O poder abomina o vácuo e, em breve, algum outro Estado – e
provavelmente um com noções radicalmente diferentes de democracia e
direitos humanos – poderá querer afirmar a sua hegemonia. Todos nós
seremos muito prejudicados com isso. Teresa Roque para o Observador:
Há um vazio de poder a emergir na arena internacional. Os Estados
Unidos parecem ter renunciado ao seu papel de garante da ordem liberal e
mais ninguém deu um passo em frente para o ocupar – ainda. Em vez
disso, vemos países que se viram para interesses nacionais estritamente
definidos, e líderes como a Polónia, a Hungria e outros países a usar
esta crise da Covid-19 para fortalecer o seu poder.
A democracia está em debandada. Na verdade, as democracias liberais
não têm sido assim tão comuns ao longo da história. Não serão talvez
contrárias à natureza humana, mas talvez também não sejam
verdadeiramente apreciadas por ela. A democracia liberal ou, mais
comummente, o liberalismo, tem sobrevivido nos nossos dias porque a
superpotência principal – leia-se os EUA – lhe proporcionou uma zona de
segurança dentro da qual podia ser protegido.
Desde o fim da Guerra Fria, e com acentuada aceleração sob as
presidências de Obama e Trump, os EUA têm vindo a demitir-se,
lentamente, do seu papel de líder do mundo livre e de todas as
responsabilidades que isto implica. Não há muito que una a esquerda e a
direita nos EUA hoje em dia. Mas há um consenso em todo o espectro
político, desde os apoiantes de Trump aos de Bernie Sanders e Joe Biden:
todos são unânimes em acreditar que o último quarto de século da
política externa americana foi um desastre para os interesses
americanos. Todos eles defendem uma mudança estratégica completa. Os
Estados Unidos já não necessitam de moldar o mundo à sua imagem, mas sim
de recuar e agir com moderação.
Isto é o que deseja a maioria da população e, nas democracias, os
líderes tendem a dar às pessoas o que elas desejam. Mas isto pode
constituir um pesado erro. O poder abomina o vácuo e, em breve, algum
outro Estado – e provavelmente um com noções radicalmente diferentes de
democracia e direitos humanos – poderá querer afirmar a sua hegemonia.
Todos nós seremos muito prejudicados com isso.
Um pouco de contexto histórico poderá ajudar a enquadrar o problema. O
papel dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial sustentava-se em quatro
pilares essenciais: liderança global; defesa e promoção do liberalismo
internacional; liberdade, democracia e direitos humanos; e prevenção a
do advento de uma supremacia regional na Europa e na Ásia. Tudo isto foi
feito, não por bondade intrínseca, mas porque os interesses americanos
se encontravam alinhados com estes objetivos. Os EUA tinham aprendido
uma grande lição com as duas grandes guerras mundiais do século passado.
Se se tivessem retirado para o seu canto isolacionista (uma tendência
sempre presente em ambos os partidos políticos) vir a ver-se impelidos
para outro conflito mundial.
Assim, partiram para a criação de um liberalismo internacional
baseado em: respeito pelas fronteiras internacionais, respeito pelo
direito internacional, regras e normas globais e pelo que consideravam
valores universais, alianças robustas entre nações democráticas liberais
e livre comércio. Afinal de contas, os EUA eram o único país que tinha a
competência para, e a vontade de o fazer.
Isto não só impediu a repetição de guerras mortíferas, como evitou,
também, a generalizada perturbação económica e privação da primeira
metade do século XX — um período que incluiu a Primeira Guerra Mundial, a
Grande Depressão, a ascensão do comunismo e do fascismo, a fome na
Ucrânia, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Era necessário
desmantelar os grandes impérios e deixar que os países livres decidissem
os seus próprios destinos. Era necessário encorajar a democracia. No
fim de contas, ditava a teoria, os estados democráticos teriam menos
propensão para criar hostilidade entre si.
Como é óbvio, esta política acarretou custos enormes. Os gastos com a
defesa dos EUA mantiveram-se sempre altos. Muitas vezes, os soldados
americanos foram forçados a intervir em cantos distantes do mundo e
vidas americanas foram perdidas a defender a tal ordem mundial de que
todas as outras democracias também beneficiaram muito. Talvez este tenha
sido, até hoje, o maior bem público da história.
