Contando com a falta de firmeza dos EUA, o regime comunista chinês joga sujo e eleva as tensões na Ásia. Dagomir Marquezi para a Oeste:
Em
1517, uma caravela portuguesa passava pelo Mar do Sul da China quando
seus tripulantes avistaram uma grande ilha ainda não registrada em seus
mapas. Deram a ela o nome de Formosa. Traduzido, virou Taiwan.
No
século 17, Taiwan foi ocupada por 40 anos pelos holandeses. Chegou a
ter 20 anos de independência. (Não funcionou.) Em 1662, os chineses
chegaram e dominaram a ilha por dois séculos. Em 1894, os japoneses
expulsaram os chineses. Com o fim da 2ª Guerra, e os japoneses
derrotados, Taiwan foi anexada à China pelas próprias forças aliadas,
que esperavam que o país fosse governado pelo partido nacionalista, o
Kuomintang, de Chiang Kai-shek. Seguiu-se uma guerra civil e, em 1949, a
China foi dominada pelos comunistas de Mao Tsé-tung. Os nacionalistas
de Chiang Kai-shek se refugiaram em Taiwan. Formaram-se dois países, a
República Popular da China (de Mao) e a República da China, sob o
governo do Kuomintang.
No
início, Taiwan dava as cartas, reconhecida pela grande maioria dos
países. Era dela a cadeira da China na ONU. Mas a situação foi ficando
insustentável. A ilha tinha menos de 18 milhões de habitantes, enquanto a
China comunista tinha 848 milhões. Em 1972, aconteceu o histórico
encontro de Richard Nixon com Mao Tsé-tung. Sete anos depois, os Estados
Unidos e a ONU passaram a reconhecer a RPC como a verdadeira China.
Taiwan virou um Estado pária. Mesmo assim, Taiwan conseguiu se afirmar
como um país próspero, produtor de equipamento de alta tecnologia e
democrático (desde 1987), com 13 partidos políticos registrados.
Do
tamanho da Holanda, com 23,6 milhões de habitantes, Formosa é separada
da China por 160 quilômetros pelo canal de Taiwan — 80 quilômetros para
cada lado. Hoje os taiwaneses olham para o canal com a consciência de
que não existe outro lugar no mundo onde uma guerra brutal entre
potências nucleares pareça cada vez mais próxima.
A
China quer “retomar” Taiwan. E quando os governantes comunistas
chineses decidem uma coisa costumam cumprir. Foi o que eles fizeram no
Tibete (ocupado em 1950). É o que estão fazendo agora mesmo em Hong
Kong. Invadem, anexam e apontam o próximo alvo. Depois de Hong Kong
chega a vez de Taiwan.
Dan
Blumenthal, em seu livro The China Nightmare — The Grand Ambitions of a
Decaying State (“O Pesadelo Chinês — As Grandes Ambições de um Estado
Decadente”), descreve o ponto de vista dos comunistas. Eles têm apenas
uma costa marítima, onde estão concentradas suas maiores atividades
econômicas, suas maiores cidades e seus maiores portos exportadores.
Observam as forças norte-americanas estacionadas no Japão, na Coreia do
Sul e na ilha de Guam. Sentem-se ameaçados pelas parcerias de segurança
com Filipinas, Singapura e até com um ex-aliado, o Vietnã.
“É
claro que Washington e seus aliados veem as coisas de um jeito
diferente”, ressalta Blumenthal. “Eles acreditam que essas forças
militares, econômicas e diplomáticas avançadas dos EUA e as alianças
lideradas pelos norte-americanos mantiveram a Ásia em paz e criaram as
condições para a prosperidade da região. Os Estados Unidos procuram
reter sua posição como a principal potência na Ásia por meio dessa
contínua postura de diplomacia e defesa de forma a manter a região ainda
mais livre e aberta. Pequim quer esculpir uma esfera de influência que
possa controlar, mantendo a Ásia repressiva e fechada. Para isso, Pequim
está obcecada com a ‘reunificação’ nacional, que significa mais
precisamente retomar o que a dinastia Qing já possuiu.”
