As democracias liberais têm perdido o seu fulgor e recebido fortes ataques da esquerda e da direita mais radicais que, não por acaso, fazem a defesa da unidade em detrimento do pluralismo. Patrícia Fernandes para o Observador:
Talvez
seja impossível pensar o século XX sem reconhecer o contributo do
pensador alemão Ernst Jünger, que viveu durante quase todo o século (n.
1895 – m. 1998) e vivenciou, como poucos, o espírito do tempo. O seu
pensamento foi especialmente marcado pela participação na maior de todas
as guerras, de que resultou a escrita de A guerra como experiência
interior:
“Foi a guerra que fez dos homens e dos tempos aquilo que são. (…) Eis o que não podemos negar, ainda que alguns o quisessem: o combate, pai de todas as coisas, é também o nosso pai. Foi ele que nos martelou, cinzelou e temperou, para fazer de nós o que somos. E enquanto a roda da vida vibrar em nós, esta guerra será sempre o eixo em torno do qual ela gira.”
Este
ensaio, publicado em 1922, foi antecedido pela publicação do livro que o
lançou para a fama – Tempestades de Aço – e as duas obras foram tomadas
como referência pela geração de jovens que sobreviveu às trincheiras.
Nas suas páginas, encontramos uma aproximação à experiência da guerra e o
seu impacto na natureza humana, de acordo com um atavismo que o faz
afirmar: “As coisas não se passarão de outra maneira, enquanto existirem
homens.”
No
posfácio ao ensaio, António Carlos Carvalho destaca a controvérsia do
argumento, “[s]obretudo nessa época, anos de 1920, com o seu ‘horror a
tudo o que seja poder e virilidade’, um tempo cujos ‘novos deuses’ são a
massa e o igualitarismo”. E a paz, acrescentaríamos nós no século XXI.
Em sentido contrário, Jünger recupera o espírito do pré-socrático Heraclito
e a sua valorização do combate e da disputa: “É necessário saber que a
guerra é comum e que a justiça é discórdia e que tudo acontece mediante
discórdia e necessidade.”
No
campo de batalha cósmico, a natureza e a vida do homem resultariam da
ação e reação de substâncias contrárias, numa dinâmica que garante a
mudança e o reequilíbrio permanente. Como afirmam os autores de Os Filósofos Pré-Socráticos,
“Heraclito mostra que, se a discórdia viesse a cessar, então o vencedor
de cada competição entre extremos estabeleceria um domínio permanente, e
o mundo como tal seria destruído.” Esta seria a essência do mundo, com
claras implicações no domínio político.
Na
verdade, podemos pensar a história das ideias políticas a partir do
posicionamento de cada autor perante a ideia de conflito: alguns
aceitaram e valorizaram o conflito, a discórdia, o combate; outros
entenderam a disputa como fonte dos problemas sociais e propuseram
modelos políticos que permitissem eliminá-la. Os exemplos habituais
deste segundo grupo passam pela cidade una que Platão apresenta em República; a vontade geral do espírito comunitário que Rousseau propõe em O Contrato Social;
ou o pensamento marxista, que visava a supressão do conflito que
decorre da divisão da sociedade em classes. Estes são os clássicos
inimigos da sociedade aberta, na formulação de Karl Popper.
Em Al-Qaeda e o significado de ser moderno,
o filósofo inglês John Gray acrescenta o positivismo de Saint-Simon e
Auguste Comte àquela lista, considerando a sua influência sobre o
próprio marxismo:
“O
catecismo positivista tinha três dogmas principais. Primeiro, a
história é conduzida pelo poder da ciência; o conhecimento crescente e
as novas tecnologias são os determinantes fundamentais das mudanças na
sociedade humana. Segundo, a ciência permitirá que a escassez natural
seja vencida; uma vez conseguido isso, os dois males imemoriais da
pobreza e da guerra serão banidos para sempre. Terceiro, o progresso da
ciência e o progresso da ética e da política andam de mãos dadas; à
medida que o conhecimento científico avança e se torna mais
sistematicamente organizado, os valores humanos convergirão cada vez
mais.”
De
acordo com Gray, o significado de ser moderno consiste precisamente na
crença de que o conhecimento científico tornará os países mais
semelhantes e pacíficos, eliminando o conflito e criando um novo mundo e
uma nova humanidade.
Mas
o que resulta de qualquer uma destas propostas filosóficas é que a sua
tentativa de superar os conflitos redunda, necessariamente, num estado
totalitário: na verdade, a eliminação do conflito implica uma previsão e
intervenção permanentes por parte do poder estatal ou uma afirmação
absoluta do espírito comunitário. A esta luz, conflito e discórdia
surgem como condição de liberdade.
Estamos, então, condenados à disputa e à guerra se queremos liberdade?
Voltemos
à história das ideias políticas: aí também podemos encontrar autores
que, reconhecendo a naturalidade e a virtude do conflito, propõem outros
modos de lidar com ele. Se, como diz Gray, os conflitos não podem ser
ultrapassados, podem ser “moderados” – e esta talvez tenha sido a
principal conquista civilizacional da modernidade. Na linha da tradição
democrática e republicana, que vai de Péricles a Cícero, e da herança
liberal de John Locke, Montesquieu e James Madison, o sistema de
democracia liberal foi amadurecendo de forma a garantir que os conflitos
inerentes à vida em sociedade pudessem ser moderados ou dissolvidos em
instituições de modo pacífico. É este o espírito que está presente no
mito da paz perpétua que devemos a Immanuel Kant.
De
facto, e com todos os seus defeitos, as democracias liberais são um
garante de pacificismo: não no sentido de querer eliminar a discórdia e o
conflito e, com eles, a liberdade, mas no sentido de querer encontrar
soluções não violentas para moderar essa discórdia e esse conflito (seja
internamente pela discussão parlamentar; seja externamente pela
diplomacia). O problema é que as democracias liberais têm perdido o seu
fulgor e recebido fortes ataques da esquerda e da direita mais radicais –
que, não por acaso, fazem a defesa da unidade e do consenso, em
detrimento do pluralismo e do dissenso. Têm-se tornado, por isso, presas
frágeis daqueles regimes para os quais a lição de Heraclito ainda é a
principal lição: “A guerra é a origem de todas as coisas e de todas ela é
soberana, e a uns ela apresenta-os como deuses, a outros, como homens;
de uns ela faz escravos, de outros, homens livres.”
Resta
saber se a promessa pacifista da democracia liberal não nos tornou
incapazes de lutar pelas nossas sociedades, pelos nossos projetos
coletivos, pelos nossos países, pelas nossas liberdades.
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