Como a Carta de 1988 inviabiliza o desenvolvimento do país. Selma Santa Cruz, em matéria de capa para a revista Oeste desta semana:
As
distribuidoras de energia têm o direito de suspender o fornecimento do
serviço a clientes inadimplentes durante os fins de semana? Os bancos do
Estado de Santa Catarina devem ser obrigados a implantar sistemas de segurança?
Determinada obra de infraestrutura contestada pelo Ministério Público
poderá ser retomada? E a delação premiada do corrupto da vez, será ou
não homologada? O país já se habituou a depender das deliberações da
Justiça para resolver praticamente qualquer assunto. Questões mais
comezinhas até as que acarretam desdobramentos políticos ou econômicos
relevantes, como mostram os exemplos acima, estiveram na pauta do
Supremo Tribunal Federal nas últimas semanas. Embora já não cause
espanto, em meio a tantos descalabros do nosso ordenamento jurídico
institucional, esta é apenas uma das inúmeras consequências perversas da
Constituição de 1988, que completa 32 anos neste mês e está na origem
de boa parte das mazelas nacionais.
Por
seu feitio exageradamente minucioso e dirigista, cujo propósito é
regular na prática tudo na vida dos cidadãos, ela terminou por criar um
ambiente de insegurança jurídica permanente, engessar a economia e
dificultar a governabilidade. Além de ter corrompido a democracia, já
que o modelo político esquizofrênico que adotou impede a efetiva
participação da sociedade nas decisões sobre o país — contribuindo, ao
contrário, para perpetuar no poder uma casta oligárquica de políticos
profissionais.
Trata-se,
portanto, de um aniversário que não mereceria sequer ser lembrado,
considerando-se a quase unanimidade de críticas aos defeitos de nascença
da Carta, e sobretudo o preço que o país tem pago por eles em termos de
atraso econômico, político e social. A menos que se aproveite a data
para retomar o debate sobre a necessidade de um arcabouço jurídico
alternativo, a partir do diagnóstico dos malefícios provocados pelo
atual. O qual tem sido questionado por uma respeitável lista de juristas
e economistas praticamente desde sua criação. “Com quimeras e tolices, a
Nova República e sua douta Constituinte meteram o povo brasileiro num
trem-bala para Bangladânia”, lamentou à época, referindo-se à pobreza de
Bangladesh e ao isolamento da então socialista Albânia, o falecido
economista Mário Henrique Simonsen (1935-1997), um dos mais brilhantes
de sua geração.
De
1988 para cá, à medida que o tempo escancara a gravidade dos equívocos
da Carta, a advertência de Simonsen sobre “o risco de se optar pelo
atraso”, e sua previsão de que ela poderia “levar o país ao colapso”,
reverberam com cada vez mais força. Apenas dois anos depois, em 1990, o
título de uma coletânea de artigos de notáveis, Constituição de 88: o
Avanço do Retrocesso, reforçou o consenso sobre o espírito retrógrado da
Carta, que já nascera provecta e na contramão da história. Pois optava
pelo dirigismo estatizante e uma plataforma nacional-desenvolvimentista
justamente num momento em que o mundo caminhava na direção oposta.
Sob
a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, os Estados Unidos e o
Reino Unido encerravam o longo domínio das políticas keynesianas do
pós-guerra para destravar suas economias por meio de privatizações e
desregulamentação. Na Ásia, países como Coreia do Sul e Singapura
despontavam como “tigres” do crescimento, ao abraçar o livre mercado e
abrir-se à globalização. E até os gigantes comunistas começavam a
curvar-se aos benefícios do capitalismo, com a liberalização promovida
por Mikhail Gorbachev na União Soviética e por Deng Xiaoping na China.
Já
o Brasil, apenas dois anos antes do desmoronamento dos regimes
comunistas e da Queda do Muro de Berlim, preferiu retomar a agenda
esquerdista e populista da década de 1960, multiplicando encargos e
benefícios trabalhistas de país rico, fechando-se ao capital
estrangeiro, e chegando ao cúmulo de tentar controlar a taxa de juros
por força de lei — essa última excrescência só seria abolida uma década e
meia mais tarde, em 2003. O pensamento dominante entre os
constituintes, como recordou mais tarde o então ministro da Fazenda
Maílson da Nóbrega, guiava-se por uma série de “ismos” já então
comprovadamente ineficientes: “socialismo, marxismo, estatismo,
intervencionismo, patrimonialismo, assistencialismo, corporativismo e
garantismo”.
