Extremistas de luxo tinham algum senso de decoro em 1970. Os de 2020 transmitem sua hipocrisia em detalhes constrangedores nas redes sociais. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:
A
expressão “radical chic” foi criada pelo escritor Tom Wolfe (1930-2018)
num artigo para a New York Magazine. O longo artigo, depois
transformado em livro, descreve em detalhes um jantar realizado em 1970
no apartamento do célebre maestro e compositor Leonard Bernstein. O
radicalismo chique completa, portanto, meio século de idade.
Cinquenta
anos depois, o texto de Tom Wolfe está mais atual (e engraçado) que
nunca. O evento foi oferecido numa quarta-feira, 14 de janeiro de 1970,
por Bernstein. Ele e a mulher, Felicia, reuniram a fina flor da elite
artística e intelectual de Manhattan com membros do grupo Black Panthers
Party (o Partido dos Panteras Negras), descritos como uma “organização
política socialista revolucionária”. Não foi o primeiro nem o último
evento desse tipo. Mas foi o único que teve Wolfe como testemunha.
No
dúplex de treze cômodos do número 895 da Park Avenue, dezenas de
convidados chiquérrimos admiravam os militantes como se fossem animais
exóticos em seus uniformes negros: calças justas, blusas de gola rolê,
óculos escuros e jaquetas de couro. Como notou Tom Wolfe, era o visual
que logo estaria na capa da revista Vogue como a última moda. Para
orgulho dos donos da casa, a criadagem era toda branca (mais exatamente
latino-americana).
Depois
dos aperitivos e canapés, os convidados foram reunidos na grande sala
de visitas. Entre dois pianos de cauda, um advogado dos Panteras disse
que estava lá para levantar fundos destinados a pagar a fiança de 21
militantes presos por planejar atos de terrorismo.
Em
seguida, um dos líderes do movimento passou a explicar as
reivindicações do grupo. Entre outras, “excluir os negros do serviço
militar”, “soltar todos os presos negros” e negociar na ONU a criação de
uma república só de negros independente dos Estados Unidos. Disse na
cara de todos os presentes: “Nós reconhecemos este país como o mais
opressivo do mundo, talvez na história do mundo”. Segundo o chefão Black
Panther, em matéria de “opressão” os Estados Unidos haviam deixado para
trás numa única frase os regimes de Kublai Khan, Adolf Hitler, Josef
Stalin, Benito Mussolini e Mao Tsé-Tung, entre tantos outros.
Quando
o dirigente dos Panteras acabou seu discurso, não houve nenhuma
contestação às suas palavras. Pelo contrário, começaram a chover cheques
gordos, “sem direito a desconto no imposto de renda”. O maestro
Bernstein prometeu a arrecadação completa de seu próximo concerto para a
causa. Em seguida, a criadagem latina começou a servir os pratos:
“Rolinhos de queijo Roquefort enrolados em nozes trituradas, pontas de
aspargo em salpicos de maionese, minialmôndegas au Coq Hardi…”
O
texto de Tom Wolfe se tornou uma referência na história do radicalismo
chique — e do jornalismo. Seu estilo mordaz encontrou uma fartura de
detalhes que falavam por si sobre o absurdo da situação. Meses depois,
Wolfe foi previsivelmente descrito por um dos dirigentes dos Black
Panthers como “aquele cachorro sujo, descarado, mentiroso e racista que
escreveu aquela coisa fascista nojenta na New York Magazine”.
Wolfe
localiza essa atração de algumas elites por causas extremistas na
“nostalgie de la boue”, ou “nostalgia da lama”, praticada na França do
século 19. Ricaços de Paris se vestiam com roupas de trabalhadores
braçais como se dissessem: “Eu estou do lado de vocês”. No fim do dia,
os ricos com roupas de pobre iam para suas mansões e os pobres com
roupas de pobre, para seus cortiços.
O
economista e jornalista Rodrigo Constantino, colunista da Revista
Oeste, escreveu o livro brasileiro mais abrangente sobre o assunto:
Esquerda Caviar — A Hipocrisia dos Artistas e Intelectuais Progressistas
no Brasil e no Mundo. Constantino aponta vinte razões para o fenômeno,
entre elas: o oportunismo hipócrita (ser de esquerda pode ser um bom
investimento); a culpa por ter conseguido ficar rico sem muito esforço; a
preguiça mental de compreender mais profundamente a realidade; o
niilismo provocado pelo tédio de uma vida fácil; o infantilismo na
inconsequência de suas posições; o desprezo oculto pelos pobres.
Esquerdistas caviar, segundo Constantino, vivem em bolhas, alienados do
esforço que é sobreviver no mundo real. Tentam compensar essa alienação
apoiando causas demagógicas e violentas.
