A política de apaziguamento transformou a China numa potência militar, tecnológica e econômica imbuída de um temerário projeto de expansão imperialista. Coluna de Flavio Gordon para a Gazeta do Povo:
“Para se chegar à vitória, é preciso cegar e ensurdecer o inimigo, tapando-lhe olhos e ouvidos, e distrair seus comandantes criando confusão em suas mentes” (Mao Tsé-tung)
“Bill,
a China não é uma ameaça” – foi o que, nos escritórios da Agência de
Inteligência e Defesa (DIA) dos EUA, o seu diretor, tenente-general do
Exército americano, disse ao jornalista Bill Gertz no longínquo ano de
1999. Estranhando a opinião inusitada, o repórter do Washington Times,
especializado em segurança nacional, quis saber o motivo. E
surpreendeu-se com a resposta do oficial do Pentágono: a China não era
uma ameaça porque seus líderes assim o garantiam.
“Fique
chocado” – confessa Gertz. “À época, esse tipo de retórica apaziguadora
era comum entre políticos e até mesmo agentes civis de inteligência,
que, por anos, minimizaram o perigo de uma ditadura comunista
nuclearmente armada. O que espantou foi ouvir essa linha de raciocínio
de um dos mais experientes e graduados oficiais de inteligência do país,
sujeito que, de sua posição, controlava as políticas de defesa e
segurança nacional do governo e do exército americanos”. O episódio
motivou-o a escrever Deceiving the Sky: Inside Communist China’s Drive
for Global Supremacy (Encounter Books, 2019), livro absolutamente
inescapável para quem quer compreender o que se passa no mundo
contemporâneo e vislumbrar os cenários pós-pandemia.
O
título – Deceiving the Sky (“Enganando o céu”) – faz referência a uma
velha estratégia militar chinesa, resumida no lema: “Engane o céu para
cruzar o mar”. Reza a lenda que, há muito tempo, um certo imperador
hesitava por iniciar uma campanha militar contra a vizinha Koguryo (hoje
Coreia). Então, um de seus generais convenceu-o a jantar na casa de um
rico camponês. Quando o imperador entrou na casa, ela se moveu. O filho
do Sol fora enganado, embarcando num navio rumo à frente de batalha. Em
vez de desembarcar, ordenou que seus exércitos avançassem, e acabou
vencendo a guerra. Mais tarde, a lenda converteu-se no primeiro dos
famosos 36 Estratagemas chineses para a arte da guerra: “Tramas secretas
não são incompatíveis com atos explícitos, mas, ao contrário, neles se
disfarçam. A explicitude máxima disfarça o máximo segredo. Assim, para
cruzar o mar sem que o céu perceba, há que se mover livremente pelo mar,
mas agindo como se não pretendesse cruzá-lo”.
Para
Gertz – autor de vários best-sellers sobre o assunto, incluindo The
China Threat: How the People’s Republic Targets America, de 2000, no
qual apontava a ditadura comunista chinesa como a maior ameaça do século
21 –, a fala do diretor da DIA ilustrava um perigoso desconhecimento,
por parte de autoridades americanas, sobre a natureza do regime chinês e
suas ousadas pretensões à conquista de hegemonia mundial. Como era
possível que um homem com tantas divisas sobre os ombros apenas
confiasse nas garantias diplomáticas de um regime que, ademais de
nuclearmente armado, tem na desinformação estratégica o cerne de suas
relações internacionais? Sua perplexidade faz lembrar a de Anatoly
Golitsyn, o ex-oficial da KGB que, em obras como New Lies for Old, de
1984, e The Perestroika Deception, de 1995, deu murros em ponta de faca
para tentar alertar aos estrategistas do Ocidente sobre as sutilezas da
desinformação soviética em fins dos anos 1980, que os induziu a crer na
sinceridade das promessas de Gorbachev e camaradas quanto à “abertura”
ou à “liberalização” do regime.
Com
base num triunfalismo liberal pueril – segundo o qual a China se
abriria para a democracia e para as liberdades civis no momento em que
sua economia começasse a girar na rotação capitalista (ver, sobre isso,
The China Fantasy, de James Mann) –, pode-se dizer que a política de
apaziguamento vem desde, ao menos, Richard Nixon. Mas foi com os
governos de Bill Clinton e Barack Obama – passando pelo de George W.
Bush, que, nesse terreno, seguiu a mesma orientação – que a coisa
atingiu um novo patamar.
Sob
o governo Clinton, a tecnologia americana transferida (ou ilegalmente
desviada) para a China, totalizando centenas de bilhões de dólares por
ano, impediu que mísseis estratégicos chineses explodissem no
lançamento, e permitiu que o país comunista adquirisse expertise no
lançamento de satélites e Mísseis de Reentrada Múltipla
Independentemente Direcionada (MIRVs) coroados com ogivas nucleares. À
época, Clinton gabava-se de que o compartilhamento de tecnologia com a
China teria um impacto libertário sobre o regime. Segundo ele, uma China
conectada seria uma força democratizante. “Qualquer iniciativa para
controlar a internet será como tentar pregar uma gelatina na parede” –
chegou a brincar. Hoje, duas décadas depois da piadinha, a ditadura
comunista chinesa não apenas pregou a gelatina na parede como está
construindo, numa escala sem precedentes, um sistema totalitário de alta
tecnologia, capaz de controlar a internet (como já faz internamente) e,
em breve, possivelmente encurralar os mercados globais de tecnologia,
com o desenvolvimento da internet 5G, um combustível e tanto para o
setor de estratégia militar e para a prática de um mercantilismo
agressivo e predatório.
Com
Barack Obama e seu vice Joe Biden – cujos negócios da China são hoje
bem conhecidos –, as coisas pioraram. Em 2016, a política de
apaziguamento chegou ao ponto de a Casa Branca emitir uma ordem
proibindo que seus funcionários falassem publicamente sobre ameaças
militares e outras vindas da China. Durante a administração democrata,
houve um decréscimo alarmante de inteligência acumulada sobre o país
rival, e a América teve sua segurança nacional comprometida por conta da
negligência – e, em muitos casos, do acobertamento intencional – quanto
ao gigantesco assalto chinês à tecnologia americana. Ademais, a inação
do governo Obama facilitou o domínio da China sobre o Mar do Sul, com a
aquisição de 3,2 mil acres de novas ilhas, nas quais foram instalados
mísseis antinavios e antiaéreos extremamente avançados, num processo que
a própria CIA viria a chamar de “Crimeia chinesa”, comparando-o à
anexação, pela Rússia, da península ucraniana, em 2014.
A
política de apaziguamento, antes que “abrir”, “pacificar” ou
“liberalizar” a China, como projetava a utopia liberal-progressista,
tudo o que fez foi transformar o gigante asiático numa potência militar,
tecnológica e econômica imbuída de um temerário projeto de expansão
imperialista. Em 2012, com a chegada ao poder de Xi Jinping – de acordo
com Gertz, um admirador confesso de Mao Tsé-tung, Stalin e Hitler –, a
China retomou de vez suas raízes maoístas, endurecendo a ditadura
interna na medida mesmo em que, em vários fronts simultâneos, avança
agressivamente sobre todo o planeta – seja no terreno da guerra
comercial, da propaganda e da compra de consciências, da alta tecnologia
ou da guerra biológica. Diante dessa realidade, é alarmante notar o
grau de alienação das classes falantes e políticas brasileiras, que, com
pose de moderação e desprezo pelo que chamam de “teorias da
conspiração”, tomam dádivas chinesas como a Coronavac e o 5G da Huawei
por seu valor de face, nem sequer concebendo a hipótese de que possam
ser cavalos de Troia.
Deceiving
the Sky foi publicado em 2019, quando, evidentemente, ninguém ainda
podia imaginar que o mundo fosse ser assolado por uma pandemia vinda da
China. Hoje, depois de tudo o que sabemos sobre a atuação do governo
chinês desde o início da crise do coronavírus, considerando os
desdobramentos econômicos e geopolíticos convenientemente favoráveis ao
gigante asiático, bem como a insistência de grande parte do Ocidente
(incluindo o Brasil) na estratégia do apaziguamento, o livro de Bill
Gertz reveste-se de um novo sentido, perturbador, impactante e
frequentemente profético. E, enquanto o céu parece dormir, a China cruza
o mar em alta velocidade. Voltarei ao tema nos próximos artigos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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