Artigo da professora Isabela Passos, publicado pelo Estado da Arte:
Alguns
podem pensar que esta não seja uma discussão realmente importante ao
debate público, por entender como exagero ou conversa de maluco. Quem,
em sã consciência, poderia cogitar a ideia de abster-se de proteger a si
e a todos que ama? Ainda mais por se tratar de uma doença com riscos
significativos à saúde e à vida de seus infectados? Esse é um tipo de
negativa que só pode alcançar aqueles que não entenderam as implicações
de um vírus amplamente disseminado para o qual ainda não há anticorpos
disponíveis.
Embora
o debate pelo “direito de não tomar vacina” seja motivado,
principalmente, pelos deseducados para o autocuidado, para o respeito
pelas regras sanitárias e para a prática distanciamento social que visam
controlar o avanço do coronavírus, ainda assim, há um espaço legítimo
de discussão, tendo em vista uma razoável desconfiança contra
laboratórios e instituições de saúde. Quem lida com bioética conhece bem
algumas das atrocidades ocorridas na silenciosa relação entre médicos,
pesquisadores, pacientes e sujeitos de pesquisa. Contudo, diferentemente
das versões conspiratórias dos cavaleiros do apocalipse, é conhecido
também os vários mecanismos introduzidos nas investigações
médico-científicas, a fim de conferir maior segurança e confiabilidade
aos seus resultados e produtos. Porém, tal realidade não significa que
toda vacina seja 100% segura. De fato, não é. A medicina é uma ciência
probabilística e a vacina uma estimulação artificial passível de
limites, considerando que cada organismo humano reserva a si seus termos
de equilíbrio. Há uma complexidade incômoda no encontro da episteme
médica com o alvo do benefício da sua arte e ter tal compreensão nos
livra da tirania ingênua de exigir que a ciência nos entregue o que ela
ainda não pode nos entregar. Por outro lado, também nos motiva a
celebrar cada uma de suas conquistas, enquanto avanços de inventividade,
proteção e promoção da ecologia humana.
"A Medicina é a mais humana das ciências e a mais científica das Humanidades" (Edmund Pellegrino, 1920-2013). |
Outro ponto que pode ter engrossado essa querela contra as vacinas é o fato de que, nossa geração não teve que lidar seriamente com incertezas associadas a doenças infecciosas. Somos uma geração imune a muitas moléstias, em decorrência de um longo histórico de campanhas vacinais, inclusive, com erradicação de algumas enfermidades bastante nocivas ao nosso organismo. No entanto, por incrível que pareça, esse fato pode ter feito surgir uma atitude desleixada por parte de muitos que vivem como se infecções não existissem ou que não trouxessem consequências graves aos infectados. Aquele que nega a necessidade de imunização por meio da vacina parece viver num mundo fantástico, onde doenças indesejáveis desaparecem num passe de mágica. Contudo, o atual coronavírus não é um elemento fictício ou de fácil superação. Estudos indicam que até 40% das pessoas que contraíram a Covid-19 apresentam sequelas neurais, denotando tratar-se de vírus intrusivo neuronal. Em apenas dez meses, o Brasil já registra quase 180.000 mortes, e, além deste número alarmante, teremos que lidar futuramente com os desdobramentos associados às sequelas de quem sobreviveu à Covid-19.
Criança de Bangladesh com varíola, 1973 |
Com este panorama em vista, podemos perguntar: por que cada um de nós deveria então vacinar-se contra a Covid-19? Esclareço que não me interessa aqui discutir a obrigatoriedade do autocuidado e a existência do paternalismo justificado. Quanto ao cuidado, cada um deveria ser o mais radical protetor de seus melhores interesses e dos interesses de bem-estar daqueles que ama. Cuidar de si e do outro expressa integridade moral e, portanto, deveria ser uma premissa moralmente desejável por cada um de nós. No caso da vacina contra a Covid-19, em resumo, quero ressaltar a moralidade de não causar prejuízo aos outros, uma vez que existem pessoas que não poderão se proteger de um risco relacionado à comunidade não imune da qual fazem parte. Liberais como Stuart Mill (1806-1873) e Joel Feinberg (1926-2004) não teriam qualquer dificuldade em persuadi-lo a respeito de sua responsabilidade em não gerar danos a pessoas iguais a você.
Nesse
sentido, é preciso lembrar que há pessoas que por inúmeros motivos não
podem vacinar-se. Estariam enquadrados nesta categoria, os neonatais,
aqueles com imunidade comprometida por razões médicas intransponíveis ou
as pessoas vulneráveis a algum componente da vacina. Indivíduos nessas
situações estão inocentemente vulneráveis ao vírus, independente de
desejarem vacinar-se ou não. Já que não podem ser submetidos à
vacinação, dois caminhos deverão ser tomados por eles: retirar-se da
comunidade humana evitando o malefício potencial pelo contato com
pessoas potencialmente infectadas (principalmente, os assintomáticos) ou
pertencer a uma comunidade onde exista a imunidade coletiva, a
famigerada “imunidade de rebanho”.
É
por considerar as pessoas impedidas de serem vacinadas que a
obrigatoriedade moral da vacinação deve ser assimilada como
responsabilidade individual, tendo como base o dever de não prejudicar
cada um dos indivíduos formadores de uma comunidade ou sociedade. E este
é um imperativo contra o qual não há um argumento moralmente
defensável, ainda mais, no que concerne à exposição de pessoas
vulneráveis e, desta forma, os mais suscetíveis aos riscos. Se nossas
escolhas autônomas e livres prejudicam outras pessoas — colocando em
risco à saúde pública ou exigindo recursos escassos para tratamentos
desnecessários, por exemplo — outras pessoas devem restringir nosso
exercício de autonomia e liberdade. E na condição de você ainda
sentir-se no direito de não se vacinar, direito legítimo, também há dois
caminhos que você pode tomar: retirar-se da comunidade humana já que
constituiria um risco potencial aos grupos não imunes — pessoas tão
dotadas de direitos quanto você —, ou arranjar um dispositivo que lhe
eximisse de ser um potencial transmissor de patógeno aos outros. Quem
sabe um moderno escafandro?
Com efeito, podemos colocar nosso problema relacionado à vacinação da seguinte maneira:
1. As doenças contagiosas podem resultar em danos (não triviais) e podem ser transmitidas a outras pessoas por meio de ações mesmo não intencionais (pelos assintomáticos).2. Isso pode ser evitado com antecedência através da vacinação de indivíduos potencialmente transmissores da carga viral (onde exista vacina disponível).3. Temos a obrigação moral de não causar danos aos outros por meio de nossas ações ou omissões.4. Considerando os tópicos 1 e 2, um indivíduo pode reduzir o risco de causar prejuízos (não triviais) a outras pessoas por meio da vacinação para doenças imunopreveníveis.
Logo:
tendo em vista as premissas 3 e 4, somos moralmente obrigados a receber
vacinas contra doenças contagiosas (graves), quando disponíveis. E a
vacina contra Sars-CoV-2 virá em breve.
É
claro que há muitas questões a serem exploradas diante de uma
problemática como a vacinação em massa. No entanto, o apoio à
obrigatoriedade da vacinação vem do fato de que, ao negar a vacina, o
indivíduo não coloca em risco apenas a sua saúde. Deixar de vacinar-se
não é como deixar de consentir com uma transfusão de sangue. Neste
último caso, em tese, é apenas o próprio indivíduo que é prejudicado,
mas opondo-se à vacinação, outros podem ser prejudicados como resultado
da escolha desse indivíduo. Aguardemos, então, a chegada da vacina
contra o Sars-CoV-2 não deixando também de receber aquelas que já estão
disponíveis no programa de imunização de nosso país.
Isabella Passos é professora de Filosofia e pesquisadora em Ética Aplicada (FAJE e UFSJ
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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