A simples condição de “não socialista” parece estar tocada pela lepra e
merecer um cordão sanitário. É pois tempo de dizer que não sou
socialista porque já fui socialista e sei o que isso significa. Artigo
de José Manuel Fernandes, publisher do Observador:
Não sou socialista porque já fui socialista. E não sou socialista porque sei o que isso significa e a ilusão que representa.
Pode parecer estranho vir afirmá-lo aqui e agora é porque se tenta
que esta simples condição – a de “não socialista” – seja uma espécie de
lepra em torno da qual se deve construir um severo cordão sanitário. E,
no entanto, nunca foi tão necessário romper esta espécie de unanimidade
não assumida que é uma das razões da nossa desesperança.
Não é fácil. Os alucinados de toda a vida e os idiotas úteis do
momento que estão sempre a postos e, logo que ouvem alguém dizer-se “não
socialista” às claras, sem medo e sem rodriguinhos, saltam a anunciar
que chegou a “alt-right”. O que vai bem com o espírito dos tempos e esta
forma de pensar Portugal em que não é necessário ser sequer do PS nem
votar-se no PS para se fazer parte de uma cultura dominante de
inspiração e prática socialista (sendo que no PS nem todos serão
exactamente socialistas).
Por outras palavras: não venho aqui dizer que não sou socialista
apenas porque não tenho ou tive família no PS (até porque isso seria
mentira), antes venho dizer precisamente o contrário. A primeira razão
porque não sou socialista é porque aprendi a sua doutrina ainda na
adolescência, época em que a sua lógica me enfeitiçou, tempo em que
percorri os caminhos da ideologia até aos seus limites mais absurdos,
tudo antes de compreender – felizmente ainda bem cedo – a mentira da
ilusão e ter deixado de tentar justificar todas as tragédias associadas.
Para mim tudo começou muito cedo, aos 13, 14 anos, quando o meu pai me deu a ler um pequeno opúsculo de Léon Blum,
o primeiro socialista a dirigir um governo em França, nos anos da
Frente Popular. Nele se procurava explicar o que era o socialismo e,
para além de todas as ideias de justiça social, pareceu-me de uma lógica
inatacável a ideia de que a economia funcionaria muito melhor existindo
planeamento central. Sendo eu então um miúdo com uma fé quase ilimitada
no conhecimento científico, era para mim claro que assim se evitaria o
desperdício e mais facilmente se garantiria que haveria bens que
chegassem para todos. Conhecíamos as necessidades, só havia que
organizar a sua produção e distribuição.
Hoje, quase 50 anos depois, sorrio da minha ingenuidade. Na verdade
tudo no planeamento central contraria a natureza humana, limita a
inovação, estimula a preguiça e conduz à servidão. Tudo no planeamento
central leva, mesmo no mais eficiente dos regimes, à produção de
Trabant’s, enquanto a “caótica” concorrência vai produzindo Mercedes,
Audi’s e e BMW’s.
E não, não descartem já este exemplo por exagerado, pois sei bem que
há uma enorme, uma gigantesca distância entre o socialismo democrático
de Léon Blum – o ramo a que pertence o nosso PS – e as muitas variantes
totalitárias filhas da Revolução Russa e do leninismo – o tronco de que
brotou o PCP mas também o Bloco de Esquerda. Contudo não podemos
descartar os ensinamentos de décadas de “socialismo real”, sem economia
de mercado, até porque não é preciso acabar com as eleições para vermos
onde nos leva uma economia onde o Estado trata de mandar em tudo – basta
olhar para o que se está a passar na Venezuela.
É por isso que é necessário ir mais longe e mais fundo e compreender que quando Friedrich Hayek escreveu O Caminho para a Servidão,
em 1944, uma das suas teses centrais é que o comunismo só se diferencia
do socialismo por uma questão de grau. No fundo a ideia de planificar a
economia acaba sempre num esforço para “planificar a sociedade” que
limita as liberdades. Muito vilipendiado, ainda hoje proscrito em muitos
centros ditos “do saber”, o livro foi lido mal saiu por um rival
intelectual de Hayek, que lhe enviou de imediato um cartão a dizer que
se encontrava “moral e filosoficamente profundamente comovido e
agradado”. Estas palavras são de John Maynard Keynes, que tinha aproveitado a viagem transatlântica a caminho da conferência de Bretton Woods para ler o livro.
Conto esta pequena história porque Keynes sempre se definiu como um
liberal, sempre se opôs às diferentes formas de socialismo e se advogou
formas de intervenção do Estado na economia foi para salvar o
capitalismo, não para o “superar”. É por isso que ao mesmo tempo que
arquitectou formas de combater a Grande Depressão e defendeu políticas
que estimulariam a criação de emprego e o combate à pobreza, e
considerasse excessivo um certo nível de desigualdades de rendimento,
considerava, sem complexos, “que existem justificações sociais e
psicológicas para significativas diferenças de rendimento e de riqueza”.