A
inspiração do regime comunista é a última dinastia imperial chinesa,
que durou quase 300 anos, entre 1644 até 1912. Dominava todo o
território atual da China, além de Hong Kong, Tibete — e Taiwan. Querer
pegar esses territórios de volta é como se a rainha da Inglaterra
decidisse que é hora de retomar a Índia, a Austrália, a África do Sul e o
resto do ex-Império Britânico, onde o “sol nunca se punha”.
Após
o reinado do “grande timoneiro” Mao Tsé-tung, a China teve a chance de
sair da ortodoxia política comunista com Deng Xiaoping entre 1978 e
1992. Foi Deng quem implantou com sucesso essa estranha figura chamada
de “socialismo de mercado”. Ele ficou conhecido pela ideia de que “não
importa a cor do gato, desde que pegue o rato”. Esse pragmatismo começou
a transformar a China de um país de camponeses miseráveis na potência
que conhecemos hoje.
Um
dos princípios da doutrina de Deng Xiaoping era conhecido como “um
país, dois sistemas”. Com essa garantia, Hong Kong foi entregue pelo
Reino Unido (em 1997) à China. Funcionou como um “respiradouro” para
Pequim, um lugar onde a liberdade política e econômica ajudava no
dinamismo do resto do país, mantido sob controle. Era com o princípio de
um país, dois sistemas que se negociava a fusão da China com Taiwan.
Mas Deng Xiaoping e sua visão de mundo hoje estão substituídos pelo
fantasma de Mao.
Xi
Jinping chegou ao topo do poder no Partido Comunista em 2012 com jeito
de estadista, antenado com as tendências do resto do mundo e disposto a
se integrar nos mercados. Mas revelou ser o oposto dessa esperança.
Interrompeu as reformas econômicas, fechou o país de uma vez, fortaleceu
o aparelho repressivo, transformou o controle dos cidadãos em objetivo
prioritário.
Segundo
Dan Blumenthal, os dirigentes do PCC ficaram muito assustados com os
eventos que levaram ao massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Foi o
mesmo ano em que o Muro de Berlim começou a ser derrubado e a União
Soviética a se desfazer. O professor de Ciência Política na Universidade
de Colúmbia Andrew J. Nathan concluiu que o Partido Comunista ainda
acredita que está sob “cerco de inimigos em casa em conluio com inimigos
do exterior. Que a reforma econômica deve ser substituída por
disciplina ideológica e controle social; e que o Partido vai ser
derrotado por seus inimigos se se permitir ser dividido internamente”.
Outro
cientista político, Minxin Pei, lembra que a União Soviética começou a
acabar quando as elites do país deixaram de acreditar no domínio de uma
ideologia morta. Segundo Minxin, a atual fúria repressiva é uma
demonstração de força do PCC. Mas pode facilmente ser interpretada como
um sinal de fraqueza. A catástrofe que eles causaram no mundo com a
covid-19 mostrou como “funciona” um sistema à base de medo e obediência
cega a um partido único.
Em
Taiwan, o velho Kuomintang (fundado em 1894) está enferrujado. Continua
achando que os dois países se unirão pacificamente em bases de
igualdade. Perdeu as duas últimas eleições presidenciais para uma
candidata (Tsai Ing-wen) que prega uma relação menos inocente com a
China de Xi Jinping.
Segundo
pesquisa realizada pelo instituto Pew Research no ano passado, 66% da
população de Taiwan não se considera “chinesa”. No grupo entre 18 e 29
anos, essa parcela sobe para 83%. A grande maioria quer ser apenas
taiwanesa e viver num país independente, livre e próspero.
O
ex-presidente Donald Trump desenvolveu uma política mais concreta (e,
segundo os críticos, meio atrapalhada) de apoio a Taiwan. Fez gestos de
envolvimento direto com a segurança da ilha. É uma situação inusitada:
os EUA têm de garantir a segurança de um país com o qual não mantêm
relações diplomáticas plenas contra um de seus maiores parceiros
comerciais.
O
jornalista Alan Patterson, autor de China’s Next Target: Taiwan
(“Próximo Alvo da China: Taiwan”), lembra que em agosto de 2020, segundo
o jornal Taipei Times, a China estava lançando 30 milhões de
ciberataques mensais à estrutura governamental de Taiwan.
