Em tempos em que a pseudociência ganha até ares oficiais, valha o ensaio de James Ladyman sobre essa distinção estabelecida pelo filósofo Karl Popper, publicado pela Crítica na Rede, com tradução de Hélio S. C. Carneiro:
“Uma das características mais salientes da nossa cultura é que há muita treta”.
Harry Frankfurt (2005, 1)
A pseudociência é um fenômeno complexo como a ciência e, como a treta,1
pode ser sofisticada e artisticamente elaborada. É social, política e
epistemicamente importante fazer a taxonomia desses fenômenos, e o
presente capítulo oferece uma modesta contribuição para tal projeto.
Argumentarei, primeiro, que o conceito de pseudociência é diferente dos
conceitos de não-ciência, de má ciência e de fraude científica; em
segundo lugar, que o conceito de pseudociência é útil e importante,
havendo necessidade de sua elaboração teórica; e, terceiro, que é
possível fazer progresso nesse sentido com base na célebre abordagem de
Harry Frankfurt da treta. Falar tretas, segundo Frankfurt, é muito
diferente de mentir. Similarmente, a pseudociência é diferente da fraude
científica. O pseudocientista, como quem fala tretas, tem menor contato
com a verdade e está menos preocupado com ela do que o fraudulento ou o
mentiroso. Considerarei a diferença entre as abordagens da ciência e da
pseudociência que se focam no produto e as que se focam no produtor, e
esboçarei uma abordagem em termos da organização social e das relações
dos produtores, de sua relação com o produto, bem como da confiabilidade
do processo de produção.
Como a pseudociência difere da não-ciência, da má ciência e da fraude científica
“A ciência muitas vezes erra, e […] a pseudociência pode por acaso tropeçar na verdade”.Karl Popper (1963, 33)
Por
ora, vamos tomar o conceito de ciência como dado. A física e a biologia
são muito diferentes de várias maneiras, mas são ambas indubitavelmente
ciências. Claramente, há muita atividade intelectual que não é
científica, como o caso da filosofia política ou da crítica literária
(embora ambas possam se aproveitar da ciência, especialmente a
primeira). Alguma dessa atividade pode ter como objetivo a aquisição de
conhecimento, e pode até basear-se na recolha de evidências empíricas,
como é o caso da história, por exemplo. O conceito de não-ciência não
implica juízo de valor acerca do seu objeto, e não é particularmente
pejorativo descrever algo como não-científico. Em contraste, dado que,
segundo o Oxford English Dictionary, “pseudo” significa “falso, fingido,
falsificado, espúrio, farsa; aparente, mas não real, falsa ou
erroneamente chamado ou representado, falsamente, de modo espúrio”, é
bastante claro que o termo “pseudociência” tem uma carga normativa.
Contudo, uma distinção importante entre dois usos é feita pelo
dicionário em questão: o primeiro, um substantivo contável, envolve ou
um sentido derivativo do segundo, ou o que é erroneamente considerado
ciência ou baseado no método científico. O segundo, um substantivo
incontável, é o que se finge que é ciência. Abaixo será defendido que é
este segundo sentido, ou o primeiro sentido deste derivado, que os
filósofos da ciência normalmente têm em mente quando utilizam o termo, e
que a ciência equivocada ou algo ser confundido com ciência não
resultam em pseudociência em nenhum sentido interessante ou importante.
A
história da ciência está repleta de erros e falsidades, ainda que
consideremos que só começou na Revolução Científica. Por exemplo, a luz
não é composta de corpúsculos como Isaac Newton acreditava, as
substâncias inflamáveis não contêm flogisto e a taxa de expansão do
universo não está diminuindo como pensava a ortodoxia em cosmologia até
aos anos 1990. Nenhum dos cientistas responsáveis por promulgar essas
crenças falsas parece merecer ser chamado de pseudocientista, e não
seria apropriado chamar cada teoria científica errônea de pseudociência.
Parece claro que a conotação de fraude, ou de algum tipo de fingimento,
é essencial para os usos contemporâneos do termo “pseudociência”, ou
que ao menos isso deveria fazer parte de qualquer classificação do
conceito a ser proposta. Nem mesmo a má ciência divulgada como boa é
necessariamente apropriadamente descrita como pseudociência. Por
exemplo, a herança lamarckista pode ter sido recentemente recuperada em
alguma medida, mas a ideia básica de que as características fenotípicas
adquiridas não são herdadas está correta. Os jogadores profissionais de
tênis desenvolvem ossos muito mais pesados e músculos maiores num braço e
num ombro, mas os seus filhos não têm nenhuma variação desse tipo. Nos
anos 1920, William McDougall afirmou que os descendentes dos ratos que
aprenderam o arranjo de um labirinto particular eram capazes de
percorrê-lo mais rapidamente do que os descendentes dos ratos que não
aprenderam o arranjo do labirinto. Oscar Werner Tiegs e Wilfred Eade
Agar e seus colaboradores mostraram que o trabalho de McDougall era
baseado em maus controles experimentais, coisa que fez tal trabalho ser
má ciência, mas não uma fraude ou baseado em algum tipo de fingimento.
De modo mais prosaico, um estudante universitário de física incompetente
que chega à resposta errada ao determinar experimentalmente a
aceleração devido à gravidade não é considerado um pseudocientista, e
nem é o seu relatório laboratorial considerado pseudociência.
Assim,
a pseudociência não é apenas não-ciência, e nem é simplesmente má
ciência. Talvez a ideia de fraude ou fingimento seja o único ingrediente
que falta para a pseudociência, como o dicionário sugere. Afinal, os
pseudocientistas frequentemente fingem que algumas crenças são
sustentadas por evidência científica ou por teorização científica quando
não o são, exatamente como os fraudadores fazem. Claramente, nem toda a
não-ciência ou a má ciência é fraude científica, de modo que talvez
este último seja o único conceito adicional de que precisamos. A fraude
científica certamente existe e pode ser extremamente prejudicial, e,
dado que os resultados falsos e a ciência muito má não resultam em
fraude sem ter havido a falsificação de dados ou a intenção de enganar
sobre como se chegou a certos resultados, parece que fizemos a conexão
com a segunda definição de pseudociência contida no dicionário.
Entretanto,
isso não será adequado por pelo menos duas razões. Primeiro, a intenção
deliberada de enganar acerca de fatos explicitamente expressados sobre o
mundo (normalmente incluindo dados experimentais) é uma condição
necessária para a fraude científica, mas não para a pseudociência. Por
exemplo, é famosa a posição de Karl Popper (1963) de que, embora a
psicologia freudiana ou alderiana e o marxismo tenham sido defendidos
como científicos por muitos dos seus respectivos partidários, todas
essas teorias são de fato pseudocientíficas. Ainda assim, não está claro
se algum partidário, ou até mesmo a maioria deles, era desprovido de
sinceridade. É absurdo sugerir que as obsessivas pesquisas de toda uma
vida de Sigmund Freud não são uma tentativa genuína de abordar os
profundos problemas da compreensão da mente e personalidade humanas, da
motivação e das formas bizarras de comportamento patológico e
autodestrutivo que chamaram a sua atenção.2
Similarmente, Frederick Engels certamente acreditava na sua famosa
afirmação de que, assim como Charles Darwin havia compreendido a
evolução biológica, Karl Marx havia descoberto as leis da evolução das
sociedades humanas. Assim, os pseudocientistas não têm de ser desonestos
acerca das suas crenças explícitas que formam o objeto da
pseudociência, ainda que sejam enganadores ou que estejam enganados de
outras formas. Nem toda a pseudociência é fraude científica. Por outro
lado, os fraudadores científicos tencionam enganar os outros sobre a
verdade (ou sobre o que pensam ser a verdade). Portanto, nem toda a
pseudociência é fraude científica, embora algo da primeira possa
envolver a segunda.
Também
parece incorreto chamar de pseudociência a maioria dos exemplos de
fraude científica, uma vez que isso oferece um diagnóstico errado do
problema. Na fraude científica, não é a metodologia anunciada, a
natureza do assunto e o tipo de teorias que estão em questão, e nem são
os princípios básicos sobre os quais a disciplina se baseia que são
problemáticos. A farsa da pseudociência é mais profunda do que a mera
falsificação de resultados; é a própria natureza do empreendimento e dos
seus métodos que se finge falsamente serem científicos. Além disso, é
claramente possível utilizar a fraude científica para estabelecer uma
teoria que está na continuidade com a ciência estabelecida, que é de
esperar e que não apresenta uma ameaça à ortodoxia, e que é efetivamente
verdadeira. Considere um cientista que se apressa a publicar resultados
preliminares e que afirma que ocorreu uma ampla verificação com mais
dados quando na verdade não ocorreu. Os resultados podem estar corretos e
mais dados poderiam tê-los sustentado caso fossem coletados, mas isso
ainda assim é um caso de fraude científica. Portanto, a fraude
científica enquanto tal não é pseudocientífica, muito embora, como foi
mencionado, ambas possam se sobrepor em alguns casos.
Por que precisamos do conceito de pseudociência
“A demarcação entre ciência e pseudociência não é meramente um problema da filosofia de poltrona: se trata de algo de vital relevância social e política”.Imre Lakatos (1977, 1)
A
pseudociência não é o mesmo que a não-ciência, que a má ciência ou que a
fraude científica, muito embora todas possam ter sobreposições e, em
particular, a fraude científica é, no geral, bem diferente da
pseudociência. Quando a teoria do desígnio inteligente (DI) é descrita
como pseudocientífica, pode haver a sugestão de desonestidade, uma vez
que alguns defensores do DI foram anteriormente defensores do
criacionismo da Terra jovem; consequentemente, parece que promovem o DI
não porque representa as suas crenças, mas antes porque pensam que isso
irá enfraquecer a hegemonia da biologia evolucionista na educação
científica e ceder espaço para os interesses religiosos que são a sua
principal preocupação. Contudo, este tipo de enganação não é necessário,
como vimos. Nem todos os defensores da homeopatia a promovem sem
acreditarem na sua eficácia (e nem mesmo provavelmente a maioria, e
talvez até nenhum o faça). E mesmo assim a homeopatia é um exemplo
paradigmático de pseudociência. Ela nem é simplesmente má ciência, e nem
é fraude científica, mas antes algo que se afasta profundamente dos
métodos e teorias científicos, ao mesmo tempo em que é descrita (muitas
vezes sinceramente) como científica por alguns dos seus adeptos.3
Assim,
uma taxonomia completa requer um conceito que é distinto da
não-ciência, da má ciência e da pseudociência. Mas vale a pena, na
prática, ter o conceito de pseudociência? Seria isso social, política
e/ou epistemicamente importante, como disse Imre Lakatos? Certamente, a
julgar pelo tanto que a palavra “pseudociência” é utilizada, muitos
cientistas e autores de ciência pensam que o conceito é importante. No
entanto, o perigo de usar palavras para expressar juízos de valor fortes
é que a motivação para condenar algo faz muitas vezes as pessoas usar a
palavra tornando-a uma expressão generalista utilizada para expressar
desaprovação mesmo quando não seleciona nenhuma categoria real no mundo.
