Tal como na esquerda, na direita também há de tudo: liberais, conservadores, reacionários, monárquicos, republicanos, nacionalistas, fascistas. Vale pois a pena olhar o itinerário de alguns políticos. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
O que é a direita, além da não-esquerda? Prezzolini dizia que era a soma de todas as direitas, das lembradas e das esquecidas.
Mas
na amálgama resultante da profunda e crescente ignorância sobre estas
matérias, sobe a confusão entre as direitas que esquecemos – se é que
alguma vez as soubemos – e aquelas “de que toda a gente se lembra”, ou
de que só sobram os rótulos. Tudo isto espicaçado pela insegurança das
esquerdas perante o ressurgimento “fascista-populista” e a consequente
pressão para que “a Direita” se demarque das actuais “derivas iliberais”
e se “redefina” – ou se fragmente, ou se dilua.
Ora
subitamente moderadas e senatoriais, ora deixando escapar os habituais
tiques sensórios e inquisitoriais, as esquerdas, e sobretudo as
extremas-esquerdas, discorrem agora abundantemente sobre a
reconfiguração da Direita e das direitas – como se não estivessem,
também elas, reconfiguradas ou em reconfiguração. E fazem-no exibindo a
serenidade sobranceira e elitista de quem está colado ao poder, enquanto
impõem uma agenda radical apresentada como “senso comum” e “evolução
natural das coisas”.
Na
esquerda e nas esquerdas há de tudo: liberais, social-democratas,
socialistas, trotskistas, comunistas, maoístas, neomarxistas; como na
direita e nas direitas também há de tudo: liberais, conservadores,
reaccionários, monárquicos, republicanos, nacionalistas, fascistas. Mas
se é certo que, tanto à direita como à esquerda, há diferenças internas
importantes entre as várias sensibilidades políticas (ou, para ser mais
fiel ao espírito do tempo, entre os vários “afectos”), também é certo
que há, e sempre houve, muitos espaços comuns. E uma coisa são os
valores e os princípios fundamentais, outra é a reacção, a dialéctica e a
evolução desses valores e princípios quando confrontados com a
realidade.
Parece-me
por isso interessante olhar o itinerário de alguns políticos e homens
de Estado que, num percurso de vida e de poder, protagonizaram a
evolução da ideologia, da retórica e das alianças à luz de um projecto
final ou do confronto com um inimigo ou uma ameaça.
Bismarck,
o criador da Alemanha unida, é um desses exemplos de atenção ao
presente e ao inimigo principal e de fidelidade a um projecto. Evoluindo
de Junker reaccionário prussiano para nacional-conservador alemão,
Bismark foi um conservador consciente de que conservar é mudar, não
“para que tudo fique na mesma”, que nunca fica, mas para que certas
ideias e concepções do homem, da vida colectiva e do destino da
comunidade humana permaneçam vivas. Foi, por isso, na Direita, pioneiro
dos fundamentos do Estado Social, entre outras coisas.
O retrato
O
quadro de Anton von Werner da proclamação do Segundo Império Alemão, em
Versalhes, diz tudo: uma empolgada assembleia de militares de uniforme
de gala e condecorações ao peito ergue capacetes e sabres a uma
venerável figura, também de uniforme azul e faixa amarela, que se
perfila, em sentido, no topo dos três degraus de uma tribuna ou de um
trono; mas há alguém de uniforme branco, bem no centro do quadro, que
olha para o homenageado com uma curiosidade enigmática e de igual para
igual. O observado é Guilherme I, rei da Prússia e, a partir daí,
Imperador da Alemanha, e o observador é Otto von Bismarck, o artífice do
Império.
Foi
há pouco mais de 150 anos, esta proclamação, e é um acontecimento
decisivo na História contemporânea europeia. A data exacta é 18 de
Janeiro de 1871, e o lugar, a Galeria dos Espelhos, em Versalhes. O
quadro de Werner foi encomendado ao pintor pela família reinante da
Prússia, os Hohenzolern, para ser oferecido a Bismarck pelo seu
septuagésimo aniversário, em 1885. Werner estivera em Versalhes em 1871
mas, curiosamente, pintou os figurantes, não na idade que teriam então,
mas na idade que tinham em 1885. A atenção do pintor ao presente e a
consciência de que a evocação do passado é sempre fruto de um olhar que
parte do presente não terão desagradado a Bismarck.
Um passado prussiano
Otto
von Bismarck foi o deus-ex-machina que, em menos de dez anos – desde
que, em Setembro de 1862, o rei da Prússia o nomeou Primeiro-Ministro –,
fez com chegasse aquele dia de triunfo, proclamado num palácio criado
por Luís XIV para deslumbrar e esmagar pela pompa e pelo luxo os
súbditos franceses e exibir ao mundo o seu esplendor transformado em
troféu de conquista pelo novo Império alemão.
