O escritor angustiado, o perfeccionista ultrapassado por Saramago e Lobo Antunes, o incorrigível boémio, libertino e sedutor. Ao fim de três anos, Bruno Vieira Amaral lança "Integrado Marginal", a monumental biografia do escritor português. Entrevista a Joana Stichini Vilela, do Observador:
Já
na reta final, o autor Bruno Vieira Amaral pensou desistir. Trabalhava
na biografia do escritor José Cardoso Pires há quase três anos. “Integrado Marginal” acabaria com 550 pesquisadíssimas páginas.
E naquele momento, por causa de um erro informático, acabava de perder
cerca de um quinto do texto final. “Devo ter tido uma quebra de tensão.
Quase chorei”, conta. O percalço acabou por servir de empurrão. Percebeu
que seria apenas “uma boa desculpa” para não acabar um livro que tinha
medo de não conseguir acabar. E mergulhou de cabeça.
Numa
esplanada vazia da zona pombalina do Barreiro, cidade onde mora, Vieira
Amaral explica como a relação com Cardoso Pires se tornou tão obsessiva
que chegou a entrar-lhe pelos sonhos. A hora é a do Portugal-Hungria
para o Euro 2020 (mas em 2021), e só o grasnar das gaivotas interrompe
os relatos futebolísticos em fundo. Copo de tinto e maço de L&M
azuis em cima da mesa, o romancista, cronista e agora também biógrafo de
43 anos avança que, depois de abordado pela Contraponto para fazer uma
biografia, foi ele quem propôs o nome do desalinhado que não queria
ficar na História por ser boémio nem por escrever bem, mas por ter
criado livros importantes.
Conhecido
também por andar à pera e sobretudo por três títulos – O Delfim, A
Balada da Praia dos Cães (ambos adaptados ao cinema) e De Profundis –
Valsa Lenta (depois da recuperação milagrosa de um AVC) – o lisboeta
revela-se em Integrado Marginal o escritor angustiado e perfeccionista, o
resistente que abandona o PCP depois do 25 de Abril e o sedutor
libertino. Se no início de tudo isto, Vieira Amaral tinha uma relação
casual com Cardoso Pires, hoje acredita que nunca vai conseguir
livrar-se dele: “Às vezes enquanto escrevo dou por mim a pensar, ‘Será
que ele ia gostar disto?’, ‘Será que ia achar que está bom?’”
A ideia que tinha de José Cardoso Pires mudou muito depois destes três anos de convivência?
Quando
se convive três anos com um escritor, através de documentos e conversas
com pessoas que o conheceram de forma íntima, fica-se com um
conhecimento muito profundo. Tinha algumas ideias que corresponderão à
imagem que perdura no nosso imaginário, do escritor boémio, de produção
lenta e que publicou pouco, mas ao fim deste período percebi que, como
todas as imagens superficiais, esta só contava parte da história. Por
exemplo, ele não bebia durante os períodos em que estava a escrever. Era
um escritor angustiado. Um pessimista com algumas tendências
depressivas até. Isso surpreendeu-me. Não correspondia de todo à imagem
quase vital que ele projetava e pela qual era conhecido.
Pelo
que se lê na biografia, um descontentamento permanente, um
perfeccionismo quase paralisante. Um homem conhecido por ser brigão e
que parece ao mesmo tempo tão inseguro. De onde vinha, na sua opinião,
essa angústia?
Como
em todos os escritores, há um misto de arrogância e de insegurança.
“Será que isto é mesmo bom?” “Será que vai perdurar?” Poucos meses antes
de lançar O Delfim, ele diz ao [escritor] José Gomes Ferreira que tem
medo de aparecer com um livro fraco. Ao mesmo tempo, tenho a certeza de
que soube que O Delfim era um livro diferente, que era “o” livro que ele
ainda não tinha sido capaz de escrever.
O
Delfim sai em 1968. Neste livro conta um episódio em que, muitos anos
depois, já é Cardoso Pires um escritor consagrado, e pede ao editor,
Nelson de Matos, para ir ter com ele à Costa da Caparica e mostra-lhe
tudo o que tinha conseguido produzir naquele dia: três linhas.