Por exemplo, termos como “conservador” e “progressista” são
frequentemente utilizados para criticar no discurso político público,
mesmo quando não selecionam necessariamente categorias genuínas, uma vez
que as categorias de crenças e de indivíduos aos quais tais termos se
referem são incrivelmente diversos e muitas vezes contraditórios. Termos
como “ciência judia” também são claramente espúrios. Se referem a algo
apenas por ostensão ou estipulação — como quando se diz que “a
relatividade especial é ciência judia” — e não porque há alguma
categoria assim no mundo. Os cientistas são um importante setor da
sociedade, e têm interesses especiais e objetivos próprios como todas as
outras pessoas, e, sendo assim, o mero fato de o termo “pseudociência”
parecer indispensável para eles e para os seus aliados culturais não é
suficiente para estabelecer que vale a pena utiliza-lo. A seção anterior
estabeleceu que há um espaço lógico para um conceito distinto dos
outros conceitos discutidos e que acomoda certos exemplos paradigmáticos
de pseudociência, mas não que utilizar o conceito de pseudociência é
teoricamente ou praticamente valioso.
Larry
Laudan (1982) argumenta que é um erro se ocupar com a pseudociência a
nível abstrato, bem como caracterizá-la e mostrar como difere da ciência
em termos de critérios gerais relacionados aos tipos de teorias que
utiliza ou aos métodos por ela empregados. Em vez disso, defende,
deveríamos nos concentrar em avaliar afirmações de primeira ordem sobre o
mundo de modo particular e considerar se as evidências as sustentam.
Segundo essa visão, as crenças acerca da eficácia dos tratamentos
médicos heterodoxos ou acerca da idade e da geologia da Terra que são
consideradas pseudocientíficas não devem ser objeto de desconfiança por
esta razão, mas antes porque não há evidência a seu favor. Argumenta-se,
então, que, para combater o que chamamos de “pseudociência”, não
necessitamos de qualquer noção do tipo, mas simplesmente da ideia de
crenças que não estão de acordo com os fatos e evidências. Mas
confrontar a pseudociência dessa maneira é problemático: isso consome
muito tempo e muitos recursos, não é útil quando se envolve em debates
públicos que operam a um nível geral e é demasiado detalhado para o
público cientificamente iletrado.
Há
considerações pragmáticas, mas note-se também que Laudan não mostra que
um tipo genuíno não é selecionado pelo termo “pseudociência”. Como se
fez notar, o fato de uma palavra ser usada por um grupo para rotular uma
categoria não implica que exista uma categoria genuína. Contudo, do
mesmo modo, o fato de um grupo às vezes utilizar mal um termo não
implica que ele seja desprovido de significado ou inútil, como Laudan
parece supor.4
No entanto, talvez o seu ceticismo acerca do valor do termo
“pseudociência” seja apenas o correlato de sua atitude similar em
relação ao termo “ciência”. O muito esforço usado na busca de critérios
de demarcação para este último termo não produziu uma definição sobre a
qual haja ampla concordância.
No
caso de Laudan, o seu estudo alargado da história da ciência e dos seus
métodos o convenceu de que a ciência mudou tanto que nenhum conjunto de
características estáveis pode ser identificado. Métodos estatísticos,
por exemplo, são essenciais para a ciência, e formação alargada neles
faz parte da educação dos cientistas em diversas áreas; ainda assim,
antes do século XX, esses métodos mal existiam. As técnicas de medição e
os critérios para boas explicações que temos atualmente são muito
diferentes dos do século XVIII. Entretanto, até mesmo Thomas Kuhn
enfatiza cinco critérios centrais de acordo com os quais todas as
teorias científicas podem ser julgadas:
1. Precisão — adequação empírica com experimentação e observação2. Consistência — tanto internamente quanto externamente com outras teorias3. Âmbito — amplas implicações para fenômenos além daqueles que a teoria foi inicialmente concebida para explicar4. Simplicidade — a explicação mais simples é preferível5. Fecundidade — devem resultar novos fenômenos ou novas relações entre fenômenos
Infelizmente, Kuhn não pensa que todo cientista concordará sobre como pesar esses critérios quando as teorias se saem bem em alguns dos critérios e mal em outros. Além disso, não pensa que concordarão nem mesmo sobre como as teorias se saem em um único critério, uma vez que isso envolve juízo, crenças de fundo e valores epistêmicos. Segundo Kuhn, então, não há uma única medida para cada critério e nem uma única maneira de lhes atribuir mais ou menos peso de modo a produzir uma classificação de teorias. Isso é similar à abordagem de Pierre Duhem (1954) acerca do problema da escolha de teorias, que consistia em negar que há uma regra que determina qual conjunto de teorias empiricamente equivalentes deve ser escolhido, baseada nas virtudes de teorias que vão além da conformidade com os dados. Duhem estava bem confiante de que existiam tais virtudes (e.g., a simplicidade) e que elas são pesadas entre si nos juízos sobre qual teoria escolher. Contudo, pensava que a escolha certa era uma questão de “bom senso” irredutível que não poderia ser formalizada. Duhem difere de Kuhn ao estar convencido de que todos os juízos desse tipo eram temporários, durando apenas até ao momento em que mais evidências empíricas ficavam disponíveis.5
À
luz desses argumentos acerca da demarcação entre a ciência e a
não-ciência e da contestada natureza do método científico, não é
imediatamente óbvio que até mesmo o termo “ciência” seja útil, dado que a
ciência é tão heterogênea e contesta-se se algumas de suas partes são
realmente científicas; considere, por exemplo, o ceticismo sobre as
ciências sociais ou sobre a teoria das cordas. Talvez seja melhor fazer
uma desambiguação entre, por exemplo, ciências médicas, ciências
físicas, ciências da vida e assim por diante, e não usar o termo
“ciência” de todo em todo.
