Diante do declínio da confiança na imprensa e da escalada de ataques a jornalistas, as descobertas do Media Insight Project oferecem caminhos para fora da crise. Maria Clara Vieira para a Gazeta do Povo:
“Jornalismo
é publicar o que alguém não quer que se publique. Todo o resto é
publicidade”. Erroneamente atribuída a George Orwell, a frase de William
Randolph Hearst, o bilionário americano que serviu de inspiração para o
Cidadão Kane de Orson Welles, aparece sempre que as manchetes dos
jornais incomodam os poderosos - sejam estes políticos, empresários,
celebridades ou, nos tempos correntes, “influenciadores”. Não obstante,
sempre houve quem não gostasse da imprensa - e quem, de diversas formas,
tenha tentado impedi-la de fazer o seu trabalho.
Todos
os anos, o Brasil acumula dezenas de casos de tentativas de censura,
ameaças, agressões verbais e físicas contra jornalistas. Para lembrar de
alguns casos famosos; em outubro de 2014, às vésperas da eleição que
deu início ao segundo mandato de Dilma Rousseff, um grupo de 200
pessoas, ligado à União da Juventude Socialista, atacou a sede da
Editora Abril por conta de uma reportagem da revista Veja que revelava
que Dilma e o ex-presidente Lula foram informados pelo doleiro Alberto
Yousseff sobre a corrupção na Petrobras.
Em
abril de 2018, pelo menos nove jornalistas, de diferentes veículos de
comunicação (Rede Globo, Rede TV!, Jovem Pan, Bandnews FM, entre outros)
foram agredidos física ou verbalmente em manifestações contra a prisão
de Lula. Há uma semana, um repórter e um cinegrafista da CNN foram
hostilizados durante a cobertura da manifestação em apoio ao presidente
Jair Bolsonaro que, na última quarta-feira, se referiu a uma
apresentadora da mesma emissora como “uma quadrúpede”.
O
ano de 2020 atingiu uma marca histórica: segundo o documento Violência
Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, produzido pela
Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), foram 428
ocorrências, uma alta de cerca de 106% em comparação com o ano anterior.
Destes casos, 85 foram tentativas de censura, enquanto 32 tratam de
violência física. A maioria das ocorrências trata de episódios de
descredibilização da imprensa; um dado que corrobora a recente pesquisa
do PoderData, segundo a qual a desconfiança do público brasileiro em
relação à imprensa no Brasil caiu dez pontos percentuais.
Às
vésperas de um novo ano eleitoral no Brasil, a crise parece
irremediável. E o problema não se restringe às fronteiras nacionais: no
mês que se seguiu à morte de George Floyd, pelo menos 148 repórteres
foram presos ou atacados nos Estados Unidos onde, só neste ano, foram
registradas 62 agressões físicas a jornalistas; enquanto um terço da
população americana diz que não confia “nem um pouco” na imprensa.
É
importante deixar claro que nenhum jornalismo está isento de erros nem
de vieses; e que nenhuma destas falhas justifica as agressões.
Entretanto, o abismo crescente entre o jornalismo profissional e o
público é inegável; e foi o que motivou um time de pesquisadores do
American Press Institute e do laboratório de pesquisas sociais da
Universidade de Chicago a realizar um estudo abrangente publicado em
abril deste ano, cujo resultado corrobora uma impressão há muito
sedimentada: boa parte do público têm valores diferentes daqueles
cultivados pela imprensa - e eles não necessariamente têm a ver com seu
partido de preferência.
“A
inquietação com esses valores fundamentais do jornalismo está mais
ligada aos instintos morais subjacentes das pessoas do que à política”,
diz o documento. “Em outras palavras, quando os jornalistas dizem que
estão apenas fazendo seu trabalho, o problema é que muitas pessoas têm
dúvidas sobre como o trabalho deveria ser”.
Os valores morais do público versus os valores do jornalismo
Antes
de apresentar os dados da pesquisa, entretanto, é preciso dar um passo
atrás. O que são, afinal, os “valores morais” avaliados pelos
pesquisadores?