Uma avaliação como esta não deriva de qualquer egoísmo pessoal ou de
se ter o coração duro, antes de uma avaliação da natureza humana. Assim
como dos sentimentos humanos, sobre os quais de resto Adam Smith
escreveu longa e sabiamente antes de se dedicar à riqueza das nações. É
por isso que o planeamento central não funciona e todos os fundamentos
económicos do socialismo estão errados. É também por isso que não existe
um sentido na História, a tal “seta do progresso” que levará à
“superação” do capitalismo em que os socialistas também acreditam, mesmo
quando não dispensam os prazeres “burgueses”.
O planeamento central não funciona porque não se planeia o que não se
conhece. Pode-se fazer um plano quinquenal para a RTP, mas é impossível
saber quando ou onde vai aparecer um Netflix. A inovação implica risco,
implica falhanços, implica concorrência, implica empresas estabelecidas
que vão à falência (a chamada destruição criativa), implica estar
empregado, ficar desempregado e voltar a estar empregado, implica lutar e
ter ambição, lutar por ser rico mas também poder ficar pobre. Sob a asa
de um Estado que tudo providencia isso não acontece. Mesmo sob o peso
de Estado que tudo regulamenta tudo é mais difícil. O socialismo pode
dar-nos hoje a ilusão de mais segurança, mas garante-nos no futuro
apenas mais pobreza.
Um Estado que tudo controla, ou que de todos desconfia, é um Estado
que limita as liberdades. É um Estado que mais tarde ou mais cedo faz de
todos os cidadãos dependentes de um qualquer serviço público ou de uma
qualquer prestação estatal, logo é um Estado de cidadãos tendencialmente
submissos e temerosos. É cada vez mais a nossa condição, e é essa nossa
condição que limita as nossas escolhas: o socialismo faz política
assustando a cidadania. É o nosso caminho da servidão.
Os socialistas não desconhecem as limitações da natureza humana, e
por isso sempre sonharam com alguma forma de “homem novo”, um desiderato
prosseguido à bruta pelos totalitarismos do século XX, uma missão hoje
assumida pelos fanáticos de todos os politicamente correctos, sempre
empenhados em obras de engenharia social que só respeitam a sua ideia de
liberdade, não a liberdade de todos. E quando nos falam de “conquistas”
ou “retrocessos” civilizacionais estamos muitas vezes de novo
confrontados com o seu mito historicista de que a História flui apenas
num sentido e, sobretudo, de que são eles os conhecedores desse sentido e
os nossos guias, mesmo que à força.
Muitos dos que se dizem socialistas não se identificarão com o
retrato que acabei de fazer, e isso não me surpreende. Viverão mais num
“estado de espírito” sem se aperceberem de que as ideias têm genealogia,
têm história e, sobretudo, têm consequências. E não as conhecerão como
eu as conheci: por dentro, sem ambiguidades e em diferentes
aproximações.
Por isso não devem ficar surpreendidos, só para dar um exemplo, com o
actual estado do debate sobre a Lei de Bases do Serviço Nacional de
Saúde. Um socialista defenderá mesmo aquilo que o actual PS parece estar
a defender, a máxima estatização dos serviços de saúde, a mínima
liberdade para os utentes e para os médicos, todos idealmente
encaminhados para os seus hospitais e consultórios pelos “planeadores
centrais”. Um não socialista preocupar-se-ia sobretudo em garantir que
toda a população tinha acesso a bons cuidados de saúde, com o menor
custo possível para o contribuinte, sendo-lhe indiferente se o prestador
era o Estado, o sector social ou um operador privado, acreditando que
tendo os utentes mais liberdade, mais responsabilidade nas suas escolhas
e havendo mais concorrência, o resultado final seria melhor.
Há, por fim, uma perversão muitas vezes associada ao socialismo que
também faz com que não seja socialista – é a facilidade com que
confundem Estado com Governo e Governo com Partido. No leninismo isso
foi teorizado: era o partido “vanguarda da classe operária”, detentor da
verdade e conhecedor do “sentido da história”, que devia exercer a
“ditadura do proletariado”. Nas democracias liberais não é assim, mas a
verdade é que os socialistas, por acreditarem nessa coisa abstracta que é
o Estado, e entenderem que ele deve ter um comando, que é o governo,
têm por regra a maior das resistências aos mecanismos de limitação do
poder executivo. O nosso PS nisso dá cartas, pois da constante tensão
com o poder judicial ao desmantelamento dos órgãos de regulação
independentes – o escândalo mais recente é o cerco ao Banco de Portugal
–, tudo tem feito para concentrar mais poder nas mãos do Executivo.
Fê-lo com Sócrates e reincide com António Costa.
Não há aqui nada de estranho: um não socialista como eu quer
naturalmente mandar menos e dar mais liberdade a todos; um socialista
acredita num dirigismo que também naturalmente contraria dar mais graus
de liberdade.
Olhando agora para trás, para as quatro décadas e meia que já levamos
de democracia, e lendo-as à luz destes critérios, é fácil perceber que
estivemos quase sempre mergulhados numa cultura política e de Governo
socialista, mesmo quando não eram os socialistas de nome que estavam no
Governo.
Mais uma razão para me sentir não socialista.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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