No
entanto, o fato de a ciência evoluir e de ser difícil captar a sua
natureza numa definição pode ser superado pela simplicidade teórica e
pela utilidade do conceito de ciência. Além disso, há também
continuidade na ciência com o passar do tempo, e não temos nenhuma
dificuldade em entender as teorias e modelos de Newton, bem como os
problemas que ele se propôs a resolver, nem leis fenomenais como as de
Boyle e de Kepler. Podemos ficar razoavelmente confiantes de que os
grandes cientistas do passado considerariam as nossas teorias e o nosso
conhecimento experimental atuais como a realização das suas ambições.
Robert Boyle reconheceria a química moderna pelo seu sucesso empírico,
mesmo que considerasse muito dela desconcertante; e, presumivelmente,
consideraríamos igualmente fácil convencer Robert Hooke do nosso
conhecimento da microbiologia. O nosso entendimento do arco-íris e da
formação do sistema solar continua fundamentalmente relacionado às
explicações desses fenômenos dadas por Descartes. Todo, ou quase todo, o
conhecimento empírico estabelecido do passado foi retido no que foi à
parte isso uma mudança radical de teoria. A gravitação newtoniana é um
limite de baixa energia da relatividade geral, por exemplo. Uma
semelhança familiar certamente existe entre as ciências, e o sucesso de
áreas como a termodinâmica e a biofísica mostra que a ciência como um
todo tem uma grande continuidade e unidade.
Como
o conceito de ciência, o conceito de pseudociência é útil porque faz a
taxonomia dos fenômenos de modo razoavelmente preciso e sem muito erro.
Isso é tudo o que pode ser exigido de qualquer conceito do tipo. Por
exemplo, vários ramos do charlatanismo e da publicidade da banha da
cobra têm em comum o fato de imitarem teorias e explicações científicas e
de frequentemente empregarem termos científicos, ou termos que soam
como científicos, como se estivessem conectados ao conhecimento
científico. Ser capaz de utilizar o conceito de pseudociência é
importante para avançar a compreensão pública da ciência e para garantir
que as políticas públicas e a saúde pública estejam sendo orientadas
por ciência genuína.
É
um fato conhecido dos filósofos, senão frustrante, que conceitos
importantes e até mesmo fundamentais, como o de conhecimento, resistem à
análise de condições necessárias e suficientes. Caso tivéssemos
concluído as nossas investigações preliminares sobre o conceito de
pseudociência a identificando com os conceitos de má ciência ou de
fraude científica, não teríamos feito mais do que adiar uma definição
completa até o próprio conceito de ciência ser explicado, uma vez que
tanto a má ciência quanto a fraude científica são definidas
negativamente em relação à ciência. A pseudociência certamente tem de
envolver também alguma forma de imitação da ciência ou de algumas das
suas características ou aparência. O que é distintivo da pseudociência
também pode ser esclarecido ao se considerar outro caso de um conceito
intimamente relacionado à propagação de falsidades, mas que acaba por
ser curiosamente singular e que similarmente acaba por enfraquecer a
busca genuína da verdade.
Sobre a pseudociência e a treta
“A treta é uma maior inimiga da verdade do que as mentiras”.Harry Frankfurt (2005, 61)
A
célebre investigação de Frankfurt sobre a treta parece motivada pela
sua percepção de que é importante para as nossas vidas, e não apenas
pelo seu interesse intelectual. A citação acima pode ser apropriadamente
aplicada à pseudociência: a pseudociência é uma maior inimiga do
conhecimento do que a fraude científica. Frankfurt sublinha um aspecto
muito importante sobre como a treta difere das mentiras: as últimas são
projetadas para nos enganar sobre a verdade, ao passo que a primeira não
está preocupada com a verdade de todo em todo. Essa distinção é
nitidamente análoga à distinção entre a pseudociência e a fraude
científica. Como uma primeira aproximação, podemos dizer que a
pseudociência está para a fraude científica como que a treta para a
mentira.