O
estudo em questão é baseado na Teoria dos Fundamentos Morais,
desenvolvida pelo psicólogo Jonathan Haidt. Em seu livro, “A Mente
Moralista: Por que as pessoas boas se separam por causa da política e da
religião?” (Editora Alta Books), cuja síntese foi apresentada por Haidt
em uma palestra na conferência TED Talk em 2012, o psicólogo explica
que, ao analisar um extenso escopo de culturas, estudos antropológicos,
correntes filosóficas etc, percebeu a existência de cinco “canais”
morais - comparado por Haidt a equalizadores de rádio - aos quais o ser
humano tende a responder instintivamente; com base, inclusive, em
predisposições genéticas: cuidado, justiça, lealdade ao grupo,
autoridade e pureza.
Sustentada
em dezenas de milhares de questionários respondidos por pessoas de
todos os continentes, a pesquisa levou à conclusão de que seres humanos
respondem com intensidades diferentes aos cinco valores. Em suma,
pessoas que são, naturalmente, mais abertas à novidade e, portanto,
tendem a ser mais progressistas, dão muito valor à justiça (também
entendida como “equidade”) e ao cuidado com o próximo, mas quase nenhuma
importância à lealdade grupal, autoridade e pureza; enquanto pessoas
que valorizam a estabilidade e tendem ao conservadorismo valorizam os
cinco itens.
O
próprio Haidt acrescenta nuances importantes aos traços analisados: o
zelo pela autoridade não necessariamente significa subserviência ao
poder ou apreço pela agressividade, mas uma “deferência voluntária” a
figuras entendidas como mais respeitáveis ou, em uma forma menos
pessoal, às instituições; tal como a pureza não implica apenas em
controle da sexualidade, mas em “todo tipo de ideia que diz que você
pode alcançar a virtude se controlar o que faz com seu corpo”. “Enquanto
a direita política tende a moralizar o sexo, a esquerda tende a fazer o
mesmo com a comida", explica Haidt.
Além
disso, o psicólogo deixa claro que os progressistas têm boas razões
para defender o que defendem: são eles os primeiros a questionar as
autoridades, advogar pela diversidade e insistir que as leis não devem
versar sobre o que eles fazem com o próprio corpo. "As regras
tradicionais podem ser bastante restritivas para quem não se encaixa
nelas ou para quem está na base da pirâmide", diz Haidt que, por outro
lado, valoriza o princípio conservador de que a ordem é “muito difícil
de ser alcançada e fácil de ser destruída”. O próprio Haidt avalia que,
desde as pequenas comunidades que floresceram em lugares inóspitos às
grandes civilizações que prosperaram, todas precisaram dos “cinco
canais” funcionando.
Em
contrapartida, com base em entrevistas com repórteres, editores e
outros membros da imprensa e estudiosos da mídia, os pesquisadores
elencaram os cinco valores fundamentais do jornalismo: vigilância (a
ideia de que o poder deve ser constantemente monitorado);
transparência, factualismo (a ideia de que decisões melhores são tomadas
diante de mais informações), dar voz aos mais frágeis e criticismo
social (a ideia de que apontar os problemas da sociedade é essencial
para chegar às soluções).
A conta que não fecha - e o que falta para fechar
Agora,
aos resultados. Dos cinco valores considerados fundamentais para o
jornalismo, apenas um conta com o apoio da maioria (67% dos americanos: a
ideia de que mais fatos nos aproximam da verdade e levam a sociedade a
tomar decisões melhores. Contudo, menos de um terço (29%) da população
concorda que destacar os problemas da sociedade é uma boa maneira de
torná-la melhor.
Ocorre
que, ainda que democratas sejam mais propensos do que os republicanos a
se identificar mais com os valores em questão, as divergências com os
princípios da imprensa perpassam ambos os partidos, e encontram respaldo
nos sentimentos morais das pessoas. Descobriu-se, por exemplo, que em
ambos os lados, pessoas que valorizam a lealdade e a autoridade têm
muito menos probabilidade do que outras de endossar a ideia de que deve
haver uma vigilância constante sobre os que estão no poder. Esse público
tende a ser mais cético em relação aos princípios do jornalismo ou, no
mínimo, teme que esses valores possam ser levados longe demais.
