É tendo como pano de fundo um mundo em que interesses nacionais se
voltaram a afirmar e de onde desaparecera o modelo competitivo de duas
grandes potências que, no início de 2020, se abate a Covid 19. Jaime
Nogueira Pinto para o Observador:
A Grande Guerra, a de 1914-1918, interrompeu a idade do equilíbrio
inaugurada em Viena e que tinha poupado a Europa, durante um século, a
guerras gerais. Mas, mais que isso, mais que a destruição de quatro
impérios antigos e conservadores na sua consequência – o russo, o
alemão, o austro-húngaro e o otomano e a respectiva fragmentação
nacional – trouxe a revolução soviética e os americanos para a Europa.
A revolução soviética reintroduzia, como a Reforma e a Revolução
Francesa, a categoria ideológica radical na política interna e
internacional. E o seu desenvolvimento, a guerra civil, o extermínio da
classe alta, a extrema violência na liquidação de quaisquer obstáculos,
tudo isto contado pelos sobreviventes que conseguiram escapar, causou
preocupação, medo e reacção na Europa.
Em Itália, três anos de guerra civil de baixa intensidade e – também
com o medo e o apoio das classes médias – Mussolini tomou o poder,
negociando com as forças tradicionais; na Alemanha acontecia o mesmo,
dez anos depois. Os fascistas respondiam à violência comunista, com as
mesmas armas e nas áreas mais desenvolvidas da Europa, surgiram esses
movimentos, que por um lado combatiam o comunismo opondo a força à
força; mas por outro, nos seus programas e prática governante quebravam,
também com o conservadorismo liberal burguês e eram a seu modo
revolucionários.
Neste embate, a Europa do constitucionalismo liberal acabou por ficar
reduzida à Grã-Bretanha, à França, à Bélgica e aos países nórdicos. O
resto, também em nome da resistência ao perigo bolchevique, foi sendo
ocupado por regimes autoritários ou militares. A guerra civil de Espanha
foi o grande choque entre estas duas radicalidades e uma aliança
nacional-conservadora e fascista venceu uma aliança de esquerda
“republicana” e comunista.
A Segunda Guerra Mundial trouxe outro tipo de confrontação: começou
por ser uma guerra clássica, de confronto de interesses nacionais, mas
depois da invasão da Rússia transformou-se numa espécie de guerra de
religião ideológica, de aniquilamento, sem prisioneiros. A selvajaria
dos Einsatzengruppen, respondeu, na volta, a selvajaria dos invasores
comunistas, que repetiram em 45, na Alemanha os costumes das hordas
orientais, à solta no Ocidente.
O nacional-socialismo, os seus satélites europeus e o aliado japonês –
com quem nunca chegara a haver uma cooperação estratégica real,
lembre-se o caso do Japão, não atacou a URSS quando os alemães estavam
às portas de Moscovo, em Dezembro de 1941– foram vencidos. Seguiu-se,
uma competição entre os vencedores anglo-americanos e soviéticos.
Alguns espíritos lúcidos, como George Kennan acordaram em Washington,
os menos entendidos na essência do comunismo soviético, Truman, que até
por origens sociais, não tinha aquela leveza um bocado leviana com que
Roosevelt olhava Estaline e até os comunistas americanos, lançou as
bases de uma estrutura defensiva e ofensiva para lidar com a URSS, desde
serviços de inteligência a pactos regionais múltiplos para fazer a
contenção. Que foi a doutrina dominante na Guerra Fria, com altos e
baixos de tensão e coexistência pacífica.
Que as armas modernas – que impossibilitavam a guerra e garantiam a
paz pela certeza da destruição maciça – mantiveram. E que só acabou,
quando Bill Casey meteu na cabeça de Reagan que os soviéticos não eram
tão fortes como pareciam, que tinham uma sociedade extremamente
vulnerável ao alcoolismo, aos suicídios, a uma demografia crítica e uma
economia muito vulnerável às flutuações dos preços do petróleo.
E tiveram Gorbachev, que se convenceu que um regime como o comunista podia perdurar sem o medo.
