Os ditos “progressistas” combatem a nomeação de uma juíza apontando o risco de que ela coloque as próprias convicções acima da lei, mas aplaudem quando o mesmo comportamento é adotado por magistrados que compartilham de sua ideologia. Editorial da Gazeta do Povo:
O
presidente norte-americano, Donald Trump, cumpriu a promessa de indicar
rapidamente uma mulher para suceder Ruth Bader Ginsburg na Suprema
Corte dos Estados Unidos, e escolheu Amy Coney Barrett, juíza do
Tribunal de Apelações do 7.º Circuito (os Circuitos são o equivalente às
regiões dos Tribunais Regionais Federais no Brasil). A aprovação do
nome de Barrett pelo Senado será uma batalha em que os democratas
tentarão convencer os republicanos a seguir o precedente que os próprios
republicanos estabeleceram em 2016, quando a maioria de oposição no
Senado barrou um juiz indicado à Suprema Corte pelo democrata Barack
Obama, alegando que aquele era seu último ano de mandato e que a
indicação deveria ser feita por quem vencesse a eleição e assumisse a
Casa Branca em 2017.
Não
é nosso objetivo, aqui, discutir qual a melhor saída para este impasse,
mas analisar outro aspecto que salta aos olhos desde que Barrett foi
escolhida por Trump. Seu perfil já lhe rendeu diversos adjetivos na
imprensa, especialmente “ultraconservadora” – o prefixo não é usado com a
mesma frequência quando se trata de autênticos extremistas do outro
lado do espectro ideológico. Além disso, afirma-se abertamente que
Barrett não pode ser uma boa justice (como são chamados os membros da
Suprema Corte) por ser católica convicta, o que a levaria a julgar de
acordo com sua fé – um argumento que certamente seria classificado como
preconceituoso em muitas outras situações, mas que aparentemente ganha
passe livre quando aplicado a cristãos. Assim ocorreu, por exemplo,
quando o geneticista Francis Collins, evangélico, foi convidado por
Obama para chefiar os National Institutes of Health em 2009. Collins foi
desqualificado por cientistas e ateus militantes devido à sua religião,
ignorando seu impressionante currículo, que incluía a chefia do Projeto
Genoma Humano. A atuação de Collins na agência governamental, no
entanto, calou os críticos, e o geneticista está na linha de frente das
iniciativas de combate à Covid-19 nos Estados Unidos.
Desqualificar
para a vida pública quem leva sua religião a sério é, no fim,
desqualificar toda uma parte relevante da população, especialmente em
países como os Estados Unidos e o Brasil. Trata-se de postura que, além
de preconceituosa e excludente, demonstra agressividade e profunda
ignorância histórica, ao esquecer de uma série de grandes personalidades
de fé arraigada e que realizaram feitos notáveis nos mais diversos
campos, inclusive o político – não raro motivadas justamente pela fé que
tinham. De onde, então, surge tamanha hostilidade?
O
laicista radical que gostaria de manter pessoas religiosas longe de
cargos públicos parte do pressuposto de que tais pessoas, uma vez
investidas de poder, tentarão “impor suas convicções religiosas a todos
os demais, independentemente de sua religião”, afirmação quase sempre
acompanhada do raciocínio segundo o qual “se determinada religião manda
ou proíbe fazer algo, que isso valha para seus seguidores, e que eles
não tentem impor a mesma regra a todos os demais”. Mas o que preocupa o
laicista não é tanto a possibilidade de a pessoa de fé usar seu cargo
para a defesa de um dogma ou a imposição de um preceito religioso. O que
realmente incomoda laicistas, “progressistas” e engenheiros sociais são
certas posturas em temas como a defesa da vida, a noção de casamento e
família, determinados comportamentos, políticas identitárias. Esses, no
entanto, não são assuntos que podemos chamar de “religiosos”. São
questões éticas ou morais, às vezes até mesmo biológicas e
antropológicas, e que dizem respeito a todo ser humano, tenha ou não
religião. O fato de igrejas e confissões religiosas às vezes assumirem o
protagonismo no debate público sobre tais temas não faz deles “temas
religiosos”.
