Aos que querem enlouquecer, os deuses mandam uma peste daquelas. Vilma Gryzinski, via edição impressa de Veja:
Olhando para trás, somos todos gênios. Fomos pioneiramente para o
isolamento, cercados por montanhas de papel higiênico de dezoito folhas,
um esquema perfeito para ter comida gourmet entregue em casa todo dia e
inabalável fortaleza de espírito. Parabéns aos que não deram risada até
agora e sabem muito bem que os mitos são construídos a posteriori.
Todos erramos nesta crise bizarra que desabou sobre o planeta sem manual
de instruções. Mas alguns erraram mais, por estarem em posições de
poder. Dentre estes, ressaltam-se os traços em comum dos líderes
políticos que relutaram em admitir que tinham sido “sorteados” para
enfrentar uma encrenca capaz de tudo devorar, até o que faz o mundo ser
mundo. Donald Trump, Boris Johnson, Andrés Manuel López Obrador e,
evidentemente, Jair Bolsonaro, todos chegaram ao poder por uma
combinação tão rara de fatores que não seria absurdo se se considerassem
eleitos, escolhidos para uma missão especial.
Trump, um renegado da elite de Nova York que fazia de tudo para
aparecer nas colunas de fofocas, havia acabado de derrotar uma
pessimamente armada tentativa de expeli-lo via impeachment e só pensava
naquilo: reeleição, surfando a onda de uma economia bombando. Boris
Johnson, considerado apenas uma figura folclórica do Partido
Conservador, colecionava vitórias impensáveis, incluindo a maioria no
Parlamento e um acordo para selar o Brexit definitivamente. Vindo do
fundão da Câmara e de uma facada quase fatal, Bolsonaro também estava —
ou ainda continua? — sofrendo da síndrome do eleito, talvez outro nome
para húbris, a arrogância que desafia os deuses (na Grécia antiga) ou os
modelos matemáticos (na crise atual, sendo possível que todos, deuses e
modelos, se comportem da mesma maneira caprichosa). Boris distribuía
apertos de mãos, enquanto AMLO, o populista de fala mansa que tentou
três vezes até ser eleito presidente do México, beijava criancinhas com
gente já derrubada nos hospitais. E Vladimir Putin, prontinho para
passar o decreto que lhe garantia o poder ad infinitum, estava mais
desligado que Catarina, a Grande, quando achou que postos de quarentena
segurariam longe de Moscou a epidemia de peste negra de 1770.
“Quanto mais próximo o homem estiver de um desejo, mais o deseja; e
se não consegue realizá-lo, mais dor sente.” A máxima de Maquiavel vale
tanto para a noiva que viu a festa de casamento desmoronar por causa da
epidemia quanto para o político a alguns passos de uma realização máxima
(Boris Johnson talvez se enquadre em ambas as categorias, pois ia fazer
uma festa exótica de casamento no exterior). “Não há nada mais certo do
que os nossos próprios erros”, socorre-nos Maquiavel. Os mais espertos
perceberam o tamanho da encrenca, adaptaram o discurso e agora estão
focados no que interessa: salvar seu país da ruína sem provocar mais
mortes evitáveis. Nessa briga, o húbris, a autoconfiança inabalável na
própria capacidade, pode funcionar a favor. “Podemos derrotar o
coronavírus em doze semanas”, disse Boris em meados de março, num ataque
de arrogância que se torna mais curioso diante dos números: com todos
os horrores que aconteceram desde então, inclusive para ele,
pessoalmente, a praga está ficando sob controle. Aproveitem antes que
acabem o estoque de húbris e a paciência da plebe. Ou volte a faltar
papel higiênico.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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