Mas nos quarenta anos entre o fim da guerra, e a chegada de Gorbachev
ao poder, ou entre o golpe de Praga e a queda do Muro de Berlim,
vigorou uma ordem internacional dualista, bem delimitada pelo espírito
de Yalta e Potsdam e pela realidade da força de ocupação de cada lado,
nos anos que se seguiram a estas conferências fundadoras. Os países
alinhavam no Bloco Soviético ou no Ocidente, e havia um “Terceiro Mundo”
neutralista; os europeus que estavam fora do grande jogo perderam os
Impérios coloniais, e os novos Estados alinharam com um ou outro lado,
arranjando uma retórica ideológica ou institucional para se justificarem
em nome de ideais ao menos retoricamente comestíveis para os
respectivos povos: anti-imperialismo, anti-comunismo, anti-colonialismo,
socialismo, liberdade, progresso. Só palavras simpáticas aos ouvidos do
vulgo e utilizáveis em organizações multilaterais de grandes ambições
humanísticas. Como as Nações Unidas. Mas esta ordem do medo, com os
generais e os estrategas de cada parte sempre a queixarem-se do
superpoder dos equipamentos do inimigo e da escassez dos próprios,
rendeu, excluindo as periferias perigosas – asiáticas, africanas, centro
e sul-americanas, a longa paz da Guerra Fria.
Guerra Fria que acabou, já lá vão trinta anos, e que depois de
acabada gerou um mundo cuja uniformidade ideológica à partida, pouco
parecia ser o capitalismo e a democracia, subsistindo alguns
autoritarismos monopartidários – como a República Popular da China (que,
entretanto, graças às reformas de Deng Xiau Ping abraçara o capitalismo
de direcção central) e alguns regimes tradicionais no Médio Oriente e
autocracias pessoais na África Subsahariana.
Também – e era discurso optimista dos Fukuyama (de inspiração
hegeliana) – se esperava um fim da História, ou seja, que não houvesse
mais alternativa – no plano das ideias pelo menos – à democracia e ao
capitalismo. Este mundo pós-Guerra Fria passou também a ser um mundo
globalizado, já que os sistemas políticos deixavam de dividir os
mercados e, aparentemente, os Mercados passavam a comandar os Estados.
Assim foi na última década do século XX. Mas logo no início do século
XXI o aparecimento em força do terrorismo de inspiração jihadista
mostrou que a “paz perpétua” não era garantida. E logo depois, a crise
de 2007-2008, mostrou que os Mercados e a Economia, deixados à solta,
também não eram perfeitos. E, lição principal, que os mecanismos
globalizadores, estavam a contribuir para um empobrecimento das classes
trabalhadoras e das classes médias da Europa e dos Estados Unidos.
Tudo isto – e uma hábil recuperação à esquerda, do marxismo cultural,
numa passagem de Lenine para Gramsci tinha que criar reacções. E
reacções à volta da nação e da identidade nacional, que se traduziram,
progressivamente, no antiglobalismo, no renascimento dos nacionalismos
humilhados como o russo, à volta de Vladimir Putin, ou de uma Nova
Turquia, não laica como a de Atatürk, mas combinando ressurgimento
religioso, nostalgia otomana e liderança carismática – sob um fundo de
sucesso económico. A Europa foi também atingida por um forte
renascimento nacionalista identitário, sobretudo na França, na Itália e
nos países de Visogrado. E as eleições nos Estados Unidos em 2016 e no
Brasil em 2018, levando ao poder, respectivamente, Trump e Bolsonaro,
consolidaram uma corrente de reacção quer ao globalismo económico quer
ao politicamente correcto.
Tudo isto tendo, como pano de fundo um mundo, em que interesses
nacionais se voltaram a afirmar e de onde desaparecera o modelo
competitivo de duas grandes potências, podendo antes falar-se em
fragmentação de grandes e médio-altas potências, competindo geralmente
em formas político-diplomáticas e pacíficas não pela hegemonia mas pela
afirmação regional.
É sobre este mundo que, no início de 2020 se abate a Covid 19.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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