A história da sociedade até os nossos dias não é a história da luta de classes, mas é a história... das estratégias singulares. Artigo do historiador Fernando Rezende, publicado pela Gazeta:
Durante
muito tempo, historiadores de laboratório – alguns ainda existem –
pensaram a formação da história das sociedades em termos de classes e/ou
estruturas. Para os pesquisadores econométricos ou classicistas, a
história humana é resultado de relações de grupos com outros grupos, de
corporações com corporações, de classes com classes. Como disse o pai do
materialismo histórico-dialético, Karl Marx, “a história da sociedade
até os nossos dias é a história da luta de classes”.
Dessa
perspectiva, a história deve ser entendida como uma equação, um cálculo
matemático. Porém, o que temos, em vez de números, são indivíduos
agrupados que simbolizam determinada força que, somada a outra força
(outros indivíduos agrupados), resulta em “X”, um evento histórico. A
matematização da sociedade promoveu o eclipse do indivíduo, reduziu a
experiência social, plural e multiforme às formas rígidas da matemática.
O indivíduo nessas teorias desaparece e dá lugar a termos gerais que
expressam movimentações gerais que supostamente fazem a história. A
“locomotiva da história” parece ser movida por forças impessoais de
acordo com essas teorias, mas, de fato, ela não é e nunca foi assim.
A
locomotiva da história, na verdade, é movida por indivíduos, pequenos
organismos vivos se relacionando de forma imprevisível, alternada e
distinta no tempo e no espaço. Apesar da ineficiência das teorias
estruturantes, o abandono delas na ciência da História ainda é muito
lento. Isso tem três motivos. Primeiro, as teorias estruturantes
promovem uma facilidade para compreender e apreender intelectualmente a
conflitante e frenética atividade histórica. Segundo, ela serve a um
propósito político que está radicalmente ligado à sobrevivência dessas
teorias. Por exemplo, não pode haver políticas socialistas, fascistas e
comunistas sem esses suportes teóricos que justificam certas ideologias.
Por fim, os autores que se opõem a essas teorias sacralizadas na
academia são quase sempre ignorados para preservar a honra dos
marxistas.
Um
autor muito ignorado na historiografia brasileira é Roger Chartier,
historiador francês vinculado à quarta geração da historiografia da
Escola dos Annales. Ele nasceu em 1945 e ainda está em atividade. Em seu
livro À beira da falésia – a história entre certezas e inquietude, no
capítulo sobre “A História entre narrativa e conhecimento”, Chartier
inicia seu texto citando uma famosa e aterradora constatação a respeito
da obsolescência das antigas formas de se pensar a formação da história.
Segundo Chartier,“o tempo das incertezas” chegou, em que os paradigmas
dominantes para se entender a história, como os “marxismos ou (...)
estruturalismos”, perderam definitivamente suas “capacidades
estruturantes”.
Como
isso pôde acontecer? Bom, a resposta, ironicamente, também é
matemática. Assim como os antigos físicos e matemáticos regulavam suas
suposições teóricas com a experiência prática, a experiência da vida
real na formação da história destruiu os créditos de que os marxismos e
estruturalismos gozavam na academia e na sociedade. Chartier defende em
seu livro que foram as recentes mudanças no mundo que desembocaram no
apagamento dos antigos modelos de compreensão e na quebra dos velhos
princípios marxistas de inteligibilidade histórica.
Para
Chartier, as teorias que agora estão abaladas podem ser definidas como
aquelas que tentaram lidar com a responsabilidade de “identificar as
estruturas e as relações que, independentemente das percepções e das
intenções dos indivíduos, comandavam os mecanismos econômicos,
organizavam as relações sociais, engendram as formas de discurso”. O
marxismo ortodoxo e sua ideia materialista de classes e de consciências
rígidas, e os estruturalistas e suas percepções de um mundo com divisões
estanques, buscavam pôr em prática tentativas de estabelecer aquilo que
Carlo Ginzburg chamou de método “galileano” – isto é, supor a história
em linguagem matemática a fim de estabelecer suas leis de funcionamento.
Essas teorias foram as responsáveis pelo eclipse do indivíduo na
História.
Em
Teoria e História, o economista liberal Ludwig von Mises defendeu que a
tentativa de entender a história humana, as relações dos indivíduos
numa sociedade com métodos matemáticos e econométricos, é algo
simplesmente impossível, pois os métodos “em xeque” procuram “agrupar os
homens em classes cujos membros reajam da mesma maneira”. É como as
leis da física que determinam que uma pedra terá sempre a mesma reação
ao cair na água; porém, teorias queriam calcular, agrupar e determinar
as consciências, intenções e ações de indivíduos, de seres humanos, de
acordo com uma “espécie” – ou melhor, uma classe. O rico será sempre um
rico explorador e um pobre será sempre um pobre oprimido.
Apesar
de ter uma boa intenção de dar à História um caráter mais científico,
essas teorias falharam miseravelmente e serviram aos piores projetos
políticos já existentes na terra. Economias planificadas que
desembocaram em desigualdades e fome, políticas de eugenia, divisões de
classe, segregações de raça, preconceitos financeiros, corrupções
administrativas em governos e ressentimento populacional. Porém, há
esperança. Aos poucos, bons historiadores estão descartando teorias
obsoletas, dando lugar, conforme Chartier nos conta, à restauração do
“papel dos indivíduos na construção dos laços sociais.”
As
novas – e nem tão novas assim – teorias da história trabalham com um
individualismo metodológico que proporciona ao pesquisador uma transição
“das estruturas às redes, dos sistemas de posições às situações
vividas, das normas coletivas às estratégias singulares”. A
micro-história é uma delas.
Segundo
Chartier, a “micro-história” – o conceito que melhor define essa
transição – ofereceu a tradução mais clara e viva da transformação
destes procedimentos históricos. A micro-história pretendia reconstruir,
a partir de uma situação particular, “a maneira como os indivíduos
produzem o mundo social, por meio de suas alianças e confrontos, através
das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem”. Chartier
define que a micro-história delineia a incrível mudança do eixo teórico
de uma estruturalização inflexível para uma análise “centrada nas
variações e discordâncias existentes”.
Assim,
estamos mais próximos da realidade, de que são os pequenos indivíduos,
com suas consciências variantes, em seus alternados interesses, em suas
variadas formas de agir no mundo, em seus vários espaços de atuação e
transformação que fazem a história. A história da sociedade até os
nossos dias não é a história da luta de classes, mas é a história... das
estratégias singulares.
Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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