Isso
não tinha a ver com a experiência; tinha a ver com o escritor que ele
era. Mesmo em relação a ter publicado pouco e a escrever de uma forma
lenta, ele nunca usou isso como um trunfo, nunca disse, sou melhor
porque rescrevo muito.
Pelo
contrário, lamenta esse facto – que se torna ainda mais notório a
partir da década de 1980, quando surgem as comparações com Lobo Antunes e
José Saramago, que produzem de forma impressionante.
Há
uma frase que li há pouco tempo sobre o Fellini: “Era um artista de um
enorme talento mas com pouco para dizer.” Talvez o Cardoso Pires tivesse
pouco para dizer sob a forma de romance. Penso que ele comete um erro
ao tentar sempre mais um romance quando, na minha opinião, era um
contista extraordinário. Dominava o género de forma primorosa. Desde
muito cedo, o que prova que há um lado intuitivo.
Como é que se gere a convivência com uma figura, mesmo que morta, durante três anos?
Torna-se
obsessivo. Houve uma altura que sonhava com o Cardoso Pires. Até a
minha filha, que tem hoje oito anos, comentava: “É só Cardoso Pires!”
Quer-se sempre saber mais. Às vezes já nem é o próprio Cardoso Pires;
são os pormenores, como o registo de nascimento do pai ou o nome certo
do navio em que ele embarcou em Moçambique com destino ao Paquistão.
Encontrar uma coisa nova dá “uma pica” enorme. Quando consultei o
arquivo do exército, por exemplo: pensar que aquelas coisas estão ali há
70 anos e o mais provável é que nunca tenham sido consultadas. A
opinião deles sobre aquele tipo [“Não é caracterizado por muito
desembaraço nem por grandes possibilidades intelectuais. Conseguiu
satisfazer”, lê-se].
Foram mesmo três anos à volta desta biografia?
Estamos
em Portugal. Apesar de ter recebido apoio a vários níveis, não podia
fazê-lo de forma exclusiva durante três anos se quisesse alimentar os
meus filhos. Entrevistei cerca de 40 pessoas, excluindo outros contactos
mais breves. Tive a grande sorte de encontrar a correspondência com o
[jornalista e escritor] Castro Soromenho, que foi sendo digitalizada e
enviada por e-mail pelo filho, que vive no Brasil. São 28 cartas onde
encontrei muita informação nova. Houve uma colaboração muito aberta da
parte da família, incluindo a viúva, Edite Pereira, e as filhas,
sobretudo a Ana Cardoso Pires, responsável pelo espólio.
Teve livre-trânsito no acesso ao espólio pessoal?
O
espólio está na Biblioteca Nacional mas há coisas que estão só com a
família, incluindo alguns documentos da PIDE. Aliás, o arquivo da PIDE
sobre o José Cardoso Pires está muito incompleto. Não sei o que lhe
aconteceu. Havia por exemplo relatórios muito detalhados feitos pelo
amigo dele que era informador e que não estão lá.
Essa
é uma história muito impressionante: o principal informador da PIDE em
relação à vida do José Cardoso Pires ser o melhor amigo, José Pérez
Féria, conhecido por Pépito, que, lê-se na biografia, “segundo a lenda
empenhara o sobretudo para financiar a impressão de [o conto de Cardoso
Pires], ‘Os Caminheiros’”.
Se
não era “o” melhor amigo, era “um” dos melhores amigos. E é
impressionante por várias razões. O Cardoso Pires era um extraordinário
observador de pessoas. Era muito rápido a tirar a pinta e também a
transpor isso para os livros. A forma como retratava as personagens, o
ouvido que tinha para a forma de falar. E é incrível como alguém com
esta capacidade de observação não vê aquilo que está mesmo à sua frente:
durante quase 20 anos, um dos melhores amigos, alguém que frequentava a
sua casa, era informador da PIDE. Ele ficou muito abalado, muito
ferido. Durante algum tempo não admitia que se mencionasse o nome desse
amigo em casa. Sendo que essa dimensão da traição pessoal lhe ensinou
coisas não só sobre a natureza humana mas também sobre a natureza do
regime, até que ponto é que o regime contaminava tudo.
