio. E
no momento errado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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