No
último 18 de setembro, o governo Donald Trump enviou um grupo de altos
funcionários a Taiwan. Foi o encontro de mais alto nível entre os dois
países desde 1979. Enquanto os funcionários norte-americanos estavam na
ilha, a China resolveu dar um susto e mandou 18 bombardeiros e caças
para o estreito. No dia seguinte, outros 19 aviões de ataque. Alguns
deles penetraram o espaço aéreo taiwanês. Em poucos dias o ministério
das Relações Exteriores da China comunicou que já não reconhecia mais a
linha que divide os dois países.
Segundo
matéria do especialista em armamentos David Axe, da revista Forbes, os
Estados Unidos continuam uma força militar muito superior à China. Mas
os chineses conseguiram uma solução poderosa e relativamente barata para
equilibrar o conflito: o DF-26. Com o DF-26, a China pode arrasar
rapidamente as defesas de Taiwan e simultaneamente ameaçar ou mesmo
atacar a grande base norte-americana na ilha de Guam. Esses mísseis são
apelidados pelos militares norte-americanos de “matadores de
porta-aviões”. O Pentágono calcula que a China tenha uma força de 200
mísseis DF-26. E o ritmo de produção só se acelera.
Outra
arma chinesa que provoca preocupação é o míssil hipersônico DF-17, que
atinge velocidades de 6.000 a 12.000 quilômetros por hora (ou seja, 1,7 a
3,4 quilômetros por segundo). Não existe defesa para uma arma dessas. A
estratégia dos chineses inclui resolver rapidamente a invasão de Taiwan
e manter norte-americanos e aliados a distância, sem possibilidade de
intervenção direta.
O
objetivo da China é bem claro, segundo Alan Patterson: “A China está
mirando Taiwan como parte de seu plano de controlar a costa ocidental do
Oceano Pacífico. Capturando a ilha, quebraria a chamada Primeira
Cadeia, incluindo o Japão e outras ilhas que impedem a expansão da China
no Oceano Pacífico. A tomada de Taiwan afetaria alianças dos Estados
Unidos com nações parceiras na Ásia, potencialmente levando esses países
mais para perto da China ou iniciando um conflito nuclear”.
O
sistema de defesa de Taiwan é considerado “anêmico”. O país depende
demais dos EUA. Possui apenas quatro submarinos, dois deles com design
do tempo da 2ª Guerra. Taiwan gasta com defesa US$ 13 bilhões por ano. A
China, US$ 200 bilhões. Analistas militares norte-americanos
convenceram os taiwaneses a comprar equipamento mais barato e efetivo:
minas, armas antissubmarino e drones. Taiwan já teve um programa
nuclear, encerrado em 1988. Existem boatos de que o país teria tido
tempo de produzir uma ou mais bombas nucleares como última cartada
contra a invasão chinesa. Mas essa possibilidade por enquanto está
apenas no terreno das teorias conspiratórias.
A
política dos EUA é bem ambígua com relação a Taiwan. Não garante
explicitamente que vai defender a ilha em caso de ataque. O governo
Trump estabeleceu com o governo da ilha um acordo de “seis garantias”,
uma continuação de promessas feitas pelo ex-presidente Ronald Reagan em
1982. Mas são garantias que parecem cada vez mais impotentes diante da
agressividade do governo chinês.
Ian
Easton, autor de The Chinese Invasion Threat (“A Ameaça de Invasão
Chinesa”), acha que os EUA devem antes de tudo parar de ser ambíguos:
“Quando os Estados Unidos são claros sobre sua disposição de proteger
seus amigos, até os piores ditadores cedem para não arriscar a
sobrevivência de seu regime. […] Guerras acontecem só quando ditadores
ambiciosos enxergam a indecisão norte-americana e erram no cálculo. Foi
por isso que, em 1950, Kim Il-sung invadiu a Coreia do Sul. Foi por isso
que, em 1990, Saddam Hussein invadiu o Kuwait. É por isso que, na
década de 2020, Xi Jinping vai provavelmente invadir Taiwan, se nada
mudar”.