Em
jeito de contextualização: Pérez Féria colaboraria com a oposição,
muito próximo do PCP, quando foi apanhado pela PIDE e aceitou tornar-se
informador.
A
informação que obtive era que seria uma espécie de moço de recados.
Colaborava com o Partido Comunista mas não tinha grande relevo. Talvez
por isso tenha sido um informador tão eficaz. Passou à PIDE não só
informações sobre o Cardoso Pires mas também sobre as pessoas que
conviviam com ele.
Cardoso
Pires faz parte do PCP antes do 25 de Abril e, ao contrário da maior
parte das pessoas, depois da Revolução afasta-se do partido. Porquê?
Porque
ele não tinha espírito de funcionário nem espírito partidário. Era
verdadeiramente livre. Achava que só se podia fazer oposição eficaz ao
regime envolvendo o PC, daí a ligação ao partido.
"Houve
mesmo uma relação, quando ele [em 1970] estava a dar aulas em
Inglaterra, que pôs em perigo o casamento. A Edite encostou-o à parede e
o libertino teve de pôr o rabo entre as pernas e voltar para casa. No
casamento, era um marialva. Aliás, nunca permitiria esse tipo de coisas à
Edite. Toda a gente me contou a história do [jornalista]
Baptista-Bastos, a quem bateu porque se aproximou da Edite quando ele
estava em Inglaterra."
E uma vez derrubado o regime…
Manteve
uma relação de cordialidade com o partido. E o partido, ao contrário do
que aconteceu com outros, sempre se referiu a ele com grande respeito.
É formado em História. Já era assim, obsessivo na busca de informação, ou foi por causa do tema?
Sou
formado em História mas foi um acaso da minha vida. Ajudou-me nas
questões metodológicas e na gestão da importância ou peso das fontes. É
diferente estar a ler uma carta que escreveu à Maria Lamas ou ler uma
entrevista que deu ao [jornal] “Primeiro de Janeiro”.
Essa relação com a escritora e ativista Maria Lamas é muito curiosa. Quase como se ela fosse uma espécie de guru.
Foi
uma coisa que me surpreendeu, o lado confessional das cartas à Maria
Lamas. Ele tinha 20 e poucos anos e falava-lhe de tudo, desde as
relações amorosas às queixas que tinha em relação ao meio literário. Não
encontrei este tipo de questões na correspondência com outras pessoas.
Era importante a diferença de idades, em princípio não seria uma
potencial amante [Maria Lamas era 32 anos mais velha]. Até sobre a Edite
[Pereira, a mulher] ele fala.
Seria para ele uma figura maternal?
É
uma leitura possível, muito provavelmente correta. Não quero entrar em
“psicanálises”, mas ele tinha uma relação difícil com a mãe. A Maria
Lamas era alguém que o compreendia no seu todo, ao passo que a mãe era
profundamente religiosa e provinciana. Ele culpava-a por não ter tido
uma educação mais livre. Achava que ela dominava o pai. Aí, sim,
entrando pela psicanálise, há uma altura [no início do casamento] em que
ele “fala grosso” para se impor perante a Edite e penso que será também
uma revolta perante o domínio da mãe na esfera familiar. Ao longo da
vida, o Cardoso Pires revoltou-se contra uma série de coisas: a classe a
que pertencia, que era a pequena-burguesia; os valores dessa classe e
os do regime, que coincidiam em parte; e a vida familiar dominada pela
mentalidade provinciana. E a mãe representava isso tudo. Sendo que, até
ao fim da vida, ele e a irmã sempre cuidaram dela.
De
que forma foi Cardoso Pires um “Integrado Marginal”, o título escolhido
para a biografia, que por sua vez é uma auto-descrição retirada do
livro “Cardoso Pires por Cardoso Pires”?
Ele
tem uma revolta que vem de sempre, mesmo contra o meio literário, mas
esteve sempre integrado no sistema. Fez parte da direção da Sociedade
Portuguesa de Escritores, foi premiado, foi convidado para variadíssimos
projetos culturais antes e pós-25 de Abril. Esteve sempre no centro dos
acontecimentos.
E de que forma era marginal?
No
que escreveu, nunca cedendo, seguindo um caminho que, bom ou mau, era o
dele. Nunca entrou em modas. Levou “porrada” da esquerda e da direita.
Isso é uma semi-surpresa. Por exemplo, o “Almanaque” [revista criada em
1959 por Figueiredo de Magalhães, dono da Ulisseia, e editada de forma
anónima por Cardoso Pires] é o “anti-Avante”.
É um delírio, um parque de diversões.
É
uma brincadeira. É partir a loiça toda. E muitos intelectuais de
esquerda achavam que os intelectuais deviam pôr a ideologia à frente de
tudo. Ele quando chegava ao trabalho, encostava todas essas coisas às
boxes e fazia o que queria.
Além
do “Almanaque”, fez depois o “&Etc”, suplemento do Jornal do
Fundão, e “A Mosca”, que saía com o Diário de Lisboa. Havia sempre um
lado de humor.
Um
humor muito corrosivo. Não era brincadeira; eram ferroadas. Uma certa
forma de olhar para as coisas. Ele conseguia ser cáustico. Aliás, se
lermos como deve ser O Delfim, Balada da Praia dos Cães, Alexandra
Alpha, está lá. A sátira em O Dinossauro Excelentíssimo. Esse humor
existia no convívio, no trato pessoal.
Os
livros dele – O Delfim, A Balada da Praia dos Cães – nunca são livros
consensuais. À época, são tão atacados como elogiados por todos os
lados.
O
Delfim é atacado sobretudo pela esquerda. Acusam o Cardoso Pires de ser
reacionário e de gostar do protagonista que tinha criado.
Pensa que essas críticas eram apenas literárias ou tinham a ver com o facto de o autor ser um desalinhado.
Ele
a certa altura tem a noção de que o tipo de postura totalmente
antiacadémica talvez estivesse a ter um peso na desvalorização da obra.
Era um tipo muito culto, mas que não vestia a farda do intelectual. As
pessoas que o criticavam conheciam-no. E por isso é que no caso de O
Delfim senti necessidade de, enquanto biógrafo, tirar as luvas de veludo
e ir à luta.
Uma dessas críticas é feita pelo também escritor Luiz Pacheco, amigo de há décadas.
É
uma crítica que tem muitos pontos interessantes. Não é uma leitura
superficial. Mas há ali, se não maldade, uma intenção propositada de
confundir certos aspetos. Por exemplo, o facto de ele criticar o uso da
primeira pessoa, dizendo que aquele não é o Cardoso Pires. Ora aqui a
primeira pessoa é uma construção literária. Sendo o Luiz Pacheco muito
inteligente, não acredito que não percebesse que aquilo é um artifício
para construir o romance.
De que forma “tirou as luvas”?
Defendi
que aquelas críticas estavam erradas. O Delfim é, de facto, um grande
livro. O narrador é uma das maiores personagens da obra do Cardoso
Pires, se não a maior, e o tal artifício da primeira pessoa é o que lhe
permite construir todo o livro naquele tom.
Uma
das críticas feitas a propósito de O Delfim é que, tal como o
protagonista, Cardoso Pires seria um marialva. O diplomata José
Cutileiro, que trabalhou com ele na revista “Almanaque”, contava que na
dedicatória que lhe escreveu em A Cartilha do Marialva se lia “Ao Zé
Cutileiro, frecheiro do quotidiano marialva”. Mesmo nesta biografia diz,
“A Cartilha do Marialva era, à sua maneira, a cartilha do libertino
impotente capaz de apontar, por antítese, os defeitos do marialvismo,
mas incapaz de lutar pela transformação de uma sociedade por ele
dominada.” Afinal, Cardoso Pires era, ou não, um marialva?
A resposta deu-a o Cutileiro: ele era um marialva que queria ser um libertino.
Como assim?
O
libertino é um tipo que joga o jogo da sedução e para quem a sedução é
um jogo da mais elevada importância. Esse jogo pressupõe a igualdade do
homem e da mulher. Nesse sentido, parece-me que era um libertino. Mas
também era um homem condicionado pela sociedade.
Como costuma dizer-se: “Era um homem do seu tempo”?
