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A motivação não é ter direitos iguais, mas ter mais direitos que os demais, com a justificativa da reparação por sofrimentos passados; não é acabar com a opressão, mas trocar de lugar com o opressor. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Em
alguma medida, mesmo que somente em uma fase da vida (e mesmo que,
depois de adultos, a maioria de nós não os leve mais a sério), os
super-heróis da Marvel povoam o imaginário de várias gerações. Criada em
1939, a Marvel Comics se tornou a maior editora de histórias em
quadrinhos do planeta graças a personagens como o Homem-Aranha, o
Capitão América, o Homem de Ferro, Hulk e Thor, entre dezenas de outros.
E um filão explorado com sucesso pela empresa foi o dos heróis que
atuam em equipe, como o Quarteto Fantástico, criado em 1961 pelo mítico
Stan Lee, e, mais recentemente, os New Warriors, lançados originalmente
em 1989.
Na
origem, os New Warriors eram um time de super-heróis em versão
adolescente que faziam o que se espera dos super-heróis: lutar contra o
crime e enfrentar vilões sem piedade – empregando a violência, quando
necessário. Como em muitas narrativas mitológicas, o desejo de vingança
estava na origem da criação do grupo: seu líder Dwayne Taylor (aka
Radical) entrou na vida de super-herói porque queria vingar a morte de
seus pais.
Existem
teorias que explicam a função simbólica do herói e da representação da
violência e da vingança nessas narrativas, que vão além do
entretenimento e estabelecem pontes para o mundo adulto. O tema é
abordado em livros como “Brincando de matar monstros”, de Gerard Jones,
que explica a pais e educadores a importância pedagógica das histórias
de heróis no desenvolvimento do imaginário infantil, das fábulas de
antanho às histórias em quadrinhos e aos videogames.
Voltando
aos New Warriors: além de Dwayne, faziam parte da formação original do
time Marvel Boy (que mais tarde se tornaria o Justiça), Flama (a futura
"Firestar" Angelica Jones), e Namorita, prima do príncipe Namor, entre
outros personagens. Esses personagens não foram exatamente as criações
mais inspiradas da Marvel, mas cumpriam o seu papel com dignidade – e
sem mimimi. Pois bem, em março passado a Marvel lançou sua nova versão
dos New Warriors. Trata-se, basicamente, da rendição total da empresa à
ditadura da lacração que acomete o planeta.
(Parênteses:
um dos marcos iniciais desse processo de submissão dos super-heróis à
agenda lacradora foi a reação às axilas depiladas da Mulher-Maravilha no
longa-metragem lançado em 2017. Muitos ativistas de sofá ficaram
indignados, uma vez que a heroína representa a força e a independência
femininas. “Por que a Mulher-Maravilha não tem axilas peludas?”,
perguntou um fã. Fecha parênteses)
Pois bem, os novos New Warriors são os seguintes:
“Safespace”
e “Snowflake” são dois irmãos gêmeos psíquicos transgênero não-binários
(os primeiros super-heróis não-binários da história da Marvel). Eles
empregam uma linguagem neutra, com pronomes não-binários, para não
ofender ninguém. Seus nomes merecem uma explicação: Snowflake vem da
expressão “floquinho de neve”, usada pejorativamente para descrever
jovens progressistas que se ofendem com qualquer coisa e que se acham
únicos e especiais. Já Safespace vem de “espaço seguro” (aqueles lugares
onde ninguém julga ninguém, onde todos são livres para ser o que são,
exceto se forem heterossexuais e conservadores). O poder de Safespace é
materializar campos de força cor-de-rosa.
A
proposta dos criadores dos personagens, Luciano Vecchio e Daniel
Kibblesmith, é fazer a geração-mimimi se sentir empoderada, ao
“ressignificar esses termos como algo legal e poderoso, ao invés de
remeterem a algo negativo”: “Safespace e Snowflake são hiper conscientes
da cultura e da ótica modernas e veem seus super-heróis como uma
meditação pós-irônica sobre o uso da violência para combater o
bullying”, afirmou Kibblesmith. “Eles não vêem esses termos como
depreciativos. Eles tomam essas palavras e as usam como distintivos de
honra.”