Os
“progressistas”, aliás, não se incomodariam com a participação de
religiosos na vida pública se os dois grupos estivessem de acordo sobre
tais temas – basta ver como partidos de esquerda brasileiros nunca
deixam de lançar líderes religiosos como candidatos. O problema, no
fundo, não é a presença per se de pessoas de fé na arena pública, mas
apenas a dos religiosos dos quais se discorda. Trata-se uma aliança
conveniente entre “progressismo” e laicismo para calar as vozes
contrárias.
Um
dos grandes teóricos contemporâneos da filosofia política, John Rawls –
referência, aliás, para muitos “progressistas” –, não vê problema algum
na participação de pessoas e instituições religiosas no debate público,
defendendo as opiniões que bem desejarem, desde que saibam expressar
suas convicções em termos que possam ser compartilhados por aqueles que
não têm a mesma fé. Não basta, portanto, pleitear algo porque está nos
livros sagrados de determinada confissão ou porque o líder religioso
assim o disse; é preciso apelar a princípios que todas as pessoas sejam
capazes de compreender, como, por exemplo, a igual dignidade de todos os
seres humanos. Foi este o caminho trilhado por um dos exemplos
favoritos de Rawls, o pastor e ativista pelos direitos civis Martin
Luther King. Ainda que ele empregasse termos religiosos – e não apenas
quando falava nas igrejas –, a base de seu discurso era racional e
compreensível por qualquer um. Por fim, no caso de um político, as
convicções que defende, caso sejam parte importante de sua plataforma,
serão submetidas, primeiro, ao crivo dos eleitores; e, depois,
encontrarão eco ou resistência no parlamento, onde a lei é construída.
No
caso de juízes, no entanto, há uma questão adicional a considerar.
Ainda que um magistrado seja capaz de articular da maneira mais
racional, mais universalmente compreensível, suas convicções pessoais a
respeito de determinado tema, influenciado ou não por sua fé, ele pode
simplesmente julgar de acordo com elas? Esta pergunta coloca em uma
situação ainda mais constrangedora aqueles que se opõem à indicação de
Barrett com base em sua fé. Pois, como lembrou GianCarlo Canaparo em
artigo traduzido e publicado pela Gazeta do Povo, eles não apenas são
incapazes de citar um único voto da juíza que tenha sido baseado em suas
convicções religiosas; eles ainda precisam lidar com o fato de que a
escolhida por Trump é uma defensora do chamado “originalismo”, que
defende a interpretação da Constituição de acordo com o que está no
texto e o que reflete a intenção original do legislador constituinte. E
um originalista, portanto, não julga de acordo com suas convicções –
independentemente de quais sejam elas, de direita ou esquerda,
religiosas ou ateias. “Não acho que um juiz deva torcer a lei para
alinhá-la ou para ajudá-la a corresponder de alguma forma às próprias
convicções do juiz. (...) Todo mundo tem convicções, todo mundo tem
crenças. Isso não é exclusivo para pessoas que têm fé”, afirmou Barrett
em entrevista ao site Daily Signal, e há dezenas de outras declarações
suas na mesma linha.
E
eis a hipocrisia dos ditos “progressistas”, que combatem a nomeação de
uma juíza apontando o risco de que, na Suprema Corte, ela coloque as
próprias convicções acima da lei, mas aplaudem quando o mesmo
comportamento é adotado por magistrados que compartilham de sua
ideologia e que, por meio do ativismo judicial que reescreve a lei em
vez de interpretá-la, fazem avançar sua plataforma em termos de moral e
costumes. É o mesmo debate que se trava no Brasil de hoje, com algumas
mudanças na terminologia – os defensores do ativismo judicial, por
exemplo, preferem se enxergar como “iluministas”.
Independentemente
do debate sobre votar ou não a nomeação ainda neste ano, é
inquestionável que Amy Coney Barrett é, sim, uma ótima escolha para a
Suprema Corte. Não por ser uma pessoa religiosa, mas pela visão que tem a
respeito do papel de um juiz e por como essa visão a guiou em sua
carreira na magistratura. A desconstrução que vem sendo feita por
setores “progressistas” é resultado de um misto de preconceito – ao
desqualificar alguém para um posto devido a sua fé – e hipocrisia, ao
condenar um hipotético comportamento que eles mesmos aprovam quando é
usado para fazer prevalecerem suas convicções.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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