As
tropas de Luís XIV, sob Louvois, tinham causado grande destruição nas
terras agora alemãs da Renânia-Palatinado, dizia-se que para grande
desgosto do Rei-Sol. Mas havia mais agravos.
A
história da Prússia-Alemanha não se compreende sem o rol de humilhações
sofridas pela Prússia nos princípios do século XIX: a invasão das
tropas napoleónicas, a derrota de Iena, a ocupação, as indemnizações ao
ocupante, a miséria consequente.
Aparentemente,
os intelectuais alemães, como Goethe e Hegel, seduzidos pela figura do
novo César, não se incomodaram muito com o caso. Hegel ter-se-á cruzado
com Bonaparte nas ruas de Iena e escrito a um amigo: “Vi o Imperador,
essa Alma do Mundo”. O encontro fora nas vésperas de Iena, o dia da
grande derrota dos Prussianos às mãos da cavalgante “alma do mundo”.
Quanto a Goethe, em Weimar, também não o terão incomodado pessoalmente
os invasores – Goethe era um cosmopolita e Napoleão era seu leitor e
admirador.
Mas
não foi assim com o povo e com os patriotas prussianos, que sentiram na
pele a humilhação e sofreram na carne a miséria da ocupação. Quando o
rei da Prússia se aliou a Napoleão, um grupo de oficiais, entre os quais
von Clausewitz (o autor de Da Guerra) abandonou o país e o Exército e
foi oferecer os seus serviços ao Czar Alexandre I para lutar contra o
Corso.
De reaccionário a realista
Otto
von Bismarck nasceu na Prússia, em Abril de 1815, pouco antes do fim da
carreira de Bonaparte em Waterloo e durante o Congresso de Viena, que
restauraria a velha ordem na Europa. Era, no entanto, uma restauração
marcada pela revolução e pelo medo de outras revoluções. Nasceu em
Schönhausen, Saxónia, numa família de Junkers prussianos, a pequena
nobreza que fizera a força do exército e da Prússia de Frederico, o
Grande. A mãe vinha de uma família de altos funcionários do Estado. A
família mudou-se para a Pomerânia Oriental, onde Otto passou a infância e
a juventude, antes de partir para a universidade, para Göttingen e para
Berlim. Teve uma juventude animada, serviu no Exército e pelos trinta
anos teve um despertar religioso. Talvez tenha sido a mulher, Joana von
Puttkamer, aristocrata, luterana e pietista, a convertê-lo; até porque,
segundo os historiadores, terá sido o seu único grande afecto.
Começou
então uma carreira política como deputado no parlamento prussiano,
reaccionário e ultraconservador; as revoluções de 1848 deixaram-no
surpreso e perturbado, e chocou-se com a atitude conciliatória do Rei.
Opôs-se depois à unificação alemã, afirmando-se um prussiano
identitário.
É
com a nomeação para representante da Prússia, na Dieta da Confederação
Germânica em Frankfurt, que vai converter-se em nacionalista alemão, em
defensor da unidade da Alemanha, ainda que sempre sob a égide e
hegemonia da Prússia.
O
Junker prussiano, muito marcado por interesses de classe ou de casta,
transformava-se profundamente, ao contactar com a realidade e as
realidades da política exterior. Jacques de Bainville destaca este
momento-chave na vida de Bismarck, o momento em que o reaccionário
passadista se torna um nacional-conservador realista, defensor e fazedor
da unidade alemã. Porque a Alemanha, partida em cerca de quatro dezenas
de micro-Estados – além da Áustria, da Prússia, da Baviera – hesitava
entre Viena e Berlim, os Habsburgo e os Hohenzolen.
Bismarck
vê com antecipação. Vê que, depois de 1848-49, e embora as revoluções
radicais tivessem sido vencidas pela força militar, já nada seria como
dantes. E que a Santa Aliança ia ter o destino do seu artífice, do
príncipe de Metternich, deposto e exilado depois de 48.
E
muda de rumo perante a realidade europeia: a Áustria está em
decadência, os Bonaparte estão de volta a França com Luís Napoleão, num
cesarismo populista que aparentemente funciona. A Alemanha terá de
fazer-se pelo ferro e pelo fogo. E as cidades e as massas populares
tinham entrado definitivamente na História; contra ou a favor, teria de
se contar com elas.
