A substituição de Celso de Mello por Kássio Nunes informa: não há perigo de o Supremo melhorar. Augusto Nunes, via Oeste:
O
Brasil parido pela chegada das caravelas de Cabral já nasceu metido a
esperto. Souberam disso tarde demais aqueles viventes cor de cobre, sem
roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para
trocar pedras preciosas por quinquilharias, as mulheres prontas para
abrir o sorriso e as pernas para forasteiros pois os nativos do lugar
praticavam sem remorso o que era pecado só do outro lado do grande mar, e
não poderiam ser tementes a um Deus que não conheciam nem queriam
conhecer porque desde o começo dos tempos adoravam deuses muito mais
lúdicos.
O
Brasil já nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe num
terreiro de candomblé teria ousado, como fez na pintura famosa o
português Henrique Soares — a maior autoridade religiosa presente e
celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas —, juntar
numa mesma alegoria um padre de batina erguendo o cálice sagrado,
navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de
domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida
dos desfiles por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos
cristãos no amistoso convívio com arcos, flechas e tacapes.
O
Brasil já nasceu amalucado. Marujos recém-chegados do outro lado do
mundo, mareados pela travessia do Atlântico e atarantados com paisagens
paradisíacas, decidiram que aquilo era uma ilha, e portanto deveria ser
batizada de Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem,
incontáveis milhas depois, que era muito litoral para uma ilha só, e
pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o
nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era terra
aquilo que pisavam.
O
Brasil já nasceu preguiçoso. Deslumbrados com a demasia de praias com
areias finas e brancas, banhadas por ondas em todos os matizes de verde e
azul, muita mata, muita flor, muito rio, muito peixe, muito bicho de
carne tenra, muita fruta sumarenta e, melhor que tudo, muita índia
pelada, os degredados, os marinheiros desertores, os náufragos
sobreviventes e os demais colonizadores do território paulista esperaram
200 anos até criarem ânimo para a escalada do paredão verde-escuro que
separava o mar do Planalto, e depois esperariam mais um século antes de
aventurar-se pelos sertões estendidos por trás da mata virgem.
Foi
um esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por
diante, tanto os filhos da terra quanto os estrangeiros e seus
descendentes sempre deixariam para amanhã o que deveriam ter feito
ontem, com exceção das coisas que efetivamente merecessem urgência
urgentíssima — por exemplo, seduzir a filha do cacique, façanha que
transformou João Ramalho, o inventor do golpe do baú à brasileira, em
homem rico e poderoso líder político, além de placa em muitas esquinas
de um Brasil que não chegaria a conhecer.
O
Brasil cresceu coerentemente incoerente. Hostilizou os civilizadores
holandeses para manter-se sob o jugo de Portugal, teve como primeira e
única rainha uma doida de hospício, tratou com bastante cortesia o filho
da rainha que roubou o banco da matriz na vinda e o banco da colônia na
volta, promoveu a primeiro imperador um príncipe habituado a passar
mais tempo enrolado em lençóis do que sentado no trono, teve um segundo
imperador que pelo menos nos retratos era mais velho que o pai, foi o
derradeiro país do subcontinente a abolir a escravidão e o último a
virar República. Sem saber direito por que saía, Pedro II perdeu o
emprego de monarca ainda sem saber direito por que ali chegara.
No
país nascido e criado sob o signo da insensatez, o cortejo dos
presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores,
deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a
troca de regime não mudou o espírito da coisa: o Brasil republicano é o
Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste. O país que
proclamou imperador uma criança de 5 anos que se tornaria adulta aos 15
seria governado, alguns séculos depois, por um presidente que sempre
agiu como delinquente juvenil e, em seguida, por uma presidente com
jeitão de avó menos ajuizada que neto de fralda. Mas o Brasil não sentiu
medo ao ver no trono um menino sem pai nem mãe. Com dois sessentões no
comando é quem tem mais de cinco neurônios que se sentiu sem pai nem
mãe.
A
carta de Pero Vaz de Caminha avisou já em 1500 que o Brasil seria
irremediavelmente cartorial ao transformá-lo no único país do mundo com
certidão de nascimento, verbosa como ordenam lusitanas tradições e com
tamanho suficiente para descrever com minúcias de doutor no assunto o
recém-nascido contemplado pelo escriba que nem sequer sabia se aportara
numa ilha, num continente, numa extensão das Índias ou na estratosfera,
mas não continha a excitação diante das extravagâncias de um lugar cujos
habitantes “andam nus, sem cobertura alguma, e não se preocupam em
cobrir ou deixar de cobrir suas próprias vergonhas mais do que se
preocupariam em mostrar o rosto”.
A
história constitucional de um país com tal DNA não poderia ter
parentesco com a dos Estados Unidos. A Constituição norte-americana
nasceu em 1789 com sete artigos e cinco páginas manuscritas. Passados
mais de 200 anos, incorporou 27 emendas. Nesse período, o Brasil teve
sete Constituições. Ao ser promulgada em 1988, a mais recente tinha 245
artigos espalhados por 296 páginas. Dois desses artigos foram
infiltrados furtivamente pelo relator Nelson Jobim com o consentimento
de Ulysses Guimarães. Como o presidente da Constituinte morreu, só Jobim
sabe quais são as normas constitucionais aprovadas em votação secreta
por dois parlamentares.
Em
2019, ao completar 30 anos, a Carta Magna brasileira fora emendada mais
de 100 vezes. Esse cipoal jurídico exige a mobilização de intérpretes, e
para isso foi criado o Supremo Tribunal Federal. O problema é que os
atuais titulares compõem o mais bisonho Timão da Toga de todos os
tempos. Mais angustiante ainda é constatar que o STF vive mostrando que o
que está muito ruim sempre pode piorar. Os brasileiros que acordaram na
quinta-feira entusiasmados com a iminente aposentadoria de Celso de
Mello foram dormir desolados com a decisão do presidente Jair Bolsonaro:
o Pavão de Tatuí será substituído por Kássio Nunes. Não há perigo de o
Supremo melhorar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário