É incrível passear pelos perfis de quem me ataca nas redes sociais e
descobrir pessoas aparentemente felizes, calmas e capazes de amar.
Crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
A pessoa, que evidentemente não tem qualquer intimidade com o alvo de
sua ira, xinga. Me xinga. Aparentemente, escrevi algo que a desagradou
profundamente, embora eu jure que não foi minha intenção - nunca é. Não
se trata de um xingamento desses que a gente solta quando bate com o
dedinho na quina da mesa de centro. É um xingamento elaborado, sujo,
afiado mesmo. Feito com a intenção de desumanizar e, depois, destruir.
Eu, que infelizmente às vezes tenho esses arroubos masoquistas dos
quais não me orgulho nem um pouco, e tirando proveito de certo torpor
pós-almoço, vou lá dar uma olhada ao menos no rosto da pessoa que se
incomodou tanto, tanto, tanto com o que escrevi a ponto de não se conter
e me xingar publicamente. Internet tem dessas coisas. Uns se escondem
no anonimato, mas há também aqueles que expõem desavergonhadamente a
virulência incontida.
E, como acontece em 100% dos casos (o que só reforça o caráter
puramente masoquista da minha investigação), o que encontro é um avatar
sorridente num cenário turístico, uma frase motivacional qualquer, às
vezes até um versículo bíblico. E fotos, muitas fotos que provam: aquela
pessoa é, sim, capaz de amar.
Não importa quantas vezes essa cena há de se repetir: ela sempre me
surpreenderá. Sempre. Porque posso até ter estudado a banalidade do mal
em Hannah Arendt. Posso até ter me perdido na alma dos personagens de Os
Irmãos Karamázov. E posso até, nos momentos de maior desespero, evocar o
soneto 121 de Shakespeare, que melancolicamente constata: “O homem é
mau e reina na maldade”.
Mas não me conformo.
Às vezes me demoro ali. E me dou ao trabalho de estudar os traços da
pessoa. Vejo rugas de quem tem bagagem. Todo o esforço necessário para
sorrir para a foto. Uns olhos fundos e tristes e meio desesperançados.
Mas o que mais gosto de ver mesmo são as histórias que todo mundo vai
contando e acumulando e expondo meio sem querer nas redes sociais. É
muito, digamos, instrutivo. Há pequenas alegrias de extrema nobreza,
apesar da ocasional cafonice, como festas de aniversário e pedidos de
casamento. Há expressões de dor por causa da perda de um ente querido.
Há o júbilo pela formatura na faculdade de sociologia. E há declarações
que só comprovam a velha teoria de Fernando Pessoa de que todas as
cartas de amor são ridículas.
Há, principalmente, muito medo de ver tudo isso ruir de uma hora para
outra, por causa de uma decisão qualquer diante da qual o indivíduo se
sente impotente. Medo de uma canetada que lhe tire o emprego ou que
liberte um marginal que pode pôr fim à sua vida. Medo de que você não
possa mais expressar o que pensa e medo de ser alvo de chacotas pelo que
pensa.
Medo da incerteza e do caos.
Incerteza e caos
Duas coisas que, aparentemente, uma crônica, com suas ameaçadoras
perguntas, com seu humor distraidamente ofensivo, com suas referências
difíceis, quando não obscuras (quem esse cara acha que é?!), pode
despertar. Aliás, deve despertar. Para que da incerteza nasça alguma
coisa remotamente semelhante a uma convicção. E para que do pensamento
caótico nasça algo parecido com uma lógica.
Mas não é só o masoquismo que me leva a empreender essa Viagem
Superficial ao Coração do Outro. Gosto e até preciso ver reafirmada a
ideia de que estamos todos irmanados numa caminhada de objetivo incerto e
fim determinado. Cada qual a seu modo tenta proteger os valores que lhe
são mais caros. E, para isso, não poupamos esforços.
Para alguns, vale até xingar o desconhecido que escreveu uma palavra
que não desceu muito bem. E, depois, pôr o filho para dormir, não sem
antes lhe contar uma história edificante sobre o respeito entre as
diferenças.
Diante do que só me resta apelar à mais rejeitada das artes, aquela
que infelizmente hoje associamos a mendigos e drogados, quando não a
trocadilhistas cheios de si. W. H. Auden, que não era nada dessas coisas
e por isso mesmo era Poeta, escreveu esses versos que traduzi
apressadamente e que podem muito bem funcionar como uma oração pela alma
boa, ainda que perdida, das pessoas que xingam, mas não odeiam:
Consegui (você não)
Encontrar motivos
Para encarar o céu e gritar
Furioso e desesperado
Contra a realidade,
Exigindo que o céu apontasse
Um nome a culpar:
Mas o céu esperou
Que eu perdesse o fôlego
E então reafirmou
Como se dali me ausentasse
Aquela ordem invulgar
Que não compreendo,
Agradeça por tudo o que existe,
E a ela se submeta, pois
Para que mais existo,
Concordando ou não?
[Se você gostou deste texto, mas
gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora,
se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere
também. Obrigado.]
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