Essa
é apenas uma primeira aproximação porque normalmente supomos que quem
fala tretas sabe o que está fazendo, ao passo que, como foi apontado,
muitos pseudocientistas estão ao que parece genuinamente buscando a
verdade. Contudo, é possível que alguém involuntariamente incorra em
treta, e a pseudociência é frequentemente semelhante a isso. Ainda que a
representação de primeira ordem que um pseudocientista faz de si
próprio seja a de alguém que sinceramente busca a verdade, pode-se
argumentar que, num sentido mais profundo, ele não se importa realmente
com a verdade porque não dá atenção às evidências. Uma certa quantidade
de autoengano por parte de seus defensores explica como a pseudociência
está frequentemente desconectada de uma busca pela verdade, mesmo quando
os seus adeptos pensam o contrário. Isso é importante porque significa
que o que faz uma atividade estar conectada à verdade ou não depende de
mais do que as intenções individuais dos seus praticantes. Retornaremos a
isso.
Note-se
que a analogia entre a mentira e a fraude científica reside, não
obstante, no fato de que, como vimos, a fraude científica pode envolver a
propagação de afirmações que são verdadeiras. Afinal de contas, as
mentiras podem acabar se revelando verdadeiras. Grosso modo, alguém
conta uma mentira quando ele ou ela diz algo que acredita ser falso, com
a intenção de fazer com que a audiência acredite no que ele ou ela
pensa ser uma crença falsa acerca tanto de uma questão factual quanto do
que ele ou ela acredita sobre tal questão. Se o mentiroso está enganado
sobre a questão factual, acabando, então, inadvertidamente falando a
verdade, ele ainda assim mente. A fraude científica sempre envolve a
mentira, até mesmo quando acaba sustentando afirmações verdadeiras,
porque a fraude consiste na falsificação dos dados ou da metodologia
citados para sustentar aquelas afirmações.
A
analogia entre a treta e a pseudociência é bastante apropriada. Ambas
parecem captar algo importante que as distingue da propagação de
afirmações falsas, e, de algumas maneiras, mais perigosas do que ela. A
razão pela qual a pseudociência é tão perigosa é análoga à razão pela
qual Frankfurt pensa que a treta é mais perigosa que a mentira,
nomeadamente, porque sendo as mentiras afirmações directas sobre a
realidade, podemos provar, com suficiente escrutínio, que são mentiras,
ao passo que a treta e a pseudociência resistem à refutação por não
fazerem afirmações precisas de todo em todo. Elas nos desconectam
progressivamente da verdade de uma maneira mais pérfida do que as
mentiras, pois podemos acabar não apenas com crenças falsas, mas sem
crença nenhuma. De fato, enfraquecem o hábito de nos certificarmos que
os nossos pensamentos sejam determinados e tenham contato com a
realidade. Abordagens negativas da pseudociência a definem em termos de
ela não ser ciência, mas a analogia com a treta mostra que a
pseudociência possui uma natureza positiva semelhante à natureza da
treta, consistindo na produção de ruído epistêmico que só
superficialmente se assemelha a proposições e crenças.
Contudo,
uma diferença importante entre a treta e a pseudociência é que a
última, mas não a primeira, frequentemente expressa afirmações factuais
de algum tipo. Considere, por exemplo, explicações pseudocientíficas de
tratamentos médicos originais, havendo muitas variedades exóticas, bem
como variedades mais convencionais como a homeopatia: não importa quanta
tagarelice e quanto barulho as cerquem, essas explicações claramente
afirmam que os tratamentos são eficazes. No entanto, pode-se dizer que
essas afirmações factuais falsas (ou ao menos duvidosas) não são o que
faz com que a pseudociência seja o que é. Introduzamos uma distinção que
também se aplica às teorias da treta, da ciência e da pseudociência,
nomeadamente, a distinção entre produtor e produto. Podemos claramente
oferecer explicações que se focam nos textos ou nas teorias que são
produzidas ou nos estados mentais e nas atitudes das pessoas que os
produzem.
Muitas
pessoas procuraram demarcar a ciência da pseudociência em termos do
produto. De modo mais influente, Popper argumentou que alegações
genuinamente científicas devem ser testáveis, no sentido de serem
falsificáveis, e que as afirmações centrais de várias supostas
pseudociências são infalsificáveis. Esta condição é muito popular nas
discussões contemporâneas sobre a pseudociência. O problema é que “a
testabilidade, a revisibilidade e a falsificabilidade são requisitos
extremamente fracos” (Laudan 1982, 18) — ao menos, isto é, se a
testabilidade em princípio é tudo o que se exige. Por exemplo, imagine
um culto pseudocientífico que constrói uma teoria elaborada acerca de
uma intervenção alienígena prevista para o ano 3000. Isso é testável,
mas ainda assim é pseudocientífico. Obviamente, não é testável por um
longo período de tempo, e então pode-se argumentar que seja testável
apenas em princípio e não na prática. Contudo, não é possível determinar
o limite de quando exatamente precisamos ser capazes de realizar um
teste, e não queremos excluir testes propostos em algumas partes da
ciência que no momento não são testáveis na prática, uma vez que já
houve vários casos no passado que subsequentemente acabaram sendo
testados através de meios que se pensava serem impossíveis.6
Além disso, a exigência de testabilidade ou falsificabilidade é muito
forte, ao menos quando aplicada a proposições individuais, porque as
hipóteses científicas de nível superior não têm consequências empíricas
diretas. Assim, há várias afirmações científicas que não são
falsificáveis, pelo menos diretamente. Por exemplo, o princípio da
conservação de energia não implica nada até que acrescentemos hipóteses
sobre quais são os tipos de energia. De fato, a ideia da testabilidade
em princípio é bastante instável, dado que, se não mantivermos fixo o
resto da ciência e da tecnologia, as proposições que são testáveis se
modificam.
