O conflito político é caso extremo de um fenômeno latino-americano e precisa ser enfrentado como tal
por Antonio Luiz M. C. Costa
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publicado CARTA CAPITAL
Federico Parra/AFP
A prisão de
antonio Ledezma é uma manobra do governo de Nicolás Maduro para distrair
os venezuelanos da crise econômica ou o prefeito oposicionista de
Caracas esteve de fato envolvido em uma conspiração golpista? Não se
descarte qualquer das hipóteses nem uma combinação de ambas. A realidade
não permite visões simplistas.
A acusação não foi até agora comprovada
de forma a satisfazer observadores externos, mas é tudo menos
inverossímil. O prefeito participou de pelo menos um golpe, o de 11 de
abril de 2002, e sempre integrou a linha-dura da oposição, aquela que
julga sua pretensão ao poder inegociável, urgente e acima de
considerações constitucionais. Durante as 48 horas de poder do
empresário Pedro Carmona, Ledezma comandou a tomada da prefeitura de
Caracas ao chavista Freddy Bernal, para o qual perdera a eleição dois
anos antes.
Derrotados os golpistas, participou das
manifestações em apoio ao locaute que paralisou por meses a PDVSA para
novamente tentar derrubar o governo. Em 2004, lançou seus militantes
“heroicamente” contra uma cúpula dos países não alinhados em Caracas e
em uma marcha que acabou na depredação e incêndio da sede do partido
chavista e acusou de fraude o referendo que manteve Hugo Chávez no
poder, cuja legitimidade foi reconhecida até por George W. Bush. No ano
seguinte, liderou um boicote da oposição às eleições legislativas para
deslegitimar o governo, erro crasso que deixou a Assembleia sem oposição
nos anos de maior popularidade do bolivarianismo. Em fevereiro de 2014,
no cargo de prefeito, apoiou os protestos violentos contra Maduro
liderados por Leopoldo López, que deixaram 43 mortos e milhares de
feridos. Na ocasião, essa exigência do “saia já” foi condenada pelo
próprio candidato presidencial derrotado Henrique Capriles, que
advertiu: “É preciso entender que, se o povo humilde não sai às ruas,
não há maneira de promover mudanças”.
Segundo o governo, o novo plano envolvia o
bombardeio do palácio presidencial, do Ministério da Defesa e da sede
da emissora bolivariana Telesur por aviões, enquanto estudantes sairiam
às ruas e seria divulgado um manifesto convocando os militares à
rebelião, assinado pelos três principais líderes do movimento “La
Salida” de fevereiro de 2014, Ledezma, López (preso desde então) e a
ex-deputada María Corina Machado, cassada no ano passado depois de
aceitar um cargo de “embaixadora alternativa” do Panamá, hostil a
Caracas, na Organização dos Estados Americanos. Sete generais e tenentes
da Aeronáutica foram detidos em 12 de fevereiro, data prevista para o
ataque e aniversário dos protestos. Os demais comandantes militares
reafirmaram a lealdade ao governo de Maduro.
Por outro lado, há motivos
reais para insatisfação. Se não se combinasse com uma gestão
voluntarista, a queda do preço do petróleo e a má vontade de empresários
privados não bastariam para explicar a deterioração de uma economia que
há poucos anos distribuía ajuda a vários países latino-americanos e até
aos pobres dos Estados Unidos.
Há quatro taxas de câmbio para racionar a
escassez de dólares. A taxa oficial, de 6,30 bolívares, converte a
maior parte da receita petrolífera em importação de alimentos básicos e
remédios. A taxa Sicad (Sistema Complementar de Administração de
Divisas), para turismo e importações não prioritárias, funciona em
regime de leilões, refere-se a 20%-25% da receita oficial e gira em
torno de 12 bolívares. Uma terceira taxa, Simadi (Sistema Marginal de
Divisas) aplica-se a 5% a 10% das divisas do petróleo, funciona em
regime de livre-mercado e está em 172 bolívares, e ainda existe o câmbio
paralelo, que desde a morte de Hugo Chávez subiu de 20 para 195
bolívares. Assim, o litro da gasolina, que custa 9,7 cêntimos de
bolívar, equivale a 4,4 centavos de real pelo câmbio oficial ou a 0,14 centavo de real pelo paralelo.
São sintomas de
desequilíbrios graves. O custo real de produção da gasolina é de pelo
menos 2,7 bolívares sem se somar o preço internacional do petróleo
bruto, que acrescentaria outro tanto, mas Maduro não ousa aumentar o
preço na bomba. Foi um reajuste como esse que provocou o Caracazo
de 1989, cuja repressão violenta (2 mil mortos) iniciou a instabilidade
que derrubou Carlos Andrés Pérez e pôs Chávez a caminho do poder. Para
evitar o aumento dos bens de primeira necessidade, o câmbio oficial é
mantido artificialmente baixo, mas a inflação subiu para compensar a
insuficiência da arrecadação de impostos. Tais condições desencorajam a
agricultura e a indústria nacionais e põem em risco a manutenção da
própria infraestrutura petrolífera, a julgar pela frequência dos
acidentes em refinarias. O chavismo não criou esse círculo vicioso, mas
também não o rompeu e comprometeu com programas sociais uma fatia cada
vez maior da receita do petróleo quando o preço subia, o que tornou o
orçamento vulnerável à queda inesperada.