“B-Negative”
é um vampiro adolescente gay gótico, que foi submetido quando criança
ao uma transfusão de sangue controversa (?) que salvou sua vida. Seu
poder é chupar sangue através das mãos (??). Seu nome é um trocadilho
que combina o tipo sanguíneo B-negativo com a expressão “Seja negativo”
(“Be negative”), uma referência irônica à negatividade dos haters das
redes sociais.
“Trailblazer”
é uma adolescente obesa que carrega uma mochila mágica nas costas: seu
poder é tirar coisas aleatórias da mochila. O sobrepeso de Trailblazer é
claramente uma mensagem de empoderamento direcionada às adolescentes
gordas: continuem se empanturrando de gulodices, não se preocupem com os
problemas de saúde associados à obesidade que virão mais tarde, o que
importa é lacrar. Trailblazer afirma obter seu poder de Deus, mas “não é
o deus em que você está pensando”.
Por
fim, “Screentime”, cujo nome faz referência ao tempo que os
adolescentes passam diante da tela do computador ou do celular, foi
exposto pelo avô a um gás experimental da Internet (?), que conectou
permanentemente seu cérebro à lacrosfera.
Na época do lançamento, a Marvel divulgou o vídeo promocional, apresentando os personagens da nova versão dos New Warriors. Mas,
para surpresa da própria Marvel, a versão lacradora dos New Warriors
foi mal recebida até pelos grupos demográficos que a empresa julgou
representar com esses personagens. As críticas foram dirigidas tanto ao
tom complacente em relação às minorias quando ao fato de a dupla de
criadores não ter lugar de fala para inventar personagens
verdadeiramente representativos, caindo em estereótipos e concepções
equivocadas sobre a diversidade.
Safespace
e Snowflake foram considerados ofensivos por ativistas LGBTQ+ e
leitores não-binários – e houve até quem se incomodasse com a possível
sugestão de um incesto, pela maneira como eles se olham. Como se sabe,
somente gêmeos psíquicos não-binários transgênero estão autorizados a
escrever sobre gêmeos psíquicos não-binários transgênero. Da mesma
forma, somente adolescentes com sobrepeso e uma mochila mágica podem
criar histórias sobre adolescentes com sobrepeso e uma mochila mágica.
Além
disso, no caso da gorducha Trailblazer, causou desconforto o fato de
não ficar claro se ela é “nativa americana” (índia, no popular), latina
ou afrodescendente – e em cada caso a personagem estará sujeita a
críticas diferentes dos grupos identitários (porque, no fim das contas, o
que importa é problematizar e reclamar).
É
o problema da lacração identitária: supostamente movidos pelo desejo de
inclusão e pela luta legítima por igualdade de direitos, ela vem
promovendo, ao contrário, as formas mais autoritárias e sectárias de
exclusão, com todos os grupos se sentindo no direito de apontar o dedo
uns para os outros. Busca-se não a igualdade de direitos e o apagamento
das diferenças, mas a afirmação da diferença como meio de obter um
tratamento desigual e privilegiado.
A
motivação não é ter direitos iguais, mas ter mais direitos que os
demais, com a justificativa da reparação por sofrimentos passados; não é
acabar com a opressão, mas trocar de lugar com o opressor; não é criar
uma sociedade na qual todos vivam em harmonia, mas uma sociedade em
guerra permanente, na qual o "ódio do bem" e o cancelamento dos
diferentes (inclusive de qualquer forma diferente de pensamento) se
tornou uma razão de viver. A conclusão aqui é: os lacradores nunca
ficarão satisfeitos, porque sentiram o gostinho de ser ditadores e estão
adorando; eles continuarão cancelando e apontando o dedo para tudo e
para todos, inclusive para antigos aliados. Tudo indica que não
sossegarão enquanto não calarem, na base da intimidação e do
constrangimento, todos que ousarem discordar deles.
A
má notícia é que eles estão sendo enganados: em breve (quando tiverem
que pagar boletos, talvez) descobrirão que, no mundo real, não existe
espaço seguro; que, fora dos cercadinhos em que foram ensinados a viver,
as exigências da vida adulta impõem pressões e desafios indiferentes à
sua sensibilidade de flocos de neve. Quando perceberem que não foram
preparados para viver como adultos, mas somente para lacrar como
adolescentes mimados, será tarde. Será que ninguém percebe que isso é
uma armadilha e uma bomba-relógio? Qual será o resultado desse
experimento social, ao qual a mídia e outros grupos de interesse vêm
aderindo com tanto entusiasmo? Veremos em breve.

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