Há
algo correto sobre os critérios da testabilidade e da
falsificabilidade, mas essa não é uma coisa que será encontrada apenas
na sua aplicação às teorias e proposições. Antes de tratarmos disso, é
importante notar que é possível dar à noção de testabilidade uma leitura
indutivista que é convincente em certos casos. Rudolf Carnap (1966)
argumentou contra as teorias das forças vitais na biologia devido ao
fato de não fazerem previsões definidas e precisas, e muitas pessoas
afirmam que a relatividade geral e/ou a eletrodinâmica quântica são as
teorias científicas mais bem-sucedidas de todos os tempos, não apenas
porque fazem previsões muito precisas, mas também porque foram
confirmadas experimentalmente. O sucesso previsível original e preciso é
uma diferença crucial entre a ciência e a pseudociência, mas isso é
muitas vezes negligenciado devido à ênfase dada à falsificabilidade. A
pseudociência pode ser caracterizada negativamente na medida em que não
faz previsões precisas e cuidadosas, enquanto a ciência no geral o faz. O
ponto é que este critério levanta problemas a algumas áreas das
ciências sociais e da física teórica.
É
importante distinguir frases que fazem afirmações factuais sobre o
mundo das que não o fazem. Tanto quem fala treta como quem faz
pseudociência produz frases com a intenção de convencer a sua audiência
de que alguma afirmação factual está sendo feita, quando na realidade
não está. Por exemplo, um político, ao lhe ser perguntado como alcançará
um certo objetivo à luz de uma dada crítica, pode responder: “o
importante é assegurar que, seguindo adiante, criemos processos robustos
que entregarão os serviços que o povo corretamente espera serem da
melhor qualidade, e é por isso que dei passos no sentido de garantir que
as nossas políticas responderão às necessidades existentes”. Ele é
bem-sucedido em usar o tempo disponível, utiliza seu tom de voz e a sua
expressão facial para passar uma impressão possivelmente falsa dos seus
estados afetivos e valores, e acaba não dizendo nada (ou ao menos nada
além das banalidades esperadas). A função deste tipo de treta, como diz
Frankfurt, não é originar crenças na audiência, pelo menos crenças sobre
o assunto em questão, mas antes provocar crenças sobre o próprio
político e os seus bons serviços.
Similarmente,
uma explicação pseudocientífica de um tratamento médico bizarro pode se
referir ao balanceamento da matriz energética como se um determinado
conceito da física estivesse envolvido, quando, efetivamente, a
descrição não tem significado científico. As palavras pseudocientíficas
frequentemente combinam termos genuinamente científicos com termos
não-científicos. Um palestrante que usa o termo inventado “torpedos de
fóton”, por exemplo, sugere que tem uma teoria perspicaz e razoável e
que a sua audiência pode pressupor que as suas afirmações causais são
verdadeiras: a saber, o cristal irá melhorar uma coluna ruim ou a nave
espacial terá os seus motores desabilitados. O ponto aqui é que, para
muitas pessoas, os termos científicos são indistinguíveis dos termos
pseudocientíficos. A pessoa leiga não tem maneira de saber que um termo
como “densidade de fluxo magnético” é genuíno, enquanto “ressonância do
campo mórfico de energia” não o é.
Em todo caso, Popper sabia que a falsificabilidade do produto não é suficiente para distinguir a ciência da pseudociência, pois ele caracteriza a pseudociência tanto em termos dos seus produtores como dos seus produtos. Apesar de argumentar que as teorias psicanalíticas são infalsificáveis, aceita que as teorias marxistas fazem previsões sobre fenômenos, mas insiste que o marxismo é uma pseudociência porque os marxistas vivem modificando o produto para torná-lo compatível com os novos dados e se recusam a aceitar a falsificação dos seus principais compromissos. No entanto, Popper foi muitíssimo criticado por fazer exigências desarrazoadas aos produtores do conhecimento científico, exigências essas que não são satisfeitas na história da ciência. Os cientistas individuais podem muito bem teimosamente se apegar às suas teorias e continuarem a responder ao fracasso com modificações de componentes periféricos, trabalhando duro para encaixar os fatos nos seus quadros de referência. Isso é necessário porque as teorias requerem grandes esforços e a exploração de vários becos sem saída, e a persistência e o comprometimento são necessários.
Não
obstante, há algo de correto na ênfase na testabilidade empírica. Assim
como o aval coletivo na matemática exige uma prova geralmente aceita,
também na ciência o aval coletivo requer que as teorias passem por
testes rigorosos de adequação empírica que são aceitos até mesmo pelos
seus oponentes na comunidade científica. O atomismo triunfou no século
XIX tardio porque foi bem-sucedido em várias frentes ao prever com
sucesso quantidades que os seus críticos diziam que jamais seria capaz
de prever. A pseudociência não tem qualquer análogo do tipo na sua
história. A lição dessa falha das abordagens do método científico que se
focam em teorias, propondo critérios de testabilidade, por exemplo, é
que deixam de fora as atitudes dos produtores relativas a tais teorias.
