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A maioria dos ucranianos não concorda com a afirmação de Putin de que russos e ucranianos são "um único povo". Apenas 28% dos entrevistados responderam afirmativamente a essa ideia. Diogo Schelp para a Gazeta do Povo:
A
guerra deflagrada na última semana na Ucrânia por obra do presidente
russo Vladimir Putin transformou os internacionalistas — estudiosos das
relações internacionais e de economia global — em figuras onipresentes
no noticiário brasileiro. Quase 24 horas por dia desde quinta-feira
(24), esses especialistas comentam e analisam as estratégias militares,
as razões para o conflito e os cálculos geopolíticos dos principais
líderes envolvidos. A questão central que se colocou é se Putin tinha
motivos para invadir a Ucrânia, como forma de se defender do avanço da
Otan (aliança militar ocidental), ou se os europeus e os americanos é
que estão certos em pintar Putin como um governante com planos
imperialistas e expansionistas. Mas quase ninguém dedicou um pouco mais
de tempo para responder à pergunta que realmente importa: o que querem
os ucranianos?
As
análises que predominaram nos últimos dias ignoram esse ponto. Tratam o
conflito como se os civis ucranianos fossem vítimas passivas, sem
vontade própria, sem capacidade de tomar o destino do país em suas mãos.
Como se fossem meros joguetes dos políticos que dão as cartas, de
potências ocidentais que querem levar suas armas até os portões da
Rússia, em provocação ao ocupante do Kremlin, ou de corruptos locais
mancomunados com líderes europeus ou russos.
Essas
análises tratam das origens do conflito como se a única coisa que
importasse fossem os cálculos políticos e estratégicos de figuras como
Putin, Joe Biden, Xi Jinping, governantes europeus, etc.
Como
se a tentativa da Ucrânia de aderir à Otan fosse uma veleidade de um
comediante-presidente (Volodymyr Zelensky) ou o resultado da pressão dos
Estados Unidos e da Europa, em um caro erro estratégico.
Sim,
é verdade que a maioria dos analistas reforça a imoralidade e
ilegalidade da agressão militar russa à Ucrânia. Mas mesmo quando o
fazem, realçam os aspectos geopolíticos que estão em jogo, o desejo de
Putin de recuperar sua esfera de influência no Leste Europeu e os planos
da China de substituição da atual ordem pós-Guerra Fria por uma nova
ordem multipolar — em que o modelo de democracia ocidental é relegado a
potências em declínio e em que regimes ditatoriais sejam aceitos como
legítimos.
Os
analistas, porém, raramente encaram a pergunta do que querem os
ucranianos e ignoram o quanto isso também ajudou definir o conflito.
A
resposta é que os ucranianos, em sua maioria, estão há anos se
afastando da Rússia e almejando uma aproximação com a Europa Ocidental.
Eles não negam seus vínculos culturais, linguísticos e históricos com a
Rússia, mas vêm consolidando, desde que se tornaram um Estado
independente, em 1991, uma identidade nacional forte — e cada vez mais
associada ao sentimento de pertencimento europeu.
Em
2013, quando o presidente ucraniano Viktor Yanukóvytch, uma marionete
de Putin, decidiu jogar no lixo um acordo de livre comércio de seu país
com a União Europeia, os ucranianos tomaram a Praça Maidan, na capital
Kiev, aos milhares, gritando: "Nós somos Europa."
A
repressão que se seguiu foi brutal, com centenas de mortes, e durou
meses, ao final dos quais Yanukóvytch botou o rabo entre as pernas e
fugiu na calada da noite para Moscou.
Putin,
então, invadiu e anexou a Península da Crimeia e deu início à guerra
separatista no leste da Ucrânia. Esses atos de violação da soberania do
país apenas exacerbaram o desejo dos ucranianos de se distanciar da
Rússia e de se aproximar do Ocidente.
É
o que mostram claramente as pesquisas de opinião ucranianas. Em
novembro de 2013, mesmo em meio à repressão ao movimento da Praça
Maidan, apenas 10% dos ucranianos diziam ter uma atitude negativa em
relação à Rússia. Em maio de 2014, após a invasão da Crimeia, esse
índice havia aumentado para 34%.
Em
fevereiro do ano passado, a proporção de ucranianos que tinham uma
visão ruim ou péssima da Rússia chegou a 42%. Os dados são do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev. Não seria nem preciso dizer que, se a pesquisa fosse feita hoje, esse índice estaria na estratosfera.
Nos
últimos dias, vimos alguns petistas e bolsonaristas unindo-se no
argumento de que Putin invadiu a Ucrânia como uma reação à ameaça dos
planos da Otan de expandir-se para países da sua antiga esfera de
influência. Trata-se de uma tentativa de justificar os atos de Putin que
ignora a vontade do povo ucraniano.
Ora,
as pesquisas de opinião mostram que foram as próprias intervenções de
Putin na Ucrânia, seja de cunho militar, seja na tentativa de manipular a
política local, que empurraram os ucranianos para a Otan, em busca de
uma proteção contra o agressor ao leste.
Em
maio de 2014 (pouco depois da invasão da Crimeia, portanto), 31% dos
ucranianos concordavam com a ideia de que seu país se tornasse membro da
Otan. Em janeiro de 2021, essa proporção já havia aumentado para 56%.
Ou seja, a maioria absoluta da população ucraniana desejava proteger-se
da Rússia sob o escudo da aliança militar liderada pelos Estados Unidos.
A
alta mais acentuada nesse índice se deu a partir de 2019, coincidindo
com um ano em que Volodymyr Zelensky foi eleito com esmagadores 73% dos
votos. Foi uma eleição marcada pela tentativa fracassada da Rússia de
interferir no resultado em favor de candidatos pró-Putin.
Zelensky
não é, ou pelo menos não era antes de a guerra começar, um presidente
popular. A aprovação do seu governo não chegava a um terço dos
ucranianos. Ainda assim, segundo as últimas pesquisas de intenção de
voto, ele venceria todos os cenários para uma disputa à reeleição. Os
ucranianos não viam melhor opção. A sua legitimidade como representante
dos ucranianos, portanto, independente de todos os erros que ele possa
ter cometido ou está cometendo, é inegável.
E
quanto ao apoio que Putin diz ter na Ucrânia, principalmente da
população minoritária que se identifica como russa? É bem menor do que
ele afirma.
Segundo
o último censo disponível, os russos étnicos representam quase 18% da
população da Ucrânia. Apesar disso, em uma pesquisa divulgada na semana
passada pela CNN americana, apenas 13% dos ucranianos consideram
justificável que a Rússia empregue a força para evitar que a Ucrânia
entre para a Otan.
Ou
seja, uma invasão russa não tem o apoio total nem mesmo entre a minoria
ucraniana que se identifica como russa — e que, segundo afirmou
falsamente Putin, precisa ser protegida pois estaria sofrendo
"genocídio".
A
maioria dos ucranianos também não concorda com a afirmação de Putin de
que russos e ucranianos são "um único povo". Apenas 28% dos
entrevistados responderam afirmativamente a essa ideia.
E
tem mais: o expansionismo territorial de Putin não tem o apoio da
maioria dos ucranianos nem mesmo nas regiões com alta concentração de
russos étnicos. Na região separatista do Donbas, apenas 18% dos
entrevistados concordam com a anexação da Ucrânia pela Rússia. No sul da
Ucrânia, o que inclui a Península da Crimeia, a proporção é de 16%. Na
média nacional, essa ideia é apoiada por apenas 9% dos entrevistados,
segundo a pesquisa encomendada pela CNN.
Esses
números, somados à crescente atitude negativa dos ucranianos em relação
à Rússia nos últimos anos, ajudam a entender a potencial disposição da
população de resistir à invasão em curso.
Segundo
uma pesquisa feita há duas semanas pelo Instituto Internacional de
Sociologia de Kiev, 37,3% dos adultos ucranianos disseram estar
dispostos a pegar em armas contra os invasores. No levantamento
anterior, em dezembro, 33,3% diziam estar dispostos a fazer parte de uma
resistência armada.
O
instituto também perguntou sobre a intenção dos ucranianos de fazer
resistência civil (protestos, boicote, sabotagem, greves e desobediência
às ordens do invasor). Nesse caso, a adesão seria de 25% dos
entrevistados, um aumento de 3 pontos percentuais em relação a dezembro.
No
total, somando os que se dizem dispostos a resistir a uma invasão russa
de um jeito ou de outro, com ou sem armas, conclui-se que 57,5% dos
ucranianos pretendem agir para proteger seu país.
Isso
pode não ser o bastante para definir o desfecho dessa guerra. Mas serve
para fazer um alerta: aqueles que analisam o conflito na Ucrânia, com
suas causas e desdobramentos, apenas olhando para o que acontece nos
gabinetes governamentais e nas salas de diplomatas, erram redondamente.
O
que Putin está fazendo é uma violação flagrante da vontade da maioria
do povo ucraniano e não há justificativa para os seus crimes.
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