A sociedade que renuncia à liberdade em troca de uma segurança temporária perde ambas. Victor Cezarini e Raphael Werner para o Instituto Mises:
O livro O Caminho da Servidão, do economista austríaco Friedrich Hayek, publicado no ano de 1944, é considerado pelo crítico literário e biógrafo britânico Martin Seymour-Smith como um dos cem livros que mais influenciaram a humanidade em todos os tempos.
De fato, o livro é de uma sensatez impressionante e de uma reflexão imensurável. Alguns capítulos — como Por que os piores chegam ao poder?, Quem, a Quem? e O Fim da Verdade — poderiam, por si sós, estarem entre os escritos mais importantes dos últimos duzentos anos.
No
entanto, é o capítulo Segurança e Liberdade que merece nossa atenção
especial, pois parece ter sido escrito tendo em mente a atual sociedade
brasileira, na qual muitos cidadãos possuem como meta de vida a
estabilidade de emprego e de renda, ou mesmo se agarram a sofismas como
"direito adquirido", "reajustes obrigatórios" ou "adicional por tempo de
serviço".
E não, não se trata apenas do funcionalismo público. Mesmo na iniciativa privada encontramos esta mentalidade.
A estabilidade de alguns poucos vem à custa da liberdade de todo o resto
Não
é desarrazoado dizer que todos nós gostaríamos de ter estabilidade
econômica, isto é, uma renda periódica que nos garantisse uma qualidade
de vida adequada com a qual já estamos acostumados, de forma que
pudéssemos pagar por alimentação, moradia, saúde e outras quesitos sem
se preocupar em dar satisfação ao chefe, sem ter de trabalhar
incansavelmente todos os dias e sem ter de ficar preocupado sem saber se
seremos demitidos ou não.
A
pergunta que se faz, então, é: seria possível uma sociedade em que
todos os cidadãos tenham essa tão sonhada estabilidade econômica?
É
totalmente desejável um indivíduo se esforçar para buscar a segurança
econômica limitada, isto é, trabalhar, empreender e poupar durante um
determinado período de tempo até acumular um patrimônio que lhe permita
ter razoável previsibilidade de que poderá viver até o resto de sua vida
sem trabalhar ou, pelo menos, sem trabalhar o tanto que você trabalhou
até formar esse determinado patrimônio.
Logicamente,
essa segurança econômica será limitada: se você viver mais do que
previa ou se seu patrimônio não for bem administrado, todos os seus
recursos poderão se exaurir e você, novamente, terá de trabalhar para
sobreviver, sob insegurança e incerteza.
Já
a estabilidade econômica ilimitada não pode ser obtida por meio do
trabalho, empreendedorismo e poupança. Sempre haverá o risco de você
perder seu patrimônio acumulado se ele não for bem administrado,
independentemente do valor.
Por
outro lado, a atual sociedade brasileira é acostumada a conceder
segurança econômica ilimitada a determinados servidores públicos, como
juízes, promotores, procuradores, auditores fiscais, militares,
professores, profissionais da saúde e outros.
A
concessão dessa segurança ilimitada é feita por meio de lei, isto é,
utiliza-se da força ou ameaça da força sobre outras pessoas para que
esses servidores públicos tenham sua estabilidade garantida.
O salário dos servidores públicos é pago por meio da arrecadação de impostos,
isto é, retira-se o dinheiro produzido pelos demais membros da
sociedade com o objetivo de garantir renda estável a esses servidores.
Contudo, a renda desses outros membros da sociedade não é estável.
Por
exemplo, não é possível acertar com precisão quais serão a receita e
lucros futuros obtidos por um restaurante. Isso dependerá de se os
clientes continuarão gostando da comida servida, dependerá do preço da
carne, do arroz e de diversos outros fatores. Portanto, o valor pago de
impostos por um restaurante ao estado será variável e incerto e o mesmo é
válido para todas as outras empresas, independentemente do setor.
Desta
forma, apesar de a despesa com a folha de pagamento do poder público
garantir a estabilidade de salário e emprego a determinados servidores, a
receita obtida pelo poder público sempre será instável.
Se houver frustração de receita, o estado terá de emitir dívida (afetando o custo do crédito por meio do aumento da taxa de juros), imprimir dinheiro (gerando inflação de preços), aumentar impostos (afetando a economia) ou atrasar outros pagamentos para garantir a estabilidade a esses servidores.
Todas
essas ações geram instabilidade para quem trabalha no setor privado,
que terá de rever suas estratégias de negócio, reduzir o endividamento,
rever projeções de venda e custos, dentre outras providências.
Portanto,
a estabilidade dos trabalhadores do setor público só pode ser obtida
por meio do aumento da instabilidade dos trabalhadores do setor privado.
Tentar estabilidade de renda no setor privado também é deletério
Entretanto,
a lei brasileira não se limita a impor segurança ilimitada para
determinados grupos de servidores públicos; ela também tenta impor
segurança limitada para trabalhadores da iniciativa privada.
A legislação trabalhista, por meio do seguro-desemprego, FGTS, multa sobre o saldo do FGTS, salário-família e outros programas sociais,
tem como objetivo garantir que o trabalhador tenha uma renda mínima
caso perca seu emprego, ou seja, trata-se da concessão, por meio da lei,
de certa segurança limitada.