Radical
chique é Roger Waters, baixista do Pink Floyd, com seus US$ 310
milhões. Ele não vê nada de errado na tirania que o grupo Hamas exerce
na Faixa de Gaza, mas cobra respeito aos direitos humanos em Israel.
Radical chique é o cineasta Oliver Stone (US$ 70 milhões), que produziu
um filme de propaganda para a ditadura venezuelana intitulado Mi Amigo
Hugo. Radical chique é a atriz Susan Sarandon (US$ 60 milhões), que fez a
narração em inglês de um “documentário” enaltecendo o Movimento dos
Sem-Terra no Brasil. (De seu apartamento de 500 metros quadrados e US$
7,5 milhões em Chelsea, Nova York, fica difícil observar os detalhes do
que acontece por aqui.) Radical chique é o astro do basquete LeBron
James. Ele apoia os Panteras Negras da hora (conhecidos como Black Lives
Matter) e se deixou fotografar lendo a autobiografia de Malcolm X.
Malcolm
X foi um dos maiores inspiradores dos Panteras Negras. Ao contrário de
Martin Luther King (que defendia a resistência pacífica contra o
racismo), ele pregava a ideia de que os negros norte-americanos deveriam
“se defender com todos os meios necessários”. Divulgava os princípios
de uma organização chamada Nação do Islã, que (segundo a Enciclopédia
Britânica) propagandeava “o mal inerente dos brancos e a superioridade
natural dos negros”. Racistas eram os outros.
Para
Malcolm X, a solução para o problema racial nos Estados Unidos estava
na adoção de um “islamismo ortodoxo”. Ou seja, ele já sugeria nos anos
1950 a criação de uma espécie de Estado Islâmico dentro dos Estados
Unidos. Eliminou seu sobrenome original (Little), pois representava uma
“herança do colonialismo escravocrata”.
Que
um adolescente negro prejudicado pelo racismo transforme Malcolm X em
ídolo, é perfeitamente compreensível. Mas, quando um homem adulto como
LeBron James, com 35 anos, US$ 480 milhões e fãs no mundo inteiro,
entusiasma-se com essas ideias, algo está fora de lugar. As pessoas
deveriam amadurecer com a idade, tornar-se mais equilibradas, sábias,
racionais e responsáveis em suas opiniões. Mas radicais chiques querem
ter 15 anos pelo resto da vida.
No
Brasil, não existe hoje símbolo maior dessa eterna adolescência sem
responsabilidade do que o cantor e compositor Caetano Veloso, de 78
anos. Ele já fez canção em homenagem ao terrorista Carlos Marighella e
chegou a se fantasiar de black bloc. Recentemente ficamos sabendo por
meio de uma entrevista a Pedro Bial que o atual guru ideológico de
Caetano é um “historiador, professor, educador popular, youtuber,
podcaster e militante do PCB” chamado Jones Maciel. Maciel já declarou
que “defende a vida, menos de fascista, que não entra no rol da vida
humana. Se tiver que usar medidas de terror vermelho contra os
contrarrevolucionários, historicamente isso é válido”. Está no YouTube.
Mesmo
propondo fuzilamentos em massa e “terror vermelho”, Jones Maciel nunca
foi incomodado por pregar “atos antidemocráticos”. O autor de Alegria,
Alegria o tornou momentaneamente famoso. E assim colaborou para que a
esquerda brasileira permaneça aprisionada ao passado, sem perspectivas,
desconectada do tempo de profundas mudanças que estamos vivendo.
Cinquenta
anos depois, Caetano teria se tornado nosso Leonard Bernstein? Há
grandes diferenças entre as duas situações. O jantar radical-chique de
Leonard Bernstein só ficou célebre porque foi descrito pela prosa
elegante de Tom Wolfe. O maestro sempre foi de esquerda, acreditou
honestamente que estava colaborando com a luta pelos direitos civis e
nunca pretendeu que seu jantar se tornasse público.
Caetano
Veloso e seus camaradas pertencem a outra época e seguem outra ética. O
luxo em que vive o compositor baiano foi escancarado por sua mulher em
posts do Instagram que viraram hit instantâneo entre os fãs. Lá está,
para quem quiser ver, o grande militante comunista na imensidão de seu
dúplex de oito dígitos em Ipanema.
Extremistas
de luxo tinham algum senso de decoro em 1970. Os de 2020 transmitem sua
hipocrisia em detalhes constrangedores nas redes sociais. Lutam
bravamente contra o capitalismo postando em resorts de luxo e varandas
gourmet com vista para bairros nobres. Para eles, a vida sempre será uma
nostalgie de la boue em Paris. Viraram os guerrilheiros do radicalismo
brega.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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