Não
quero culpar o tempo pela postura. Por exemplo, na educação das filhas,
não era um homem do seu tempo. As filhas foram criadas num ambiente de
grande liberdade.
No
casamento já era diferente. Ao longo de todo o livro vão sendo
referidas várias relações extraconjugais, uma delas “um ardente caso”
com a poeta Maria Teresa Horta. A dada altura, uma das filhas fala de ir
sair à noite e de se cruzar com o pai e as “namoradas”.
Houve
mesmo uma relação, quando ele [em 1970] estava a dar aulas em
Inglaterra, que pôs em perigo o casamento. A Edite encostou-o à parede e
o libertino teve de pôr o rabo entre as pernas e voltar para casa. No
casamento, era um marialva. Aliás, nunca permitiria esse tipo de coisas à
Edite. Toda a gente me contou a história do [jornalista]
Baptista-Bastos, a quem bateu porque se aproximou da Edite quando ele
estava em Inglaterra. O Baptista-Bastos nunca lhe perdoou e depois fez
aquela crítica ao De Profundis – Valsa Lenta [lê-se em Integrado
Marginal: “Numa crónica em que nunca referiu Cardoso Pires pelo nome,
Baptista-Bastos falou em ‘seis patéticas entrevistas, seis!’ e numa
‘majestosa técnica de marketing’ para promover o livro e o autor”.]
Falou com a viúva sobre as infidelidades?
Falámos
sobre esse caso de Inglaterra em particular. Ela confirmou que
descobriu essa traição e que achou que ele tinha cruzado o limite. Não
podia tolerar. No resto, ele tinha uma vida muito livre. A educação das
filhas ficou em grande parte a cargo da mulher. Não era um pai
totalmente ausente, mas só intervinha quando havia situações que achava
da mais elevada importância, como uma vez que a filha Ana foi proibida
de usar calças no liceu e ele foi lá falar.
Como
é que essa atitude se articula com um livro como Alexandra Alpha, de
1987, protagonizado por uma mulher e sobre uma amizade entre duas
mulheres?
Surpreendeu
muito as pessoas. Alguém com uma escrita várias vezes considerada
“masculina” e “viril” ter aquela capacidade para captar a essência de
uma amizade entre duas mulheres.
Não só a escrita, mas os universos de O Delfim e Balada da Praia dos Cães, por exemplo, são muito masculinos.
Aqui
a protagonista é uma mulher, mas é uma mulher muito forte, de certa
forma incomum para aquela sociedade. É uma mulher que rompe com tudo.
Houve quem dissesse que era inspirada numa mulher real mas nunca
consegui confirmar. Acredito que seja uma colagem de traços de várias
pessoas. É, em parte, um desenvolvimento da Guida de O Anjo Ancorado.
Por isso é que acho um erro dizer-se que ele era um marialva. Mesmo na
relação com mulheres escritoras, como a Lídia Jorge, não manifestava
qualquer tipo de condescendência. Entusiasmava-o que estivessem ao nível
dele. Creio que isso também é válido para outras relações que possa ter
tido e também no caso do casamento. Ele diz isso numa das cartas à
Maria Lamas: a Edite é uma pessoa com uma personalidade forte, muito
inteligente, com uma grande sensibilidade. Isso justifica terem ficado
juntos todos aqueles anos, até à morte dele.
Esta
é uma biografia pesquisadíssima, mas cautelosa, e sobretudo literária.
Referiu ter usado “luvas de veludo”. Onde traçou os limites para a
interpretação do biógrafo sobre a vida do biografado?
A
minha opinião não interessa muito. Exceção feita ao caso de O Delfim em
que senti a necessidade de defender o livro de críticas que me
pareceram muito injustas. O próprio Saramago, que na altura acusou o
Cardoso Pires de certa simpatia pelo protagonista reacionário,
penitenciou-se mais tarde. Também não me interessa fazer biografias “de
escândalo”. Para mim, biografia é dar ao leitor informação sobre as
circunstâncias políticas, sociais, pessoais, eventualmente íntimas, em
que aquela pessoa produziu aquilo pelo que é reconhecida, que é o seu
trabalho literário. Queria também usar esta biografia para contar a
história da época. Inicialmente foi-me proposto biografar outro escritor
e uma das razões pelas quais recusei foi essa, não me permitiria contar
a história do país.