Um
possível retrato brasileiro desta posição, por exemplo, é a defesa de
que mensagens obtidas ilegalmente, ainda que fossem supostamente
verdadeiras, não deveriam ter sido divulgadas pela imprensa, sob o risco
de comprometer o trabalho da Lava-Jato - como acabou acontecendo.
Contudo, na esquerda, há quem, sob os mesmos impulsos morais, entenda
que a imprensa foi excessivamente crítica aos governos petistas, sem
destacar as medidas sociais. Sem entrar no mérito da causa, nota-se como
a relativização da vigilância segundo certos princípios subjaz
diferentes espectros.
Além
disso, os pesquisadores separam em grupos distintos aqueles que
valorizam a lealdade e a autoridade acima de tudo e costumam ser
profundamente céticos com relação ao trabalho da imprensa, ainda que
consumam muitas notícias, daqueles que valorizam igualmente os “canais
morais” (incluindo pureza, cuidado e justiça) e que, ainda que
desconfiem da mídia, valorizam a transparência e o factualismo. Este
grupo é majoritariamente formado por mulheres e conta com grande adesão
de imigrantes e outras minorias, de ambos os espectros ideológicos.
Por
isso, os pesquisadores afirmam que “essas diferenças persistem mesmo
quando controlamos o partidarismo político e a ideologia de uma pessoa”.
E que estes grupos, antenados em maior ou menor grau aos “canais” da
autoridade e da lealdade, gostariam de ver mais matérias sobre o que
funciona, não apenas sobre o que está errado na sociedade. Apenas 11%
dos americanos abraçam completamente os cinco valores do jornalismo - e
estes tendem a ser progressistas.
Isso
significa, portanto, que para dialogar com o público a imprensa deve se
abster de ficar no encalço dos poderosos? Não. Os autores do estudo
recomendam, inclusive, que o grupo batizado de “moralista” - o das
pessoas antenadas aos cinco canais morais, que responde por cerca de 23%
da população - pode ser um bom ponto de partida para a conversa.
A
pesquisa mostrou, por exemplo, que pequenas mudanças nas manchetes
podem fazer com que certas matérias sejam bem-recebidas tanto por
progressistas quanto por conservadores. “Reportagens que retratam
histórias de heroísmo e lealdade repercutem bem entre pessoas que
valorizam a estabilidade; o que não significa que elas não estejam
preocupadas com justiça - apenas que se engajam com o assunto de maneira
diferente”, diz o documento.
Além
de exortar a imprensa a ampliar o apelo moral de suas reportagens, os
pesquisadores avaliam que o jornalismo tem a ganhar também ao reavaliar
seu papel diante da comunidade. "As pessoas que mais enfatizam o cuidado
ou a justiça foram mais motivadas por mensagens que destacam o
compromisso do veículo de proteger os mais vulneráveis por meio de sua
cobertura de notícias. Pessoas que enfatizavam autoridade e lealdade
preferiam uma mensagem sobre o serviço de longo prazo do veículo à
comunidade local".
Diante
do declínio da confiança na imprensa e da escalada de ataques a
jornalistas, as descobertas do Media Insight Project oferecem caminhos
para fora da crise. Em sua palestra sobre as bases morais de
conservadores e progressistas, Jonathan Haidt, um ferrenho militante do
diálogo inter-ideológico, afirma que "se você acha que metade do país
votou em um candidato por burrice, você está preso em uma Matrix moral”.
À
luz dos resultados, pode-se imaginar que a mesma Matrix comporta quem
acredita que um repórter faz seu trabalho como faz por puro ódio
ideológico, bem como os jornalistas e editores que veem no público uma
massa ignorante e imoral a ser moldada de acordo com seus ideais. A
“pílula vermelha” oferecida pelo psicólogo é o passo para fora dessa
realidade paralela. Um convite ao público e - ainda mais urgente - à
imprensa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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