MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 3 de outubro de 2020

50 anos de radicalismo chique

 



Extremistas de luxo tinham algum senso de decoro em 1970. Os de 2020 transmitem sua hipocrisia em detalhes constrangedores nas redes sociais. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:


A expressão “radical chic” foi criada pelo escritor Tom Wolfe (1930-2018) num artigo para a New York Magazine. O longo artigo, depois transformado em livro, descreve em detalhes um jantar realizado em 1970 no apartamento do célebre maestro e compositor Leonard Bernstein. O radicalismo chique completa, portanto, meio século de idade.

Cinquenta anos depois, o texto de Tom Wolfe está mais atual (e engraçado) que nunca. O evento foi oferecido numa quarta-feira, 14 de janeiro de 1970, por Bernstein. Ele e a mulher, Felicia, reuniram a fina flor da elite artística e intelectual de Manhattan com membros do grupo Black Panthers Party (o Partido dos Panteras Negras), descritos como uma “organização política socialista revolucionária”. Não foi o primeiro nem o último evento desse tipo. Mas foi o único que teve Wolfe como testemunha.

No dúplex de treze cômodos do número 895 da Park Avenue, dezenas de convidados chiquérrimos admiravam os militantes como se fossem animais exóticos em seus uniformes negros: calças justas, blusas de gola rolê, óculos escuros e jaquetas de couro. Como notou Tom Wolfe, era o visual que logo estaria na capa da revista Vogue como a última moda. Para orgulho dos donos da casa, a criadagem era toda branca (mais exatamente latino-americana).

Depois dos aperitivos e canapés, os convidados foram reunidos na grande sala de visitas. Entre dois pianos de cauda, um advogado dos Panteras disse que estava lá para levantar fundos destinados a pagar a fiança de 21 militantes presos por planejar atos de terrorismo.

Em seguida, um dos líderes do movimento passou a explicar as reivindicações do grupo. Entre outras, “excluir os negros do serviço militar”, “soltar todos os presos negros” e negociar na ONU a criação de uma república só de negros independente dos Estados Unidos. Disse na cara de todos os presentes: “Nós reconhecemos este país como o mais opressivo do mundo, talvez na história do mundo”. Segundo o chefão Black Panther, em matéria de “opressão” os Estados Unidos haviam deixado para trás numa única frase os regimes de Kublai Khan, Adolf Hitler, Josef Stalin, Benito Mussolini e Mao Tsé-Tung, entre tantos outros.

Quando o dirigente dos Panteras acabou seu discurso, não houve nenhuma contestação às suas palavras. Pelo contrário, começaram a chover cheques gordos, “sem direito a desconto no imposto de renda”. O maestro Bernstein prometeu a arrecadação completa de seu próximo concerto para a causa. Em seguida, a criadagem latina começou a servir os pratos: “Rolinhos de queijo Roquefort enrolados em nozes trituradas, pontas de aspargo em salpicos de maionese, minialmôndegas au Coq Hardi…”

O texto de Tom Wolfe se tornou uma referência na história do radicalismo chique — e do jornalismo. Seu estilo mordaz encontrou uma fartura de detalhes que falavam por si sobre o absurdo da situação. Meses depois, Wolfe foi previsivelmente descrito por um dos dirigentes dos Black Panthers como “aquele cachorro sujo, descarado, mentiroso e racista que escreveu aquela coisa fascista nojenta na New York Magazine”.

Wolfe localiza essa atração de algumas elites por causas extremistas na “nostalgie de la boue”, ou “nostalgia da lama”, praticada na França do século 19. Ricaços de Paris se vestiam com roupas de trabalhadores braçais como se dissessem: “Eu estou do lado de vocês”. No fim do dia, os ricos com roupas de pobre iam para suas mansões e os pobres com roupas de pobre, para seus cortiços.

O economista e jornalista Rodrigo Constantino, colunista da Revista Oeste, escreveu o livro brasileiro mais abrangente sobre o assunto: Esquerda Caviar — A Hipocrisia dos Artistas e Intelectuais Progressistas no Brasil e no Mundo. Constantino aponta vinte razões para o fenômeno, entre elas: o oportunismo hipócrita (ser de esquerda pode ser um bom investimento); a culpa por ter conseguido ficar rico sem muito esforço; a preguiça mental de compreender mais profundamente a realidade; o niilismo provocado pelo tédio de uma vida fácil; o infantilismo na inconsequência de suas posições; o desprezo oculto pelos pobres. Esquerdistas caviar, segundo Constantino, vivem em bolhas, alienados do esforço que é sobreviver no mundo real. Tentam compensar essa alienação apoiando causas demagógicas e violentas.