Depois
de Frankfurt, é nomeado embaixador na Rússia e tem uma passagem rápida,
também como Embaixador, por Paris. Em Setembro de 1862 o rei nomeia-o
primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. O ministro da
Guerra é von Roon e o chefe de Estado-Maior é von Moltke. Moltke está a
construir, pacientemente, um grande e moderno exército, com canhões
Krupp e espingardas von Dreyse, de carregar pela culatra. Moltke também
percebera que o transporte e a logística eram a chave das batalhas e
forçara a criação de um sistema ferroviário que ficasse sob direcção
militar.
Três guerras relâmpago
Depois
são três guerras, três guerras relâmpago: a guerra dos Ducados, em que
Bismarck se alia aos Austríacos para tirar os Ducados do
Schleswig-Holstein ao rei da Dinamarca; a guerra da Áustria, a aliada da
véspera, a católica Áustria dos Habsburgo, uma das cinco grandes
potências, que é derrotada em Sadowa; e, por fim, a da França, a França
de Napoleão III, herdeira da de Napoleão I, que invadira, ocupara e
humilhara a Prússia.
Bismarck
explora a soberba e a megalomania de Luís Napoleão com o famoso
telegrama de Ems, relatando a verdade mas torcendo-a ou manipulando-a de
modo a provocar os Franceses e a levar o gabinete de Paris ao que
pretende: que, por um motivo fútil, tome a iniciativa de declarar guerra
à Prússia.
A
guerra contra a França foi outra guerra relâmpago que praticamente se
decidiu entre Agosto e Outubro de 1870, com os dois grandes exércitos
franceses, um comandado pelo marechal Bazaine, outro pelo marechal Mac
Mahon, a renderem-se perante a nova estratégia de von Moltke, um em
Metz, outro em Sedan, onde o próprio Imperador foi capturado. Depois,
foi a coroação de Guilherme em Versalhes. Passados dez dias, a 28 de
Janeiro, os alemães entravam em Paris.
Bismarck
ganhara em toda a linha. Logo a seguir a Baviera e o Wurtenberg, em
Munique, negociavam as novas regras da unidade alemã, sob a égide da
Prússia, unindo 4 reinos, 18 principados, grão-ducados e ducados e 3
cidades livres – Hamburgo, Lübeck e Bremen. A Alsácia e Lorena eram
também anexadas ao novo Reich e a França obrigada a pagar uma
indemnização de guerra significativa.
A
fechar a derrota, a França passaria pela insurreição radical da Comuna
de Paris, com um cortejo de grande violência (incluindo o velho costume
das esquerdas de matar os suspeitos do costume, nomeadamente bispos e
padres). A insurreição foi vencida pelo governo de Thiers. E a repressão
foi também extremamente dura.
As guerras domésticas: unir os amigos e dividir os inimigos
Tal
como vaticinara Bismarck, a Alemanha fizera-se pelo ferro, pelo fogo e
pelo sangue. Agora tratava-se de a governar. Na euforia da vitória, o
Chanceler não se deslumbrou e seguiu a velha regra realista de unir os
amigos e dividir, ou, quando possível, reduzir, os inimigos.
Internamente, com a entrada da Baviera para a Nova Alemanha, passara a
haver um terço de católicos na população. E os católicos tinham um
partido, o Zentrum. Bismarck, como bom luterano, desconfiava dos
“papistas” e do concurso de lealdades entre o Papa e o Imperador e pôs
uma série de restrições ao culto, proibindo os padres católicos de falar
de política, exercendo controles sobre nomeações do clero e cortando as
relações com Roma. Foi a chamada Kulturkampf de 1873-1874, com uma
série de leis restritivas. Seguiram-se, em 1875, leis para a dissolução
de congregações religiosas que não se dedicassem à assistência social,
aos doentes e aos pobres, além da suspensão de quaisquer apoios
governamentais à Igreja e às instituições católicas de ensino. Tudo isto
foi feito no Parlamento com o apoio dos liberais.
Mas
em 1878, com a morte de Pio IX e a eleição de Leão XIII e com a mudança
da situação interna, com o “perigo socialista” e a subida da votação do
Zentrum, Bismarck, pragmaticamente, abandona a política regalista,
restabelece relações com o Vaticano e procede à reintegração de bispos e
sacerdotes.
De
resto, o Estado de Direito tinha funcionado, com os tribunais a
denegarem a aplicação das providências mais radicais do Chanceler contra
a Igreja.
Bismarck
teve também de lidar com a chamada “questão social”. A Prússia
industrializara-se rapidamente, a partir da segunda metade do século
XIX; e as guerras e vitórias da unidade alemã tinham reforçado uma
burguesia nascente de banqueiros e industriais que transformara
socialmente o país, com muitos camponeses a afluírem às cidades para
trabalhar nas fábricas. Entretanto, em 1848, dois cidadãos alemães, Marx
e Engels, tinham lançado o Manifesto Comunista.
