O mineiro Romeu Zema vem dando lições de sensatez a velhos vigaristas e velhacos de nascença. Augusto Nunes:
Nos anos 1950, quando foi prefeito pela primeira vez, meu pai chamava
90% dos eleitores de Taquaritinga (SP) pelo prenome (o chefe da família
e sua mulher) ou pelo sobrenome (os filhos; seria demais saber o nome
de batismo de toda a prole sempre numerosa). A cidade tinha 10 mil
habitantes. Fora cinco ou seis cobertas por paralelepípedos, eram de
terra as ruas que os fundadores haviam riscado, 70 anos antes, com a
mesmíssima extensão e largura, de modo que reproduzissem um tabuleiro de
xadrez irretocavelmente simétrico. Por falta de gente rica, também
havia poucos carros, e assim andavam a pé tanto votantes quanto votados.
O prefeito, por exemplo, usava as próprias pernas para zanzar pela
cidade e saber como andavam as coisas.
Ao morrer em 1986, dois anos antes de concluir o quarto e último
mandato, ele administrava uma cidade com 40 mil habitantes. Quando a
população superou os limites da memória, passou a chamar os eleitores de
“Negão” e de “minha namorada” as eleitoras. Enquanto Taquaritinga
crescia, o prefeito tratou de familiarizar-se com as consequências da
veloz metamorfose. O asfalto cobriu as ruas que engoliram metros de
calçadas, industriais forasteiros ordenaram a troca da cana pelo tomate
que os laranjais não demorariam a engolir, o amarelo tristonho das
lâmpadas penduradas em postes de madeira foi demitido pelas três cores
fortes dos sinais que botaram ordem no trânsito. Meu pai continuou
administrando o aglomerado urbano expandido com a mesma intimidade que
marcara sua relação com o tabuleiro de xadrez dos anos 50. Ele dizia que
ninguém conhece uma cidade mais e melhor que o seu prefeito.
“Quem sabe o que deve ser feito numa cidade é o prefeito”, repete o
mineiro Romeu Zema ao explicar o protagonismo dos administradores
municipais na guerra contra o coronavírus. Pelo desempenho da turma no
combate à pandemia da covid-19, Zema é o único dos 27 governadores a
endossar essa velha verdade. Os demais ignoram que, da mesma forma que a
União, também as unidades federativas são uma abstração. Todo
brasileiro mora numa rua, num bairro e numa cidade — nessa ordem. Depois
é que vêm o país e, por último, o Estado. Fronteiras estaduais, aliás,
são frequentemente volúveis. Milhares de filhos do norte de Goiás, por
exemplo, foram goianos até 1988. Então, sem terem mudado de endereço,
acabaram anexados à população do recém-nascido Tocantins.
Diferenças regionais são escancaradas pelo sotaque, pela culinária,
pela cultura e por tantos outros quesitos. Mas convém relativizá-las.
Um exemplo tomado ao acaso: entre um baiano e um gaúcho as diferenças
são maiores e mais numerosas do que as que permitem distinguir um
boliviano de um paraguaio. Mas a dissonância entre essas duas porções do
Brasil talvez seja inferior à existente entre os baianos do litoral e
os nativos do sertão. Ou entre um filho da fronteira e o descendente dos
imigrantes nascido na Serra Gaúcha.
“Mais Brasil e menos Brasília”, recitam de meia em meia hora dez em
cada dez governadores, convencidos de que nem o mais iluminado
presidente da República pode conhecer os Estados tão bem quanto os
eleitos para administrá-los. Verdade. Também é verdade que tal linha de
raciocínio informa que nenhum governador saberá sobre alguma cidade o
tanto que sabe quem foi escolhido pelo povo para dela cuidar. Só Romeu
Zema compreendeu que quem contesta a sufocante onipresença do Palácio do
Planalto não pode submeter regiões tão claramente distintas às
convicções e vontades do governador. Mais prefeitura e menos palácio na
capital, estariam bradando os prefeitos se não os silenciasse a ameaça
de retaliações. Pior para os autoritários: no quarto mês do ano do
coronavírus, o candidato do Partido Novo que estreou em campanhas
eleitorais há menos de dois anos segue dando aulas de sensatez e astúcia
a velhos vigaristas e velhacos de berço.
O primeiro vírus chinês a pousar no Brasil ainda taxiava na pista de
um aeroporto paulista quando Zema resolveu dividir com os prefeitos a
condução da guerra na frente mineira. Enquanto vigorou o isolamento
social inevitável na primeira etapa do combate à covid-19, o governo
estadual valeu-se da redução da velocidade do inimigo para fortalecer o
sistema de saúde e eliminar carências que tornavam perigosamente
vulnerável a rede hospitalar. Outros governadores seguiam absorvidos
pela contagem de mortos e infectados enquanto Zema também contava
respiradores e leitos de UTI adquiridos sem estardalhaço nem
esbanjamento. Outros governadores continuavam eternizando a quarentena
com sucessivas prorrogações no momento em que o quartel-general mineiro
começou a planejar a retomada gradual das atividades econômicas.
Ficou estabelecido que cada prefeito decidiria quando começaria e como se consumaria a ressurreição da vida como ela é.
Nesta quinta-feira, o balanço da pandemia reafirmou o acerto da
fórmula mineira. O total de óbitos (191) contrasta com a alta letalidade
alcançada pela covid-19 no vizinho Estado de São Paulo. A curva
desenhada pelos casos confirmados está longe de inquietar a Secretaria
da Saúde. O índice de ocupação de leitos de UTI segue distante do ponto
de saturação, o volume de pacientes recuperados é animador, a quantidade
de testes é elogiável e os focos de infecção permanecem sob o cerco de
restrições sanitárias mais rígidas. Paralelamente à luta pela
preservação de vidas, municípios excluídos da rota do coronavírus vão
cumprindo o cronograma da reabertura. É claro que a batalha pela
sobrevivência da economia pode eventualmente inflar as cifras e taxas
que exibem a trajetória do coronavírus. Até agora, contudo, não
ocorreram flutuações inquietantes.
“Outros Estados estão percorrendo o mesmo caminho traçado por Minas”,
anima-se o governador. Em Santa Catarina, no Paraná, em Mato Grosso do
Sul e no Rio Grande do Sul, cresce diariamente o universo de municípios
revigorados pelo fim da quarentena imposta a lojas, shoppings,
restaurantes e outros estabelecimentos comerciais. “Estamos ganhando
essa briga”, avisa Romeu Zema. O sorriso sereno informa que, em Minas
Gerais, um segundo flagelo já foi derrotado: a epidemia do medo. Os
principais sintomas são a insegurança arrogante e o pavor de
experimentar alternativas. Esse filhote da pandemia de coronavírus
contaminou a maioria dos governadores. Para sorte deles, não é mortal. O
medo, infelizmente para os governados, é só paralisante.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário