Não se pode, em justiça, comparar o 31 de março de 1964 com a situação
que veio a acontecer depois. Primeiro, em 1964, houve uma resposta
militar a um clamor popular. Depois, em 1968, houve a instauração de uma
ditadura fechada, em resposta a uma situação estratégica de inimigos
armados internos. Artigo de Carlos Ramalhete, colunista da Gazeta do Povo:
Temos em mãos uma crise anunciada. Era bastante evidente que, eleito
Bolsonaro, fosse haver algum tipo de comemoração do 31 de março de 1964.
Surpreendente, na verdade, é que elas sejam restritas aos quartéis, sem
paradas em grandes avenidas e todo o carnaval cívico que a sociedade
brasileira sabe preparar. Afinal, o atual presidente fez a sua carreira
política baseada no apoio aos governos militares que se sucederam ao
levante de 1964, com direito a fotografias dos seus atuais antecessores
nas paredes do seu gabinete de deputado, voto em homenagem a Ustra
quando do impeachment de Dilma, e o que mais pudesse lhe valer para
colocar-se como o anticomunista por antonomásia. Seria, assim,
perfeitamente natural se ele fizesse uma forte comemoração nas ruas das
cidades, ou mesmo que decretasse um dia de feriado se não fosse num
domingo o aniversário este ano.
Isso soa estranho, estranhíssimo, quando só se tem diante dos olhos o
discurso único da mídia, que durante os desgovernos esquerdistas que
assolaram o Brasil pelas duas últimas décadas fez-se o único discurso
aceito em qualquer meio de divulgação pública. Os que perderam em 1964
ganharam na difusão de sua versão. Já há uma geração que foi educada
aprendendo apenas sobre os “anos de chumbo”, nas novelas, jornais e onde
mais houvesse espaço para divulgá-la. Terroristas assassinos, como a
gangue de nossa ex-presidente, conseguiram arvorar-se em supostos
defensores da democracia, sem deixar claro que a “democracia” que
defendiam era na verdade mero codinome para a famigerada Ditadura do
Proletariado, que mais de cem milhões de vítimas causou ao longo do
século passado.
Já Bolsonaro chegou a defender que não houve ditadura. Nem tanto ao
mar, nem tanto à terra. Talvez ele pudesse mesmo dizer, com o ditador
chileno Pinochet (que ele aliás elogiou publicamente, causando reações
na esquerda daquele país em sua recente visita), que tivemos aqui uma
“ditabranda”. Não sei. O que sei é que entre os governos militares
brasileiros e seus correspondentes pelo resto da nossa sofrida América
Latina, havia uma diferença monumental. Paisecos minúsculos sofreram
dezenas de milhares de baixas entre os adversários dos governos
militares, por vezes até mesmo jogados de aviões ou helicópteros, ou
outras formas refinadamente cruéis de assassinato. A forma especialmente
macabra e cruenta como foi assassinado o cantor e violonista Victor
Jara, no Chile, por representantes do Estado, poderia entrar para
qualquer História da Infâmia que um novo Borges se dispusesse a
escrever. Até hoje desenterram-se cadáveres de chacinas
centro-americanas, perpetradas a soldo do Estado.
Já o nosso país, de dimensões continentais, teve algumas centenas de
mortos – em sua imensa maioria gente armada e perigosa –, às quais se
somam, por justiça, cento e tantos trabalhadores assassinados pelos
movimentos terroristas de extrema-esquerda. É a nossa cultura, que não
aceita como a espanhola (e as suas descendentes) o confronto aberto, que
fez com que fosse assim. Enquanto os hispanófonos latino-americanos
batiam de frente, como toureiros e touros, até a morte de um – ou de
dezenas de milhares –, os lusófonos brasileiros arranjávamos esquemas
extremamente generosos para livrar-se dos que não trocavam tiros com a
polícia, dando, por exemplo, a FHC o direito de aposentar-se da USP
antes de ir para o régio exílio em Paris.
Mas de onde veio isso, de onde veio este confronto, que não aconteceu
apenas no Brasil, tendo, ao contrário, nele a sua forma mais branda?
Trata-se de um fruto da Guerra Fria, de uma das inúmeras guerrinhas por
procuração entre os Estados Unidos e a hoje felizmente finada União
Soviética. Jânio, o louco, havia sido eleito presidente. Querendo mais
poderes, tentou uma jogada algo arriscada, em que renunciou, convencido
de que voltaria nos braços do povo. Não voltou. Quem tomou seu lugar,
após várias idas e vindas, foi seu rival e vice, João Goulart, que
imediatamente alinhou-se ao eixo soviético (com que Jânio já havia
flertado ao condecorar Che Guevara). Com o apoio da extrema-esquerda,
passou a pregar o ódio de classes, a reforma agrária confiscatória, e
outras medidas que pareciam indicar que o país estaria no rumo de
tornar-se nova Cuba. Cabe lembrar que a revolução cubana não ocorrera
tanto tempo atrás; Havana ainda não parecia ter sido bombardeada. Talvez
até existissem ainda cubanos gordos sem fazer parte do Partido.
