Lúcia Guimarães
Folha
Os Estados Unidos têm dois presidentes neste dezembro sombrio. Um ocupante legítimo do cargo, que perdeu a eleição de novembro e estrebucha em transe nas redes sociais, repetindo que é vitorioso, apesar de ter sido derrotado 52 vezes nas ações judiciais que moveu, nas últimas semanas. E o presidente eleito, que ainda não tomou posse, mas faz pronunciamentos diários sobre a pandemia, a economia ou a defesa.
Joe Biden não tem o poder de fato, mas tem a atenção da maioria, no momento em que o país mergulha no pior inverno do último século.
IMPUNIDADE – À medida que a transferência de poder se aproxima, cresce o debate sobre o dilema da impunidade na possivelmente mais corrupta Presidência em 240 anos da República. E a escala da corrupção, na Casa Branca e no gabinete, só será conhecida quando o próximo governo fizer um inventário da ruína que herdar.
É um debate que espera o Brasil, já que o capitão presidente decidiu plagiar a opção pela morte em massa feita pelo ídolo americano que o ignora. O que é mais importante, promover reconciliação, nos escombros de duas Presidências dantescas, ou fazer justiça?
No caso americano, a coleção de provas é farta e deve aumentar. O impeachment é real, passou pela Câmara há um ano e só não removeu o presidente porque o Senado é controlado pelo partido que abriu mão da Constituição.
DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA – Biden tem sido cobrado em entrevistas sobre a intenção de levar seu antecessor à Justiça. Conciliador por temperamento, ele tem se livrado da pressão com um argumento irrefutável: o Departamento de Justiça é o único ministério que deve funcionar sem interferência política da Casa Branca, não é uma milícia vingadora. Mas Biden sinaliza também que a prioridade é superar a pandemia, recuperar empregos, cicatrizar as feridas do país.
Na terça-feira (8), um deputado da Luisiana da equipe democrata de transição anunciou que assessora o presidente eleito na criação de um cargo incomum. É uma espécie de embaixada para engajar, não uma nação estrangeira, mas o país dentro do país habitado por conservadores.
Biden se vê como unificador, um papel difícil de conciliar com um cenário em que o atual presidente, seus três filhos mais velhos e múltiplos altos funcionários do atual governo estejam na mira de intimações judiciais.
JUSTIÇA AUTÔNOMA – Mas presidentes americanos não controlam a Justiça de estados e cidades. Trump e família já são alvo de duas investigações. O procurador de Manhattan investiga o presidente por crime de fraude fiscal. A procuradora do estado de Nova York conduz uma investigação civil que também envolve declarações de renda do presidente e pode arrastar a filha Ivanka Trump —até 2016, executiva da empresa da família.
Países que emergem de ditaduras ou traumas nacionais lidam de forma diversa com o acerto de contas. Até hoje, a narrativa oficial americana era a do farol da democracia, apesar da profunda injustiça racial que só começou a ser enfrentada há meio século. Mas o país nunca teve um período de ruptura democrática intenso como o que viveu nos últimos quatro anos. O impulso de justiça e reparação enfrenta a realidade de uma população expressiva que votou por mais quatro anos de Trump.
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