O
fato de uma pessoa ter grande redução de seus rendimentos de uma hora
para outra certamente causa amarga frustração, desestabiliza a família e
ofende o senso comum de justiça. Dessa forma, a reivindicação das
pessoas assim prejudicadas, de que o estado intervenha a seu favor,
ganha amplo apoio popular e simpatia. No Brasil, isso se reflete nos
programas sociais citados no parágrafo anterior.
Contudo,
se, por um lado, queremos estabilidade de renda e emprego, por outro
lado, somos totalmente dinâmicos e instáveis no que tange ao nosso
comportamento como consumidores. Queremos sempre o melhor e mais barato
produto ou serviço. Se em um supermercado a carne está R$70/kilo e no
outro R$50/kilo, da mesma qualidade, não hesitamos em comprar no
segundo. Sempre quando um novo produto melhor e mais barato surge,
abandonamos o velho, sem dó, nem remorso.
É
estranho o fato de as pessoas agirem com complacência e compaixão
quando algum amigo perde o emprego, sem perceber que provavelmente foi a
mudança no seu padrão de consumo que levou à demissão de seu amigo.
A
estabilidade no consumo é evidentemente impossível. Somos seres ativos e
dinâmicos, estamos sempre querendo melhorar a nossa qualidade de vida
ou, pelo menos, não piorar. Sempre iremos agir de forma a escolher um
produto ou serviço que satisfaça as nossas necessidades e custe o menor
valor possível. Quando uma nova empresa entra no mercado, oferecendo
produtos mais baratos e de melhor qualidade, a empresa ultrapassada
sofre prejuízos e tem de demitir seus trabalhadores.
Mesmo
dentro de uma empresa lucrativa, se o trabalhador não obtém sucesso ao
servir ao consumidor, ele poderá ser demitido. Quem o demite, em última
instância, não é o seu chefe, mas sim os consumidores, que, votando por meio de cada real gasto, julgaram que aquele determinado trabalhador não é apto para a função.
Portanto, dado que não existe estabilidade no consumo, é impossível garantir estabilidade na renda e no emprego.
Quando
essa estabilidade é concedida a alguns privilegiados, todos os demais
sofrem o prejuízo de sua consequência, isto é, sofrem mais instabilidade
no emprego, menor renda e menos disponibilidade de produtos e serviços
para consumo.
O exemplo brasileiro evidencia a afirmação acima. Ainda antes da pandemia, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) divulgada em março de 2020,
a força de trabalho no Brasil era de 100 milhões de pessoas. Tínhamos
no setor privado aproximadamente 33,6 milhões de pessoas com carteira
assinada e 38 milhões de trabalhadores informais. Estes incluem desde os
trabalhadores sem carteira assinada (11,6 milhões) até trabalhadores
por conta própria (24,5 milhões).
Os
grupos acima, quando somados à força de trabalho desocupada no mesmo
período, equivalente a 12,3 milhões de desempregados, significam 84
milhões de brasileiros que lutam no dia a dia para procurar ou manter
seus empregos e sua renda (veja todos os números aqui).
Já os trabalhadores do setor público, quando somadas as diferentes esferas de governo, civis e militares, são aproximadamente 11,4 milhões.
Ou
seja, de 100 milhões de pessoas, 12 milhões são servidores públicos, ou
seja, possuem segurança ilimitada; 33 milhões são trabalhadores com
carteira assinada, ou seja, possuem segurança limitada imposta pela lei;
e os demais 55 milhões de brasileiros não possuem nenhuma segurança
garantida pela lei, sendo que destes, 12,3 milhões estavam desempregados
e 27 milhões recebiam abaixo de um salário mínimo. A estabilidade
concedida a determinados grupos privilegiados levou grande parte da
população brasileira ao desemprego ou subemprego.
A
tentativa de impor segurança a determinados grupos por meio da lei tem
como consequência inevitável aumentar a insegurança das pessoas que não
foram contempladas pela legislação.
Liberdade e estabilidade são antagônicas
É
impossível que uma sociedade garanta a estabilidade econômica para
todos os seus cidadãos, pois isso significaria o fim da liberdade de
escolha de consumo e de profissão.
Uma
sociedade que tenta impor a estabilidade econômica, de renda e emprego,
a todos os seus cidadãos só terá três possíveis destinos:
1)
controle total de todas as decisões de todos os indivíduos pelo estado —
ou seja, as pessoas não poderão escolher livremente o que consumir,
qual profissão seguir, quanto poupar, em qual atividade investir e nem
em qual região morar;
2)
a informalização completa e um funcionamento à margem da lei — isto é,
empresas irão atuar sem pagar impostos, sem seguir as regras
determinadas pelo governo, funcionando sempre na clandestinidade, ou
3) uma mistura parcial entre 1 e 2.
Não tem como escapar destes cenários.
Não
há dúvidas de que a legislação brasileira, ao tentar impor por meio da
lei a segurança ilimitada a determinados servidores e a segurança
limitada a determinados trabalhadores, fez com que o nosso país seguisse
o terceiro destino.
A presciência de Hayek
Hayek já havia vislumbrado tudo isso. Em seu capítulo, ele afirma:
Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. […]Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações.Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da "estabilização" dos salários de determinadas categorias, pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.Quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança para alguns, tanto maior se torna a insegurança de todos; maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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