A
penúltima entrada do livro, poucas linhas antes do final, é sobre o
Nobel atribuído a José Saramago. Porquê este destaque a um autor que não
é o próprio?
Porque
é factual. O Nobel é anunciado poucas semanas antes de o Cardoso Pires
morrer. E também porque – e aí foi uma opção minha, enquanto biógrafo –
uma das linhas de força da história do Cardoso Pires é a comparação com o
Saramago. Eles chegam ao início dos anos 1980 com estatutos
completamente diferentes: o Cardoso Pires como um dos maiores escritores
da segunda metade do século XX e o Saramago como uma figura secundária.
A situação começa a mudar com Memorial do Convento, que ainda assim
perde em 1982 o Grande Prémio de Novelística da APE [apelidado por
Vergílio Ferreira como “El Gordo”, em alusão à lotaria espanhola] para a
Balada da Praia dos Cães. Há ali, creio, quase uma ideia de
consagração. Só que depois o Saramago ultrapassa o Cardoso Pires, de
forma fulgurante, percurso que culmina com o Nobel. Outro episódio
referido é o facto de o tradutor para inglês, o Gregory Rabassa,
declinar A Balada da Praia dos Cães porque estava comprometido com a
tradução de Fado Alexandrino, do Lobo Antunes, outro facto revelador da
inversão da hierarquia.
"É
quase que uma heresia, um pecado moral e mortal dizer-se que se é
escritor profissional. E o Cardoso Pires estava-se nas tintas. Sempre
foi de um rigor absoluto quando estava a escrever e depois fez um
lançamento espectacular, uma coisa inédita, de O Delfim, onde até
banqueiros estavam"
É quase um “rodar a faca”, destacar que um está a morrer e o outro a ganhar o Nobel.
Aconteceu.
Mas alguma vez o próprio Cardoso Pires acalentou essa esperança?
Realisticamente, acho que não.
Numa entrevista, Cardoso Pires refere mesmo que os únicos que poderiam ganhar seriam o Saramago ou o Lobo Antunes.
E ainda diz, com humor, “se calhar ainda atribuem ao Tabucchi” [autor italiano radicado em Portugal].
Um
dos receios de Cardoso Pires era ser recordado apenas como o escritor
boémio e brigão. Já perto do fim da vida, numa entrevista à escritora
Inês Pedrosa, diz: “Só tenho medo é de ficar na História como um fulano
que escreve bem.” Parecem duas ideias contraditórias. Na sua opinião,
como é que ele fica para a história?
Ele
queria ficar para a história como alguém que tinha escrito livros
importantes e não apenas alguém que escrevia bem. Todos têm essa
preocupação com a posteridade. A diferença é que ele o assumia. Penso
que é um autor canónico, ficando fora do cânone. Tem uma obra
fundamental para a compreensão dos caminhos que a literatura portuguesa
podia ter seguido, embora não tenha grandes herdeiros. Tem esse grande
livro que é O Delfim.
É “o” grande livro dele?
Sim.
É verdadeiramente original. Ainda mais naquele tempo português, que ele
dizia ser um tempo estagnado. O Cardoso Pires tem também a importância
de ser o romancista que conseguiu transpor de forma mais conseguida o
ambiente social e a atmosfera mental do salazarismo. Se calhar esse
também foi o seu limite. Só um livro decorre e apenas em parte depois do
25 de Abril, o Alexandra Alpha. Depois há coisas totalmente esquecidas:
é um extraordinário contista. “Os Caminheiros” é um dos maiores contos
da nossa literatura. Hoje fala-se nos romances do Cardoso Pires, mas na
essência ele era um escritor de narrativas breves, de fôlego curto.
Enquanto
biógrafo, dedica 15 linhas dos agradecimentos às pessoas que lhe “dão
trabalho”. Essa dificuldade de subsistência dos escritores também é um
tema presente na biografia. Enquanto autor, múltiplas vezes premiado,
incluindo o Prémio Saramago, ainda é assim tão difícil viver só dos
livros em Portugal?