Na realidade, a Pax-Americana nem sempre esteve ao serviço de uma
ordem mundial liberal. Servir os interesses dos EUA exigia, por vezes,
outras políticas “menos esclarecidas”. Foram sustentadas autocracias
árabes, algumas ditaduras da América do Sul e África, e até o regime de
apartheid da África do Sul. Por vezes, até parecia que os EUA se tinham
tornado uma potência quase imperialista, presa ao seu complexo
industrial militar e aos interesses das grandes petrolíferas. Os
problemas na vida real raramente são preto e branco. Mas, o facto é: os
EUA eram não apenas o arquiteto, mas também o garante do nosso
liberalismo mundial. A alternativa pode ser muito, mesmo muito, pior.
A primeira década dos anos 2000 desferiu uma série de duros golpes na
ordem mundial e nos Estados Unidos. Na realidade, os EUA
autoinfligiram-se alguns… Os ataques terroristas de 11 de setembro de
2001, nos quais mais americanos foram mortos em solo americano do que em
qualquer outro momento desde Pearl Harbor, ocultaram, por algum tempo,
um desejo crescente do país de se afastar gradualmente dos assuntos
mundiais.
Os EUA, sob a administração de Bush Jr., invadiram o Afeganistão para
erradicar as bases militares da Al Qaeda e o regime talibã que as
apoiava. Invadiram o Iraque para eliminar Saddam Hussein, que olhavam
como um líder problemático cujas intenções passavam por alargar o seu
domínio ao Médio Oriente. Armas de destruição em massa à parte, Saddam
tinha-se tornado um problema de gestão da ordem mundial e,
consequentemente, um risco para os Estados Unidos e para a região.
O desastre que se seguiu à invasão do Iraque, a guerra aparentemente
interminável no Afeganistão e a crise financeira de 2008 conduziram à
convicção generalizada de que o papel que os Estados Unidos tinham vindo
a desempenhar no mundo nas últimas sete décadas já não era necessário
e, mais importante ainda, já não servia os interesses americanos. Agora
sem uma União Soviética para defrontar, o povo americano duvidava, cada
vez mais, da necessidade de pagar a fatura ou até nem compreendia porque
tinha essa responsabilidade. Não lhe parecia que as ameaças valessem o
preço a pagar.
Quando Obama assumiu a presidência, fê-lo com a diretiva de
reposicionar os EUA, atribuindo-lhes um papel mais modesto e apropriado a
uma nova era de convergência global. Ao pedir a “construção da nação
aqui em casa”, deixava no ar que uma política externa ativa poderia vir a
prejudicar o bem-estar doméstico dos americanos. Obama procurou chegar a
um compromisso com antigos adversários em Moscovo, Teerão e Havana, ao
mesmo tempo que tentava diminuir o fardo da responsabilidade americana
para com os aliados. Cumpriu a sua promessa de campanha de retirar todas
as forças americanas do Iraque. Quando a Rússia anexou a Península da
Crimeia, o presidente limitou-se a responder com sanções económicas e
manteve o compromisso de evitar ser sorvido pelo conflito sírio. O vazio
foi imediatamente preenchido pela Rússia, que se tornou o novo
intercessor de poder na Síria. Não deixa de ser irónico que Obama tenha
ganho o Prémio Nobel da Paz, quando, em geral, a sua política externa,
com exceção para o acordo nuclear com o Irão, foi a de uma potência
amplamente ausente.
A visão do mundo “America First” de Trump prosseguiu esse caminho. O
próprio facto de os americanos terem eleito um presidente sem
experiência de governação ou de política externa veio mostrar o quão
pouco se importavam com o papel da América no mundo. Desde a sua eleição
em 2016, Trump tem vindo a mostrar uma visão mais cética do valor das
alianças, a criticar menos os governos iliberais, a demonstrar uma menor
vontade de lidar com instituições e acordos internacionais ou
multilaterais e abdicou voluntariamente do papel de liderança global da
América.
Na prática, isto significou a saída dos EUA do acordo comercial
regional da Parceria Transpacífica (TPP), do acordo multilateral de
mudança climática de Paris e do acordo nuclear com o Irão. Levou ainda à
retirada das tropas americanas do norte da Síria em outubro de 2019,
enquanto o resto do mundo assistia horrorizado. E aí em diante…
E então, qual é problema? Por um lado, os velhos hábitos morrem com
dificuldade. Os BRICS, que chegaram a ser elogiados pela sua notável
ascensão, voltaram aos seus hábitos ancestrais. O Brasil voltou a ser o
Brasil; a Rússia voltou a ser a Rússia e as suas ambições geopolíticas
regressaram com desejo de vingança; a China tem, de novo, um imperador e
a África do Sul encontra-se atolada em corrupção e em turbulência
política.