Mas
nenhum deles, nem nenhum dos seus discípulos, lideraria o movimento
operário alemão, cuja figura carismática viria a ser Ferdinand Lassale –
um misto de socialista romântico e patriota prussiano que acreditava,
não na revolução violenta, mas na conquista do poder pela classe
operária através do voto. Partia do princípio de que seriam os operários
e não os burgueses a maioria dos eleitores. É claro que o sistema se
acautelara, e as leis eleitorais da monarquia prussiana não funcionavam
na proporcionalidade.
De
qualquer modo, e embora Lassale tivesse morrido prematuramente em 1864
num duelo por causa de um caso sentimental, Ferdinand Lassale teve tempo
de conhecer e negociar com Bismarck. Lassale defendia um socialismo
patriótico, nacional, não internacionalista, e era partidário da
unificação. E, tal como Bismarck, achava que devia ser a Prússia o
agente dessa unificação. Lutava pelo alargamento do direito de voto. E
embora associado com Marx em 1848, afastara-se depois. Quer Marx, quer
Engels, escreveriam repetidamente textos contra a influência
“desviacionista” de Lassale no proletariado alemão.
Bismarck
entendeu bem a força das massas e o seu potencial revolucionário. Mas
não lidou com o assunto ao modo dos reaccionários, partidários da
intransigência e da mão dura na repressão. Pensou antes que, para o bem
do Estado e da unidade da Alemanha, era importante fazer o que Hegel
chamava a revolução por cima, para evitar a revolução de baixo. Assim, a
Alemanha foi pioneira no campo de reformas sociais, como a
institucionalização da reforma para os trabalhadores e da assistência
médica.
Também
nesse campo Bismarck começara com uma política repressiva, impondo uma
série de proibições e restrições ao Partido Social Democrata; mas logo
procurara satisfazer o eleitorado socialista através de leis, como a dos
Seguros de Saúde de 1883, que instituíam um fundo financiado por
patrões e trabalhadores. O sistema de contribuição alargou-se aos
seguros por acidentes de trabalho e, em 1889, ao seguro de desemprego,
marcando o início do Estado Social moderno.
Um equilíbrio europeu
Mas
a grande obra de Bismarck foi o seu sistema de equilíbrio europeu.
Depois da formação do II Reich e percebendo a inquietação das outras
potências – que viam surgir no horizonte próximo um gigante militar,
industrial e demográfico – tratou de as tranquilizar. Era um conservador
realista e, ao contrário dos conquistadores revolucionários – como
Napoleão e, depois, Hitler –, Bismarck entendia que, uma vez atingidos
os seus objectivos, unida a Alemanha, não era bom nem útil prosseguir
com conquistas.
Para
serenar os vizinhos sobre as suas intenções e as da Alemanha,
estabeleceu com a Rússia (que conhecia bem dos seus três anos como
Embaixador) e com a Áustria a Liga dos Três Imperadores, explorando a
identidade ideológica, conservadora e imperial de Berlim, S. Petersburgo
e Viena. Ao mesmo tempo, explicou bem aos Ingleses (que tinham
rivalidades com os Russos no Médio Oriente e no Oriente e tinham passado
pela Guerra da Crimeia) que não concorreria com eles à hegemonia naval
nem nos impérios coloniais. E tratou de compensar a França, vencida e
revanchista, encorajando-lhe os projectos coloniais – na Ásia, no Norte
de África e na África Equatorial. Fez também um tratado secreto com a
Rússia, o Pacto de Resseguro, em que Alemanha e Rússia se obrigavam
mutuamente a ficar neutrais em caso de guerra: a Rússia, em caso de
guerra da Alemanha com a França; a Alemanha, em caso de guerra da
Inglaterra com a Rússia.
Foi
este o sistema de Bismarck, que durou até 1890, ou até que Guilherme
II, o neto de Guilherme I, um jovem soberano obcecado por uniformes,
paradas militares e exibições de força, o demitisse. E em poucos anos
deu cabo da sua obra: denunciou o Tratado de Resseguro e criou uma
marinha de guerra que pretendia rivalizar com a Royal Navy, dando origem
a uma política de blocos ou de alianças rígidas – a Tripla Aliança e a
Entente Cordiale franco-britânica, depois também com a Rússia, que
levariam em 1914 à Grande Guerra e ao início das grandes confrontações
do século XX.
Como
escrevia Liddell Hart na sua História da Primeira Guerra Mundial, o
problema foi que os discípulos e sucessores de Bismarck “esqueceram-lhe
os princípios e recordaram-lhe apenas os métodos”. É o que mais
acontece.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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