Mas o problema de prescrever, em vez disso, os estados mentais e as
atitudes dos produtores individuais é que essa abordagem negligencia o
fato de a ciência ser um empreendimento coletivo; a maneira como os
cientistas individuais pensam e se comportam está condicionada em uma
maior medida pelas suas interações com os seus pares e os seus
respectivos trabalhos. A confiabilidade da ciência como um meio de
produzir conhecimento sobre o mundo não será encontrada no conteúdo das
suas teorias, e nem em um modelo da mente científica ideal, mas antes
nas propriedades emergentes da comunidade científica e nas interações
entre os seus membros, bem como nas interações entre eles e os seus
produtos.
Na
ciência, as teorias e as proposições formam hierarquias e redes de
relações que, por meio do uso da matemática, fornecem várias aplicações
concretas e previsões específicas. Cientistas de todos os tipos
colaboram rotineiramente de modos altamente produtivos nas aplicações da
engenharia, da medicina ou da tecnologia, ou simplesmente ao coletarem
dados. Essa unidade da prática científica e das suas teorias está
ausente na pseudociência. Temos as unidades comuns de medida, a
conservação de energia e a segunda lei da termodinâmica, e as análises
dimensionais reduzem todas as quantidades das ciências físicas à mesma
base fundamental. A teoria atômica da matéria e a tabela periódica são
usadas em todas as ciências, do estudo das estrelas e galáxias ao estudo
do clima, dos seres vivos e da geologia. Em todo lugar na ciência
encontramos pessoas trabalhando para conectar os limites entre os níveis
de organização, entre diferentes domínios e entre diferentes regimes. A
ciência é imensamente colaborativa e envolve ricos relacionamentos
entre experimentadores, teorizadores, engenheiros, estatísticos e assim
por diante. A pseudociência é largamente baseada em figuras de culto e
redes cuja estrutura relacional envolve muito bate-papo, mas carece de
integração com a matemática substancial, as intervenções materiais e a
tecnologia que caracterizam a ciência.
O
método científico está conectado de maneira confiável à verdade das
teorias produzidas. No mínimo dos mínimos, a confiabilidade é um sinal
de conhecimento genuíno, se é que não o define completamente. Há dois
tipos de confiabilidade em epistemologia: acreditar no que é verdadeiro e
não acreditar no que é falso. Estes dois objetivos estão claramente em
tensão entre si, dado que é fácil alcançar o segundo objetivo ao ser
altamente cético, o que tem como resultado não conseguir alcançar o
primeiro. Similarmente, a credulidade faz com que se adquira várias
crenças verdadeiras, mas também várias crenças falsas. O conhecimento
confiável precisa evitar os dois tipos de erro, que são análogos aos
erros estatísticos de Tipo I e de Tipo II, ou falsos positivos e falsos
negativos. Suponha, por exemplo, que alguém se submeteu a uma avaliação
médica: um resultado falso positivo em um teste indica que o paciente
tem a doença quando não a tem, e um resultado falso negativo indica que o
paciente não a tem quando a tem.
A
confiabilidade no conhecimento significa o que os epistemólogos chamam
de “sensibilidade” e “segurança”. A primeira significa que não
acreditaríamos em algo caso não fosse verdadeiro, e a segunda que em
circunstâncias diferentes, mas similares, continuaríamos acreditando em
algo que fosse verdadeiro. Similarmente, se o teste é positivo, a
“sensibilidade” significa que seria negativo quando a pessoa não tivesse
a doença, e a “segurança” significa que o teste continuaria sendo
positivo ainda que tivesse ocorrido poucos minutos mais cedo ou mais
tarde, ou ainda que tivesse sido aplicado por um técnico diferente, e
assim por diante. O conhecimento é diferente da mera crença porque não é
acidental ou aleatório que acreditamos na verdade quando sabemos. O
matemático não calha simplesmente a acreditar no teorema de Pitágoras;
acredita de uma maneira que está intimamente conectada à sua verdade. De
modo semelhante, muitas das nossas crenças sensoriais básicas sobre o
mundo contam como conhecimento porque somos dotados da capacidade de
chegar a essas crenças confiavelmente nos tipos de circunstâncias em que
são formadas, e são razoavelmente consideradas seguras e sensíveis nos
sentidos acima. Bird (2007) argumentou que o progresso da ciência
deveria ser entendido em termos do crescimento do conhecimento, e não
meramente em termos do aumento das crenças verdadeiras. Sem explicar ou
endossar sua abordagem, ele está sem dúvida tocando em algo importante, e
a pseudociência, na medida em que envolve crenças sobre o mundo, simula
não apenas as crenças verdadeiras, mas também o conhecimento.
Espero
ter mostrado que a investigação seminal de Frankfurt sobre a treta se
aplica à pseudociência porque a) como a treta, a pseudociência é
largamente caracterizada não por um desejo de enganar acerca de como as
coisas são (como ocorre na fraude científica), mas por não dizer
praticamente nada sobre como as coisas são; e b) oferece uma distinção
útil entre a definição de treta/pseudociência em termos do produtor ou
em termos do produto, ou ambos.