Numa Europa “pós-histórica”, o passado não é esquecido. Não é preciso
muito para que os gregos voltem a chamar nazis aos alemães, para que a
Polónia volte a sentir-se insegura na sua região e para que os
britânicos darem vazão à sua política tradicional de manter o continente
à distância.
O resto do mundo não apresenta, no momento, um quadro muito bonito. O
Daesh está vivo e bem, pronto para estabelecer uma base em Moçambique, e
a Europa enfrenta uma avalanche de refugiados que fogem de zonas
devastadas pela guerra no Médio Oriente e no norte de África. Há
sondagens que apresentam dados que mostram que a chegada de milhões de
refugiados da Síria e da Líbia contribuiu, mais do que qualquer outro
fator, para a crescente popularidade de partidos nacionalistas,
ultranacionalistas ou mesmo abertamente fascistas em toda a Europa.
O liberalismo, liderado e garantido pelos Estados Unidos, deu ao
mundo sete décadas de paz. O problema nem é tanto o facto de a
concorrência geopolítica ter regressado e de a Rússia e a China terem
começado a perseguir as suas antigas ambições que tinham vindo a manter
controladas. O problema é que o mundo liberal pode já não ser
suficientemente saudável e forte para continuar a conter e a
desencorajar tais ambições. Sem uma liderança americana forte e
resoluta, a ordem mundial cairá sobre si mesma. A China procurará
tornar-se o novo “líder global” e, ao mesmo tempo, providenciar uma
alternativa ao modelo democrático liberal. Quanto à Rússia, é provável
que aposte na sua esfera de influência na Europa Central e Oriental e
que recupere o status de poder global. Se a América não se decidir a
enfrentar estes desafios, pode ser apenas uma questão de tempo.
Em segundo lugar, hoje, mais do que nunca, enfrentamos problemas
comuns que exigem soluções comuns. Mudanças climáticas, proliferação
nuclear, terrorismo, alterações tecnológicas, refugiados, pandemias,
enormes disparidades entre o desenvolvimento económico de vários países –
nenhum país conseguirá resolvê-los isoladamente. Olhar para o
nacionalismo, ou para o amor pela nação e pelos compatriotas como a
antítese da globalização é olhar para o problema de uma forma errada. Se
todos queremos sobreviver e prosperar, precisamos de cooperar com as
outras nações.
O nacionalismo de sangue e solo não é a resposta para manter as
nossas nações e os nossos compatriotas seguros. Se, por exemplo, os
franceses forem os primeiros a inventar uma vacina, irão os americanos
rejeitá-la por ser uma vacina “estrangeira”? Isso seria um absurdo.
Problemas comuns requerem soluções comuns. Se quisermos sobreviver e
prosperar no século XXI, teremos de abandonar a rivalidade geopolítica. E
isto requer liderança. Até agora tem sido possível dissuadir aqueles
que poderiam ter corrompido o liberalismo. Mas, se os Estados Unidos já
não se mostrarem determinados ou capazes de suportar a ordem, será cada
um por si e o caos ocorrerá.
Todos aqueles que prezam a liberdade em todo o mundo precisam
desesperadamente que os EUA retomem o seu papel de liderança global como
garante do liberalismo mundial. Sem isso, poderemos regressar a um
mundo da lei do mais forte, onde os fortes fazem valer a sua vontade
sobre os fracos. A eleição de Trump e as suas ações de política externa
até ao momento prejudicaram não só os Estados Unidos, mas o mundo
também.
Sustentar uma política externa de benefício próprio iluminado requer
iluminação, uma visão de longo prazo, um certo grau de generosidade, uma
crença na universalidade de direitos e uma dose de cosmopolitismo que
os americanos não têm demonstrado ultimamente. É dispendioso arcar com
as responsabilidades de uma superpotência. Mas ignorar essas
responsabilidades, na tentativa de construir uma fortaleza América,
virá, com o tempo, a sair muito mais caro. Ignoramos as lições da
história por nossa conta e risco.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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