Em
retrospecto, parece difícil acreditar que essa Constituição tenha sido
saudada como “Constituição Cidadã”, termo criado pelo presidente da
Assembleia Constituinte, o falecido deputado Ulysses Guimarães
(1916-1992), no estilo laudatório típico da demagogia da época. “Será
luz, ainda que lamparina, na noite dos desgraçados”, exagerou ele,
abusando da hipérbole. “Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões
sujos, escuros e ignorados da miséria.” Tratava-se, como se viu mais
tarde, de puro ato de ilusionismo, já que não foi possível abolir a
miséria nem promover o desenvolvimento apenas com uma vara de condão
legiferante, como sonharam os constituintes.
Uma
combinação heterogênea de perfis, que incluía artistas de televisão,
banqueiros, sindicalistas e ex-guerrilheiros — além de lobistas e
políticos profissionais, como não poderia deixar de ser —, os eleitos
para redigir a nova Constituição espelhavam o ambiente político
exacerbado da época, após o Movimento das Diretas Já e o fim do regime
militar. Trabalharam, nesse sentido, mais olhando para o passado,
visando a contrapor-se à legislação de exceção do período, do que
focalizando o futuro, o que exigiria uma visão estratégica, um projeto
novo de país.
Em
clima de happening, preferiram ignorar a referência de Cartas Magnas
consagradas, a exemplo da norte-americana, que se limitam basicamente às
garantias dos direitos civis fundamentais e princípios gerais, a ser
transformados em leis à luz das demandas de cada época. A pretexto de
inovar, inscreveram minuciosamente no texto uma generosa coleção de
direitos sociais e econômicos, como se a Constituição fosse capaz, por
si mesma, de torná-la realidade. Embalados pela utopia de resgatar a
histórica dívida social brasileira, contudo, esqueceram-se de levar em
conta que seria preciso também prover os meios para a concretização
desses direitos. O que pressupõe um ambiente de negócios propício ao
crescimento econômico, muito diferente daquele desenhado pela Carta, com
a infinidade de entraves à atividade empresarial que se conhece.
Tentou-se,
em suma, de forma idealista e nada pragmática, criar um Estado de
bem-estar social incompatível com a capacidade do país, como reconhece,
entre outros, o constitucionalista Gustavo Binenbojm. “O Brasil precisa
compreender que levar direitos a sério significa levar o problema da
escassez de recursos a sério, o que impõe uma série de escolhas trágicas
envolvidas na sua alocação, sem ceder às tentações populistas e à
ilusão fiscal.”
O
resultado foi um calhamaço com 245 artigos e mais de 400 páginas — a
terceira mais longa Constituição do mundo, segundo o Comparative
Constitutions Project, um estudo comparativo de 180 Cartas, ficando
atrás apenas das da Índia e da Nigéria.
Para
piorar as coisas, o igualmente extenso capítulo tributário criou um
intrincado sistema de transferência de recursos da União para Estados e
municípios, que ganharam competência para também arrecadar tributos.
Como a descentralização das receitas não foi acompanhada por uma
diminuição proporcional dos gastos federais, no entanto, o Executivo
lançou mão da criação e majoração de alíquotas de tributos não
partilhados — as famigeradas “contribuições”. Em decorrência, os
brasileiros passaram a carregar o peso de duas camadas de Estado
superpostas, como apontou o economista Eduardo Giannetti de Fonseca em
outro artigo de título sugestivo sobre a Constituição: “Retrato do
fracasso”, publicado em 2013.
Levando
em conta que a Carta também impulsionou a proliferação desenfreada e
oportunista de municípios, podemos considerar que se trata na verdade de
três camadas superpostas. Desde 1990, mais de mil municípios foram
criados, na maioria sem condições de bancar as próprias despesas, mas
que foram responsáveis por aumentar, só com suas câmaras de vereadores,
em pelo menos 200 mil o número de servidores públicos cujo salário é
pago pelo contribuinte. Não surpreende que a carga tributária, que era
da ordem de 24% do PIB antes da “Constituição Cidadã”, tenha explodido
para os cerca de 35% de hoje. A Constituição transformou o Estado
brasileiro em um monstro obeso, opressivo e inoperante.
A
disposição dos constituintes para invencionices estendeu-se também, e
com consequências igualmente deletérias, ao modelo político adotado, um
sistema híbrido que mistura características do presidencialismo
norte-americano com as do parlamentarismo da tradição europeia. Criou-se
o malfadado presidencialismo de coalizão, que dificulta a
governabilidade e favorece negociações nem sempre republicanas entre o
Legislativo e o Executivo, na conhecida prática do “é dando que se
recebe”. Cujo exemplo mais escandaloso foi a compra de votos praticada
pelo Partido dos Trabalhadores durante o governo do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, com pagamento aos parlamentares, em forma de
mesada e dinheiro vivo, na boca do caixa bancário — o infame Mensalão.
Em
paralelo, a Constituição de 88 beneficiou políticos e partidos com
tantos privilégios que acabou por transformar a política no país em um
negócio empresarial lucrativo, que raramente tem qualquer relação com os
interesses da população ou o bem comum. Do voto proporcional —
artifício pelo qual a maioria dos brasileiros geralmente não sabe sequer
o nome de quem elegeu — à proibição de candidaturas independentes,
passando pelo foro privilegiado e pela consolidação do Fundo Partidário,
criado durante o regime militar, tudo tem se somado, ao longo das
últimas três décadas, para impedir a efetiva participação e
representatividade da sociedade na política. Haja vista o absoluto
descaso do Congresso com as demandas de mudanças expressas a partir das
manifestações de 2013.
Por
essa ótica, a Constituição que nasceu para consagrar a democracia, e
cujo mérito inquestionável foi a garantia dos direitos civis
fundamentais, hoje é vista, paradoxalmente, como falha também nesse
aspecto. Em vez de uma democracia substantiva, fundada na isonomia de
direitos e deveres entre todos os cidadãos, e que extrapola portanto a
mera realização periódica de eleições, deu origem a uma democracia de
fachada, como afirma o jurista Modesto Carvalhosa. “No Brasil, o Estado é
hegemônico, não restando à cidadania nenhum papel em nossa construção
civilizatória. A sociedade civil é dominada por um Estado que se
estruturou para preencher todos os espaços.”
O
constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman, um dos mais
respeitados do mundo e antigo estudioso da legislação brasileira, vê
nesse descompasso uma das principais causas da crescente frustração da
população com a democracia. E se alinha aos que defendem a convocação de
uma nova Assembleia Constituinte. “Uma vez eleitos, os representantes
deveriam reconsiderar as decisões-chave da Assembleia de 1988 já que
elas, ao longo das décadas, geraram a atual crise de confiança pública”,
justificou em artigo recente. Essa é também a proposta de Carvalhosa,
que em novembro lançará um projeto de Constituição completo para
promover o debate no livro Uma Nova Constituição para o Brasil: de um
País de Privilégios para uma Nação de Oportunidades.
Seria
essa mudança radical do ordenamento jurídico realmente a melhor
solução? É fato que os próprios constituintes reconheceram as
deficiências de sua criação, já que propuseram a revisão do texto num
prazo de cinco anos — uma providência bizarra, visto que cartas
constitucionais se pretendem por natureza duradouras. A revisão,
contudo, acabou sendo superficial, devido à crise em que o país estava
mergulhado em 1993, em função do impeachment do ex-presidente Fernando
Collor. Em vez disso, optou-se por corrigir alguns dos erros mais
flagrantes, sobretudo no capítulo da economia, como as restrições ao
capital estrangeiro, e por remendos pontuais por meio de emendas.
Propostas de mudanças estruturais, por outro lado, vêm sendo
seguidamente adiadas, ou desvirtuadas, já que a Constituição se
autoblindou, tornando o processo da aprovação de emendas longo e
dificultoso.
No
momento, parece não haver condições políticas para uma Constituinte,
embora o assunto volte à tona com frequência, já tendo sido defendido
também à esquerda, pelos ex-presidentes Dilma Rousseff e Lula. Mais
recentemente, o presidente do Senado, David Alcolumbre, chegou a aventar
essa possibilidade, quase como uma ameaça. Para alguns, como o
consultor político Murillo de Aragão, seria mais recomendável aproveitar
as crises para avançar nas reformas. Assim como ele, não falta quem
alegue que a durabilidade da Constituição de 88, apesar das inúmeras
crises que o país atravessou, comprovaria seu valor e resiliência. Para
outros, como se viu, a Constituição é ela própria a origem da sucessão
de crises.
Seria
temerário tentar prever qual caminho prevalecerá. O que parece
indiscutível é que o Brasil real no qual vivemos, com sua pesada carga
de atribulações, não se parece nem um pouco com aquele idealizado pela
Carta de 88. Este talvez seja o argumento definitivo contra ela. “Uma
boa Constituição não é suficiente para proporcionar a felicidade de uma
nação” resume o constitucionalista francês Guy Carcassonne. “Já a má
Constituição pode levar à sua infelicidade.” Parece ser este o nosso
caso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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