Há
mais de cem anos, o economista americano Frank Knight fez uma distinção
entre risco e incerteza que é válida até hoje. O conceito de risco se
restringe a situações em que possíveis desfechos futuros são mensuráveis
e, por consequência, previsíveis, diz ele. Já a incerteza se refere a
situações em que não se conhecem as probabilidades nem os desfechos
futuros são mensuráveis. Por isso, ela envolve acontecimentos cujos
efeitos não são conversíveis em riscos calculáveis.[1]
Assim,
se com relação aos riscos de algum modo é possível preparar-se para as
surpresas deles advindas, com as incertezas isso é impossível. Que
capacidade têm então os governos de gerir situações de incerteza e de
preparar a sociedade paras as surpresas que a esperam? Como todas as
incertezas, a pandemia trouxe vários problemas que nos surpreenderam e
para os quais ainda não temos respostas plausíveis. Neste texto, destaco
três problemas.
O
primeiro está na interface entre poder político e conhecimento
científico. Em face do incerto, do desconhecido, do não mensurável e do
incontrolável, essa tensão entre o processo de tomada de decisões
políticas e um saber científico disponível ainda insuficiente está
levando as instituições governamentais a sofrerem mudanças estruturais.
Elas estão passando de um período em que estavam acostumadas a tomar
decisões, a emitir ordens e a comandar com base em saberes e rotinas bem
estabelecidas para um período em que agora devem se dedicar a aprender,
ao mesmo tempo em que decidem, de forma experimental e reversível, uma
vez que os sistemas e instrumentos de previsão, prevenção, antecipação e
precaução têm se revelado limitados.
Em
tempos de mercados conectados e inovações técnico-científicas
emergentes cujas consequências ainda são imprevistas, ou não são de todo
controláveis, as instituições governamentais têm enfrentado crescente
dificuldade para identificar pequenas mudanças que ocorrem em um sistema
social ou econômico e que vão, com o tempo, convertendo-se em grandes
transformações, com efeitos cascata e riscos encadeados. Já estressadas
pela queda abrupta do nível de atividade econômica e pelo aumento do
desemprego e da pobreza, as instituições parecem ter cada vez menos
respostas para problemas complexos.
Diante
de tantas incertezas trazidas pela pandemia, como as experiências
passadas não ajudam muito na orientação de decisões atuais, o desafio é
investir em conhecimento futuro e inteligência compartilhada, afirmam
filósofos e cientistas políticos. Contudo, esse caminho tem uma faceta
paradoxal: se os problemas socioeconômicos vitais hoje exigem uma alta
dose de conhecimento científico para serem enfrentados, uma virtude
carente entre os políticos, a política só passa ser possível por meio de
um recurso contínuo ao saber especializado.[2]
Há quem afirme a relação entre política e ciência não deveria ser
encarada nos termos de submissão de uma pela outra, mas, sim, como um
processo argumentativo. Contudo, se os problemas políticos podem ser
traduzidos na linguagem da ciência, não há uma tradução imediata dos
juízos científicos em decisões políticas.
Além
disso, a tensão entre saber científico e poder político abre caminho
para uma nova situação, em que as autoridades públicas carecem de
conhecimento técnico-científico, enquanto as autoridades privadas, que
têm esse conhecimento, carecem de legitimidade política. Dito de outro
modo, quem pode e tem legitimidade, não sabe. E, quem sabe, não tem
poder nem legitimidade. Nesse contexto, emergem questões envolvendo
finanças, comércio e proteção ambiental, que são demasiadamente
importantes para serem entregues a organizações privadas e
demasiadamente sofisticadas para serem geridas por máquinas
governamentais tradicionais.
Já
o segundo problema está no fato de que muitas medidas tomadas pelos
Estados nacionais sob a justificativa de combater a pandemia e preservar
a saúde pública estão trazendo várias dificuldades à democracia e aos
direitos humanos. Na medida em que ampliam o poder de militares e a
vigilância sobre cidadãos, por exemplo, levam a uma tendência de
banalização da urgência do presente e de desinstitucionalização do
social, sob a forma de cerceamento da liberdade de expressão e de
restrições de circulação crescentes e de prazo indefinido.
Como
na narrativa do filme O Ovo da serpente, de Bergman, o perigo é que
medidas jurídicas adotadas em caráter excepcional e justificadas em nome
de estado de necessidade ou de estado de emergência acabem se
convertendo na situação normal da democracia.[3]
O risco, em outras palavras, é que o excepcional se sobreponha ao
normal — ou seja, que o constitucionalismo democrático, concebido para
“tempos normais”, seja perenizado por um constitucionalismo de exceção
marcado pela suspensão de direitos, pela aplicação seletiva de direitos e
pela restrição do acesso aos tribunais para a defesa de direitos
previstos pela ordem legal.
O Ovo da Serpente |
Por
fim, o terceiro problema diz respeito ao alcance da pandemia e a seu
impacto no fortalecimento de um novo padrão de governança global. Por
ter um caráter transterritorial, a pandemia acelerou a relativização de
conceitos e princípios que já vinham sendo impactados pela mundialização
da economia, levando o Estado nacional a passar de uma posição central e
dominante para uma posição de compartilhamento de parcerias em conjunto
com diferentes atores públicos e privados.
É
esse, por exemplo, o caso do princípio da soberania, que hoje tem um
caráter paradoxal, por se encontrar a um só tempo dentro e fora da ordem
política nacional. Nesse sentido, a passagem do paradigma estatal da
governabilidade para o conceito de governança interliga-se com uma
orientação na qual o direito já não é concebido como elemento de um
modelo em pirâmide da regulação política, mas tem por base uma concepção
flexível, negociada, relativista e pragmática de ordem jurídica.[4]
Assim, à medida que a interdependência entre Estados nacionais e
organismos multilaterais, organizações financeiras internacionais e
agências de classificação de risco vai aumentando, do mesmo modo como as
fronteiras vão se tornando mais difusas e ganhando identidades
múltiplas e porosas, a produção jurídica tende a se deslocar para
instâncias não legislativas.
Igualmente,
os mecanismos deliberativos da democracia vão sendo substituídos por
sistemas de peritagem. A titularidade dos parlamentos também se desloca
progressivamente para sistemas intergovernamentais e para comunidades
epistêmicas, integradas por especialistas, consultores, centros de
pesquisas e think tanks. Comum à concepção moderna de Estado de Direito,
o reducionismo do direito ao direito positivo e, deste, ao direito
constitucional cede vez a um pluralismo jurídico constituído pelos
processos de transterritorialização dos mercados, de europeização e de
mudança social, sob a forma de uma nova lex mercatoria, direitos
transnacionais, códigos de ética corporativa e mecanismos alternativos
de resolução dos conflitos Por fim, a exaustão funcional das categorias
e procedimentos tracionais de direito exige novas formatações jurídicas
com base em domínios transversais e transdisciplinares do conhecimento
jurídico.
Desse
modo, se governar no período de formação dos Estados nacionais envolvia
o problema do poder e a imposição de uma ordem, governar agora, neste
período de pandemia e de interações complexas, é administrar a
impotência, é promover uma gestão coletiva das incertezas.[5]
Em termos concretos, isso significa aprender a conviver com
bifurcações, rupturas e riscos. Também exige instituições governamentais
capazes de reconhecer quer o potencial quer as limitações do
conhecimento. E ainda implica sistemas híbridos de governança, que
incluem uma combinatória entre autorregulação, por um lado, e supervisão
pública, por outro.
Na
realidade, a pandemia mostrou o preço amargo da crescente uniformização
das políticas econômicas nacionais adotadas nas duas últimas décadas
decorrentes da globalização dos mercados. Por estar voltada basicamente a
resultados de curto prazo, ao máximo de lucro possível no menor tempo,
corroeu os mecanismos de planejamento de médio e longo prazo, fundados
em processos de mobilização de capitais e de distribuição ótima de
recursos e meios a partir de objetivos dados, cuja fixação decorre de
vontade política orientada por um projeto.
Na
Europa, por exemplo, os países mais atingidos pela pandemia foram os
que tinham, após a crise financeira de 2008, seguido o receituário de
forte austeridade fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional,
pelo Banco Mundial e pelo Banco Central Europeu, que incluiu, entre
outras medidas, redução de políticas econômicas anticíclicas e
transferência de serviços essenciais para o mercado, convertendo-os em
negócios para a iniciativa privada. Por isso, a pandemia pegou esses
países em um período de fragilização do sistema público de saúde pública
e das redes de proteção dos mais penalizados pelas consequências
daquela crise, que ficaram sem condições de arcar com planos de
assistência médica.
Combalidas
as políticas públicas nacionais, a começar pelas econômicas, também a
governança internacional se mostrou frágil, como revela a falta de
acordos abrangentes para a produção e disponibilização de vacinas como
um bem público global em condições de ser distribuído equitativamente
entre os vários países e populações. Pelo contrário, as relações de
força, as assimetrias econômicas e tecnológicas e as pressões
geopolíticas parecem ter configurado um cenário mais de anarquia e
oportunismo que de solidariedade institucionalizada por um direito
global e pelas organizações internacionais.
Se
os três problemas aqui apontados já são difíceis de serem enfrentados
em democracias consolidadas, nas quais cidadãos impactados por uma
decisão governamental devem poder dela participar, o que dizer então com
relação a países em que a democracia ainda não é sólida e o governo é
inepto, inconsequente e irresponsável?
Notas:
[1] Cf. Frank Night, em Risco, incerteza e lucro, Rio de Janeiro, Editora Expressão e Cultura, 1972. A obra original é de 1921.
[2] Para este e para o próximo parágrafo, ver Daniel Innerarity, Pandemocracia, Barcelona, Galaxia-Gutemberg, 2020.
[3]
Cf. José Eduardo Faria, Vacina, ciência e democracia, in Estado da
Arte, jornal O Estado de S. Paulo, edição de 28 de outubro de 2020. <
https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-vacina-ciencia-democracia/>.
[4]
Cf. Chris Thornhill, The sociology of law and the global transformation
of democracy, Cambridge, Cambridge University Press, 2018A. Casimiro
Ferreira, Sociologia das constituições: desafio crítico ao
constitucionalismo de exceção, Porto, Vida Econômica, 2019.
[5] Ver Daniel Innerarity, op. cit. e Thornhill, op. cit.
José
Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria
Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP). É professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos
ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012, além de Prêmios Esso de
Jornalismo (1974 e 1976).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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