É
muito difícil. Mas é uma coisa que a mim não me interessa. Gosto de
escrever noutros registos. Gosto da pressão e das possibilidades que a
crónica oferece. Esta biografia só é possível porque eu não tenho um
trabalho “das nove às cinco”, o que faz com que também precise de outras
fontes de rendimento. Fui eu que financiei este livro.
O que quer dizer com isso?
Eu
é que o paguei. Subsisto graças às minhas colaborações com a imprensa:
Expresso, Observador e GQ. A editora pagou-me um adiantamento razoável,
mas que não dava para sobreviver seis meses. Eu queria escrever este
livro e aceito as limitações que nós temos num país com um mercado
pequeno. Gostava de ter tido mais tempo para investigar, para fazer
entrevistas, mas assumo inteiramente o resultado.
Ao longo destes três anos, enquanto escritor, foi encontrando afinidades com o Cardoso Pires escritor?
É
inevitável. Quando ele luta por viver da escrita, quando assume sem
qualquer pudor querer ser um escritor profissional, que ainda hoje é uma
heresia dizer…
Sente isso?
Sinto,
claro. É quase que uma heresia, um pecado moral e mortal dizer-se que
se é escritor profissional. E o Cardoso Pires estava-se nas tintas.
Sempre foi de um rigor absoluto quando estava a escrever e depois fez um
lançamento espetacular, uma coisa inédita, de O Delfim, onde até
banqueiros estavam.
Chegou mesmo a trabalhar como publicitário para o BCP.
Foi
convidado pelo José Dias Silva, amigo de longa data, que começou por
ser bancário e foi subindo na carreira. Essa dessacralização da
literatura, vista por muitos como uma tarefa reservada aos sacerdotes,
aos profetas, que não se sujam com o vil metal, confortou-me. Senti que
tinha ali um amigo. Ponho o máximo de seriedade em tudo o que faço. E
depois quero vendê-lo. E agora quero que esta biografia venda, e venda
muito. Se não vender, fico lixado. Estão aqui três anos da minha vida.
Ia lá dizer, como diz o Ronaldo, “me da igual”?
Passados três anos nesta companhia, vai ter saudades do Cardoso Pires?
Acho que nunca me vou livrar dele completamente. Até porque tenho noção que poderei corrigir algumas coisas que aqui estão.
[Há
limites para uma biografia? E biografados que sofrem flutuações de
prestígio? O programa Pop Up abre o livro a propósito de “Integrado
Marginal”, de Bruno Vieira Amaral]
Como o Cardoso Pires fazia?
Não
da mesma forma. Ele mudava os textos, muitas vezes para melhor. Mas
essa não é uma afinidade. Os meus textos estão acabados. O que está
feito, está feito. Aqui corrigirei coisas que seja necessário mudar. Uma
coisa curiosa é que às vezes enquanto escrevo dou por mim a pensar
“Será que ele ia gostar disto?”, “Será que ia achar que está bom?”,
“Estou a ser sério?”. Há duas ou três pessoas em quem penso quando
escrevo e a quem às vezes mando textos, como o [escritor] Rentes de
Carvalho, e agora ele, que está morto, junta-se a esse grupo.
Ele fez de si um autor mais sério na forma como se empenha na literatura?
Quando
se tem um exemplo de seriedade perante um ofício, o pôr-se tudo o que
se tem em cada momento, isso inspira-nos. Embora eu aceite talvez com
mais tranquilidade as flutuações naturais da crónica. Umas saem melhor,
outras pior. Ele ficava muito angustiado. Era doentio nisso. Como alguém
disse, era a vírgula mais cara da imprensa.
E em termos de copos e boémia?
A
minha onda é mais o casamento burguês que ele tinha. Sou um bicho
doméstico. Ainda que no caso dele a boémia também fosse uma fonte de
histórias. Se pudermos dividir os escritores em dois grupos, há uns que
são muito bons a sintetizar aquilo que vivem e há outros que são muito
bons a sintetizar aquilo que observam. Ele não era um escritor
confessional; era um observador que depois conseguia transpor isso de
forma magistral para os livros.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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