Exerci por 22 anos a magistratura e tomei muitos depoimentos. Minha impressão sempre foi a de que faz bem ao investigado dizer a verdade se for inocente e a de que ele age melhor se fica em silêncio quando é culpado. Artigo do ex-ministro Sergio Moro, publicado pela Crusoé:
O
grande interesse sobre a CPI da Covid instaurada no Senado Federal e a
ampla atenção dada aos depoimentos reavivaram, entre nós, os debates
sobre o direito ao silêncio. É um direito muito conhecido, mas um pouco
controverso: por qual motivo, afinal, deve existir um direito ao
silêncio? Ele também contempla um direito à mentira? O investigado pode,
além de calar-se, mentir?
Esse
espaço na Crusoé não é destinado a grandes teses jurídicas, mas,
abusando da paciência do leitor, resolvi, sem apelar para o juridiquês,
tratar do assunto de modo a torná-lo interessante e compreensível.
A
origem do direito ao silêncio tem um pé na religião. Um comentário de
São João Crisóstomo, do século IV, sobre uma carta de São Paulo aos
hebreus é usualmente apontado como fonte originária do direito ao
silêncio. No comentário, os cristãos são instados a revelar seus
pecados, via confissão, perante Deus. O mandamento gerou o argumento de
que, se a pessoa deve revelar suas faltas a Deus, não deveria ser
obrigada a confessá-las em público ou às autoridades.
A
alegação evoluiu para repudiar que as pessoas fossem colocadas em um
cruel dilema moral diante das autoridades: confessar seus crimes e assim
condenar o seu corpo – lembrando que, historicamente, as penas no
processo penal eram usualmente morte ou açoites – ou mentir sobre os
seus crimes e assim condenar a sua alma, não devendo aqui ser esquecido
que se jurava perante Deus ou a Bíblia e as convicções religiosas à
época eram muito mais fortes do que no presente. Então, passou-se a
entender que o investigado não deveria ser obrigado a depor no processo
sob juramento. Não era bem um direito ao silêncio, pois ele precisava
falar para se defender, já que a presença dos advogados nos julgamentos
penais não era comum antes do século XIX.
Em
um desdobramento histórico no sentido contrário, o direito ao silêncio
foi anulado na Europa Continental entre os séculos XIII e XVIII, quando
foi admitida a utilização da tortura ou dos tormentos para obter
confissões involuntárias. Já no Direito anglo-saxão, a prerrogativa
seguiu preservada, pois não se admitia tortura nas Cortes da Common Law.
Surgiram casos célebres de investigados que invocaram e exerceram o
direito ao silêncio, como Thomas Morus e John Lilburne. Com o tempo,
essa garantia passou a ser associada à liberdade religiosa e de
consciência, inclusive de criticar o governo e as autoridades, já que o
processo penal era utilizado não raramente para buscar conformidade
religiosa e punir o dissenso político. Provavelmente, essa é a principal
razão da força ainda atual do direito ao silêncio em nossas
consciências, ou seja, a sua vinculação a essas liberdades fundamentais.
Com
o progressivo repúdio à tortura e a sua abolição, o direito de
manter-se silente ressurgiu com força na Europa continental, até como
uma reação aos excessos anteriores. Mas foi ainda o direito anglo-saxão o
seu local de maior força, tendo ele sido incorporado na Constituição
norte-americana como um dos direitos fundamentais ainda em 1791. A
título comparativo, nos textos constitucionais brasileiros ele só surgiu
em 1988.
Mais
recentemente, à prerrogativa de ficar calado passaram a ser até mesmo
agregadas advertências ao investigado de que ele pode exercê-la sem
sofrer consequências em razão disso. São as famosas advertências de
Miranda criadas pela Suprema Corte norte-americana no precedente Miranda
vs. Arizona, de 1966, e que se espalharam pelo mundo e se popularizaram
pelos filmes policiais norte-americanos.
Mas
é também no Direito anglo-saxão que o direito ao silêncio é tratado de
uma forma diferente do que foi utilizado em alguns outros países, como
no Brasil. Entende-se que esse benefício permite que o investigado se
cale no processo penal. Ele não é obrigado a falar e do silêncio não se
pode inferir a sua culpa. Mas se ele resolver depor, sob juramento, ele
responde pelo crime de perjúrio quando mentir. Afinal, é uma escolha
dele falar e, se ele optou por depor, renunciou ao direito ao silêncio e
aos privilégios que o acompanham.
Alguns
estudiosos alegam que a possibilidade de o investigado depor sob
juramento surgiu de uma reivindicação dos próprios advogados de defesa
que entendiam que os jurados faziam uma inevitável comparação negativa
entre o depoimento do investigado, já na condição de acusado, que não
prestava o juramento de dizer a verdade, e o depoimento das testemunhas,
muitas vezes a vítima, sempre sob juramento. Atendida a reivindicação,
com o bônus veio o ônus.
No
Brasil, a Constituição de 1988 e a lei processual penal preveem o
direito ao silêncio para o investigado. No Código Penal, há previsão do
crime de perjúrio, mas ele só abrange o depoimento falso da testemunha
ou do perito. Não contempla o investigado. Isso não significa que há um
direito de mentir, mas apenas que a mentira do investigado não é punida
como crime. Alguns podem achar a diferença muito sutil, mas não se trata
da mesma coisa.
Exerci
por 22 anos a magistratura e tomei muitos depoimentos. Minha impressão
sempre foi a de que faz bem ao investigado dizer a verdade se for
inocente e a de que ele age melhor se fica em silêncio quando é culpado.
A mentira nunca é uma conduta digna, ainda que o investigado possa ter
motivações fortes para faltar com a verdade. É também uma sabedoria
prática dos advogados de defesa de que o investigado deve calar-se caso,
sendo culpado, não tenha um bom álibi. Afinal, se ele for surpreendido
na mentira, perde a credibilidade.
Embora eventuais mentiras contadas em uma audiência pública por pessoas investigadas possam trazer revolta aos espectadores, não há o que fazer a esse respeito, pois a lei brasileira não pune a mentira de quem é investigado. Para a testemunha é diferente. Mas, se a testemunha estiver na condição real de investigada, ela terá o mesmo direito. Não deixo, porém, de observar que muitos talvez fizessem melhor se simplesmente ficassem em silêncio, exercendo dignamente o direito de tão longa tradição. Lembramos de Thomas Morus e de John Lilburne de uma forma muito positiva, mas não há recordação favorável de pessoas que mentiram sob juramento. Não é sem motivo o ditado conhecido de que o silêncio vale ouro
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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