Chávez cogitava um ajuste e talvez seu
carisma tivesse facilitado a absorção de uma medida tão impopular, mas o
adiou para depois das eleições de 2012 e então sua doença se agravou.
Ficou ainda mais difícil na conjuntura de assédio pela oposição na qual
Maduro assumiu, concorreu à Presidência e continua a governar. Seria
necessário um diálogo racional para se chegar a um consenso sobre mudar
os rumos da economia sem prejudicar os menos favorecidos, mas como
debater de maneira razoável com uma oposição cujo único horizonte é
negar e desmantelar o chavismo e todos os avanços conquistados? Na
erupção de protestos de há um ano os alvos preferenciais da violência
eram não só casas de governistas como emissoras comunitárias, mercados
populares, conjuntos habitacionais, creches e centros de saúde, tudo que
representa o Estado social. Se medidas autoritárias pareceram se
multiplicar nos últimos tempos, foi também um imperativo do instinto de
sobrevivência.
Se em tempos melhores, interesses de
classe opostos podem, até certo ponto, ser conciliados por meio de certa
astúcia política, nas vacas magras alguém tem de perder e quem pode
mais faz o possível para chorar menos. Versões pouco menos agudas do
mesmo impasse se observam em outros países latino-americanos com
governos de centro-esquerda diante de problemas devidos à combinação do
aumento de gastos sociais com a queda dos preços de commodities, casos
do Brasil de Dilma Rousseff e da Argentina de Cristina Kirchner. Mesmo
se o país acaba de encerrar um governo de direita e o novo ciclo de
reformas mal começou, como no Chile de Michelle Bachelet, onde pais de
alunos de escolas particulares se enfurecem contra as medidas que
permitirão reconstruir o ensino gratuito.
Independentemente da seriedade das
dificuldades econômicas ou de atitudes autoritárias contra a mídia ou as
oposições, os três governos são alvo de protestos de classe média,
indignação seletiva e desproporcional da mídia nacional e estrangeira e
processos judiciários conduzidos com rigor incomum, quando não com
parcialidade óbvia. Em alguns casos, inclusive no Brasil, as
reivindicações da oposição conservadora são um disfarce precário para um
ódio visceral e nada civilizado a mudanças ameaçadoras a velhos
privilégios. Há protestos populares, mas não a mesma fúria das elites em
paí-
ses igualmente afligidos por crise econômica, corrupção e problemas sociais ainda piores, mas com governos conservadores. Assim o papa Francisco, por ver o continente por seus próprios olhos e não os dos analistas da tevê, chocou o presidente Enrique Peña Nieto ao se confessar preocupado com o risco de mexicanização da Argentina – não o de argentinização (ou brasilianização) do México.
ses igualmente afligidos por crise econômica, corrupção e problemas sociais ainda piores, mas com governos conservadores. Assim o papa Francisco, por ver o continente por seus próprios olhos e não os dos analistas da tevê, chocou o presidente Enrique Peña Nieto ao se confessar preocupado com o risco de mexicanização da Argentina – não o de argentinização (ou brasilianização) do México.
Seria ingênuo desprezar a priori
a hipótese de uma articulação internacional de oposições conservadoras
para reforço mútuo em uma conjuntura difícil para todos os governos
populares, nem a da participação de agências dos EUA desejosas de
reconfigurar as partes da América Latina que pareciam domesticadas nos
anos 1990, mas roeram a corda na virada do milênio. A convergência
desses interesses é tão mais óbvia quanto mais Washington sente sua
hegemonia ameaçada. A divergência entre Aliança do Pacífico, Mercosul e
Alba é em grande parte reflexo da disputa por influência entre
Washington e Pequim. Indício disso é o recente início de construção de
um canal rival do Panamá na sandinista e bolivariana Nicarágua.
Para os governos assediados e quem mais
acredite em desenvolvimento independente e justiça social, a resposta
possível é também a articulação, para a qual a Unasul tem se mostrado um
fórum útil. A pressão dos vizinhos teve sucesso em ajudar a estabilizar
a Bolívia após os violentos protestos separatistas de 2008 e mesmo na
própria Venezuela de 2002. Entretanto, não há como mediar a crise em
Caracas se não houver um mínimo de disposição de ambas as partes para
fazer concessões, do governo para viabilizar o direito de defesa e o
julgamento transparente dos acusados e da oposição para esperar a
oportunidade legal de disputar o poder nas urnas. E, desta vez, é
preciso planejar uma saída viável para o impasse econômico, cuja
gravidade não permite mais panos quentes e improvisações.
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