O
ex-subsecretário de Defesa dos EUA Paul Wolfowitz deixou isso claro: “A
melhor maneira de prevenir uma guerra é ameaçar uma guerra”. E lembrou
que os militares norte-americanos em 1950 achavam que a península
coreana tinha “pouco valor estratégico” e que uma intervenção militar no
país seria “impraticável”. Joseph Stalin levou a sério a conclusão dos
EUA e deu sinal verde para que a Coreia do Norte invadisse a do Sul, sob
o comando de Kim Il-sung. A indecisão dos Estados Unidos abriu caminho
para uma guerra horrível. E, 71 anos depois da invasão, o neto de Kim
Il-sung, Kim Jong-un, ameaça explodir armas nucleares em território
norte-americano.
No
fim de semana de 23/24 de janeiro deste ano, a China deu suas “boas
vindas” ao governo Joe Biden enviando uma esquadrilha de quatro caças,
oito bombardeiros e dois aviões antissubmarino até o espaço aéreo de
Taiwan. O porta-voz do Departamento de Estado deu uma resposta branda a
Pequim, pedindo um “diálogo significativo com os representantes
democraticamente eleitos de Taiwan”. E convidou um representante de
Taiwan para a posse do novo governo — o que não acontecia desde 1979.
Boa
parte dos chineses — talvez a maioria — não tem o menor interesse em
arriscar seus negócios com uma guerra que promete ser devastadora. Não
foram convidados a decidir se querem invadir Taiwan ou não. As decisões
pertencem exclusivamente à cúpula do Partido Comunista.
No
meio disso tudo, existe uma agenda pessoal de Xi Jinping. O
ex-primeiro-ministro da Austrália Kevin Rudd escreveu para a revista
Foreign Affairs que o secretário-geral do PCC tem planos de ficar no
poder até 2035. Xi pretende entrar no panteão sagrado dos “grandes
timoneiros”, conquistando o que Mao não conseguiu — Taiwan.
Para
Kevin Rudd, o governo chinês calcula que ainda não chegou o momento de
expulsar os norte-americanos da Ásia. Deverá manter algum diálogo básico
com Washington para ganhar tempo, confiante em que o tempo trabalha a
favor dos chineses. Especialmente com o atual domínio do Partido
Democrata no governo.
A
própria China tem hoje uma elite econômica que prefere fazer compras na
Gucci a se meter em abrigos antiaéreos. A ditadura chinesa pode ser
tentada a usar a cartada da guerra com o propósito de unir a população. A
ditadura militar argentina fez isso em 1982, colocando as Forças
Armadas para invadir as Ilhas Falkland/Malvinas. Achou que a população
ia carregar os generais nos ombros tremulando a bandeira nacional. Não
deu muito certo.
Alguns
analistas acreditam que a guerra não será necessária. A China poderá
infernizar tanto a vida dos taiwaneses que eles mais cedo ou mais tarde
terão de entrar num acordo de submissão. Seria “a vitória sem luta”
prevista por Sun Tzu no seu célebre A Arte da Guerra. Ou “a morte pelos
mil cortes”, um tradicional método chinês de tortura e execução abolido
em 1905.
A
repórter Kathrin Hille, do jornal Financial Times, sugere que a China
poderá dominar o Mar do Sul da China usando “a tática do salame” — uma
fatia de cada vez, sempre chegando à beira da guerra e recuando. “Você
ganha o controle sobre espaços cada vez maiores e força seus adversários
e vizinhos a aceitar um novo status quo, que está sempre mudando com
sutileza.” Em abril do ano passado, por exemplo, a China batizou 25
ilhas e recifes e 55 locações submarinas numa região em disputa, como se
fosse tudo seu.
Yomou
Lee, da agência Reuters, reportou que barcos chineses chegam às
centenas às ilhas Matsu (que pertencem a Taiwan) com equipamento pesado
de dragagem. Levam toneladas de areia sem pedir licença, destroem a vida
marinha e os cabos submarinos de comunicação entre as ilhas, espantando
os turistas no processo. Parte da areia é usada em construções no
continente. Outra parte serve para criar ilhas artificiais, às vezes
sobre corais. Essas muitas ilhotas artificiais podem servir como bases
militares para apoiar a invasão.
Passaram-se
504 anos desde que a anônima caravela lusitana batizou a “Ilha
Formosa”. E aparentemente Taiwan nunca foi tão ameaçada em toda a sua
história quanto neste século 21. A China de Xi Jinping enxerga o mundo
como um tabuleiro de War.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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