Conclusão
A
pseudociência é atraente para as pessoas por duas razões. Primeiro, a
desconfiança geral que algumas pessoas têm em relação aos cientistas e à
ciência enquanto instituição. A confiança na ciência sempre foi parcial
e contestada, e os abusos do conhecimento científico e o poder da
ciência tornam essa reação compreensível em vários casos. A desconfiança
foi e continua sendo gerada pela pseudociência e pela fraude científica
no seio da ciência convencional, levando alguns à conclusão de que a
distinção entre ciência e pseudociência é como a distinção entre
ortodoxo e heterodoxo, se tratando apenas de uma questão de poder e
autoridade. Alguns exemplos cruciais de falsidade na ciência
convencional refletiram e indiretamente desculparam ideologias sociais
prejudiciais sobre o sexo e a raça. Abusos espantosos na ciência médica
deram ao público razão para duvidar de que a medicina convencional
sempre tem em mente o melhor interesse público em mente.7
Na psiquiatria, há não muito tempo, as mulheres no Reino Unido eram
encarceradas pelo que agora é considerado nada mais do que um interesse
saudável pelo sexo. Até 1973, a Associação Psiquiátrica Americana
considerava a homossexualidade uma doença mental. E certamente alguns
pesquisadores médicos são corrompidos por interesses corporativos,
exagerando a eficácia de tratamentos potencialmente lucrativos ou
minimizando ou negando seus efeitos negativos.
A
segunda razão para a influência contínua da pseudociência é que muitas
pessoas sofrem de padecimentos e moléstias a respeito dos quais a
ciência médica pouco pode fazer, quando o pode, ou para os quais o
tratamento apropriado exigiria muitos recursos. As pessoas podem até
mesmo ter muito a ganhar ao acreditar nas soluções pseudocientíficas dos
seus problemas. Trabalhos sobre o efeito de placebo mostram que podem
ter razão ao dizer que a pseudociência as “ajuda”, muito embora, é
claro, o tipo de terapia furada escolhida seja mais ou menos
irrelevante, por mais que alguns possam preferir um embrulho
pseudocientífico em vez de sobrenatural.
A
fraude científica, a corrupção científica e a ciência ideologicamente
enviesada são as grandes amigas da pseudociência, pois ajudam a criar o
clima epistêmico de ceticismo e desconfiança na autoridade epistêmica na
qual podem florescer. Precisamos da autoridade epistêmica porque
ninguém pode conferir tudo si mesmo e porque muitos de nós carecem do
conhecimento e/ou dos poderes intelectuais para seguir o raciocínio da
ciência, da matemática e da medicina. A pseudociência desprovida de
confiabilidade pode parecer dotada de autoridade, mas está cheia de
treta.
James Ladyman
Philosophy
of Pseudoscience: Reconsidering the Demarcation Problem, org. Massimo
Pigliucci e Maarten Boudry (Chicago: The University of Chicago Press,
2013) cap. 3, pp. 45–59. Revisão da tradução de Desidério Murcho.
Referências
Bird, A. 2007. “What Is Scientific Progress?” Nous 41:64–89.
Carnap,
Rudolf. 1966. “The Value of Laws: Explanation and Prediction.” In
Philosophical Foundations of Physics, org. Martin Gardner, 12–16. Nova
Iorque: Basic Books.
Cioffi, Frank. 1999. Freud and the Question of Pseudoscience. Peru, IL: Open Court.
Duhem,
Pierre Maurice Marie. 1954. The Aim and Structure of Physical Theory,
trad. Philip P. Wiener. Princeton, NJ: Princeton University Press.
Frankfurt, Harry G. 2005. On Bullshit. Princeton, NJ: Princeton University Press.
Ivanova,
Milena. (2010). “Pierre Duhem’s Good Sense as a Guide to Theory
Choice.” Studies in History and Philosophy of Science pt. A41 (1):
58–64.
Lakatos, Imre. 1977. “Science and Pseudoscience.” In Philosophical Papers, vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press.
Laudan, Larry. 1982. “Commentary: Science at the Bar—Causes for Concern.” Science, Technology and Human Values 7 (41): 16–19.
Popper, Karl. 1963. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge and Kegan Paul.
Notas
1.
Apesar de “treta” ser comumente utilizada no Brasil como gíria, cujo
significado é algo como “briga”, “confusão”, etc., há ainda outra
definição para a palavra que capta muito bem o significado da palavra
“bullshit”. Por exemplo, o Dicionário Online de Português tem o seguinte
como um dos significados de “treta”, que casa muito bem com o
significado de “bullshit”: “Ação ardilosa feita com o objetivo de
enganar, de iludir; artimanha: conseguiu o emprego na base da treta”. (https://www.dicio.com.br/treta/) ↩︎
2.
Isso não quer dizer que Freud não cometeu alguma fraude científica, na
medida em que ele inventou afirmações de sucesso clínico e estudos que
não existiam (ver Cioffi 1999). ↩︎
3.
É importante notar que pode haver uma boa quantidade de fraude
científica associada à pseudociência, dado que a tentação de forjar
resultados para substanciar o que os pseudocientistas talvez acreditem
sinceramente ser a verdade pode ser muito grande. Neste respeito, no
entanto, ela não é diferente da ciência. ↩︎
4.
Ver o capítulo 2 do presente volume, onde Martin Mahner argumenta que o
conceito de pseudociência carece de condições necessárias e
suficientes, mas que pode ser individuado como um conceito agregado,
como o conceito de espécie em biologia. Ver também o capítulo 1, por
Massimo Pigliucci, para um argumento semelhante. ↩︎
5. Ver Ivanova (2010). ↩︎
6. O experimento de Michaelson-Morley é um bom exemplo, pois se acreditava que tal precisão era inatingível. ↩︎
7. Tenho em mente o experimento de Tuskgee e outros onde os pacientes eram na realidade contaminados com sífilis. ↩︎
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