Radical chique é Roger Waters, baixista do Pink Floyd, com seus US$ 310 milhões. Ele não vê nada de errado na tirania que o grupo Hamas exerce na Faixa de Gaza, mas cobra respeito aos direitos humanos em Israel. Radical chique é o cineasta Oliver Stone (US$ 70 milhões), que produziu um filme de propaganda para a ditadura venezuelana intitulado Mi Amigo Hugo. Radical chique é a atriz Susan Sarandon (US$ 60 milhões), que fez a narração em inglês de um “documentário” enaltecendo o Movimento dos Sem-Terra no Brasil. (De seu apartamento de 500 metros quadrados e US$ 7,5 milhões em Chelsea, Nova York, fica difícil observar os detalhes do que acontece por aqui.) Radical chique é o astro do basquete LeBron James. Ele apoia os Panteras Negras da hora (conhecidos como Black Lives Matter) e se deixou fotografar lendo a autobiografia de Malcolm X.

Malcolm X foi um dos maiores inspiradores dos Panteras Negras. Ao contrário de Martin Luther King (que defendia a resistência pacífica contra o racismo), ele pregava a ideia de que os negros norte-americanos deveriam “se defender com todos os meios necessários”. Divulgava os princípios de uma organização chamada Nação do Islã, que (segundo a Enciclopédia Britânica) propagandeava “o mal inerente dos brancos e a superioridade natural dos negros”. Racistas eram os outros.

Para Malcolm X, a solução para o problema racial nos Estados Unidos estava na adoção de um “islamismo ortodoxo”. Ou seja, ele já sugeria nos anos 1950 a criação de uma espécie de Estado Islâmico dentro dos Estados Unidos. Eliminou seu sobrenome original (Little), pois representava uma “herança do colonialismo escravocrata”.

Que um adolescente negro prejudicado pelo racismo transforme Malcolm X em ídolo, é perfeitamente compreensível. Mas, quando um homem adulto como LeBron James, com 35 anos, US$ 480 milhões e fãs no mundo inteiro, entusiasma-se com essas ideias, algo está fora de lugar. As pessoas deveriam amadurecer com a idade, tornar-se mais equilibradas, sábias, racionais e responsáveis em suas opiniões. Mas radicais chiques querem ter 15 anos pelo resto da vida.

No Brasil, não existe hoje símbolo maior dessa eterna adolescência sem responsabilidade do que o cantor e compositor Caetano Veloso, de 78 anos. Ele já fez canção em homenagem ao terrorista Carlos Marighella e chegou a se fantasiar de black bloc. Recentemente ficamos sabendo por meio de uma entrevista a Pedro Bial que o atual guru ideológico de Caetano é um “historiador, professor, educador popular, youtuber, podcaster e militante do PCB” chamado Jones Maciel. Maciel já declarou que “defende a vida, menos de fascista, que não entra no rol da vida humana. Se tiver que usar medidas de terror vermelho contra os contrarrevolucionários, historicamente isso é válido”. Está no YouTube.

Mesmo propondo fuzilamentos em massa e “terror vermelho”, Jones Maciel nunca foi incomodado por pregar “atos antidemocráticos”. O autor de Alegria, Alegria o tornou momentaneamente famoso. E assim colaborou para que a esquerda brasileira permaneça aprisionada ao passado, sem perspectivas, desconectada do tempo de profundas mudanças que estamos vivendo.

Cinquenta anos depois, Caetano teria se tornado nosso Leonard Bernstein? Há grandes diferenças entre as duas situações. O jantar radical-chique de Leonard Bernstein só ficou célebre porque foi descrito pela prosa elegante de Tom Wolfe. O maestro sempre foi de esquerda, acreditou honestamente que estava colaborando com a luta pelos direitos civis e nunca pretendeu que seu jantar se tornasse público.

Caetano Veloso e seus camaradas pertencem a outra época e seguem outra ética. O luxo em que vive o compositor baiano foi escancarado por sua mulher em posts do Instagram que viraram hit instantâneo entre os fãs. Lá está, para quem quiser ver, o grande militante comunista na imensidão de seu dúplex de oito dígitos em Ipanema.

Extremistas de luxo tinham algum senso de decoro em 1970. Os de 2020 transmitem sua hipocrisia em detalhes constrangedores nas redes sociais. Lutam bravamente contra o capitalismo postando em resorts de luxo e varandas gourmet com vista para bairros nobres. Para eles, a vida sempre será uma nostalgie de la boue em Paris. Viraram os guerrilheiros do radicalismo brega.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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