A população brasileira, notadamente a classe média, levantou-se 55
anos atrás como o fez nos últimos anos. Só faltaram as camisetas da CBF.
Multidões enormes, que em termos de percentual da população jamais
foram alcançadas, desceram às ruas pedindo às Forças Armadas que
depusessem aquele louco. O cineasta e escritor Arnaldo Jabor conta que,
voltando excitado de um comício da extrema-esquerda em que Jango
prometera a revolução para o dia seguinte, arrepiou-se ao perceber que
em todas, virtualmente todas as janelas dos apartamentos que via da
janela do ônibus estava a vela acesa solitária que identificava os
simpatizantes das “Marchas com Deus pela Liberdade”, anticomunistas.
Deve ter sido mais ou menos o horror que acometeu os esquerdistas deste
nosso século ao ver as ruas das cidades tomadas de camisetas amarelas.
E veio o que, dependendo de quem conta a história, pode ser dito “o
golpe de 64”, “a revolução redentora” ou “o contragolpe”. Inclino-me por
este último, na medida em que Jango, alçado ao poder indiretamente e
sem respaldo popular, planejava instaurar uma ditadura de esquerda. Ou
não; talvez ele fosse apenas fraco e incompetente, e não fosse conseguir
instaurar nada mais que o caos. Mas como saber? A História andou. Não
adianta pensar o que teria ocorrido se algo houvesse sido diferente. Se
Jango houvesse conseguido fazer suas “reformas de base”. Se os militares
não houvessem intervindo. Se as eleições houvessem meramente sido
adiantadas. Não se sabe. O que se sabe é que o Congresso Nacional,
inclusive a esquerda moderada que o compunha, acatou a intervenção
militar e depôs formalmente Jango, instalando em seu lugar um general.
A ideia era simplesmente arrumar um pouco a confusão e fazer novas
eleições presidenciais. Vê-se, na capa da Revista Manchete (uma revista
composta basicamente de fotografias com legendas, popularíssima à época)
alusiva à data, Carlos Lacerda, o governador direitista do atual Rio de
Janeiro, com um sorriso que se fosse maior saltar-lhe-iam da boca os
dentes. Ele pensava que seria o próximo presidente, que poderia
concorrer em eleições livres pouco tempo depois, sendo eleito por
aquelas mesmas multidões que foram às ruas pedindo o fim do desgoverno
janguista. Mas não. E aqui entramos em outra fieira de “Ses”: e se essa
eleição tivesse ocorrido, como teria sido a História? E se Lacerda
tivesse sido eleito? E se ele concorresse contra Jango ou Brizola, como
teria sido? Nunca saberemos. Se porcos tivessem asas, eles voariam; não
vale a pena pensar em “Ses”. O que vale notar é que o recrudescimento do
confronto entre esquerda pró-soviética e direita pró-americana só fez
aumentar, com a extrema-esquerda tomando em armas e lançando-se ao
terrorismo, aos assaltos a banco, aos sequestros. E, no quadro deste
recrudescimento, quatro anos depois de tomarem o governo – quatro anos
depois de 1964, quatro anos depois da data que Bolsonaro quer comemorar –
os militares tomaram o poder, com o Ato Institucional Número Cinco. Só o
foram largar duas décadas depois. Estes anos, após o AI-5, é que foram
os anos da verdadeira ditadura (ou, repito, comparada às que assolaram
Argentina, Chile, etc., “ditabranda”).
Assim, não se pode, em justiça, comparar o 31 de março de 1964 com a
situação que veio a acontecer depois. Primeiro, em 1964, houve uma
resposta militar a um clamor popular. Depois, em 1968, houve a
instauração de uma ditadura fechada, em resposta a uma situação
estratégica de inimigos armados internos. Entre um e outro, tendo lá
suas razões, os militares não organizaram as eleições que deveriam ter
acontecido. O AI-5 foi um fruto do movimento de 1964? De certa forma,
foi. Mas desta mesma forma, o 31 de março foi o fruto do desgoverno
janguista, e o AI-5 do crescimento do terrorismo e da guerrilha
foquista. O que tivemos ali foi uma situação cruel, em que, como me
observou certa feita meu avô – o autor da Lei de Anistia (ampla, geral e
irrestrita) que possibilitou a volta dos esquerdistas exilados,
inclusive os culpados por crimes de sangue –, “brasileiro lançou-se
contra brasileiro”. Uma tragédia, em que simplesmente participamos de
outra tragédia a nível global, que foi a Guerra Fria e a rivalidade
EUA-URSS.
A nossa cultura, felizmente, impediu que houvesse aqui algo
semelhante à horrenda Guerra Civil Espanhola, em que igualmente os
compatriotas voaram aos pescoços uns dos outros, resultando em um
morticínio que serviu de prévia da Segunda Guerra Mundial. Aqui
aposentamos os subversivos antes de enxotá-los. E os mandamos para
Paris, não para o fundo do mar. Felizmente.
A grita da extrema-esquerda (incluindo aí a “extrema-imprensa”)
contra as comemorações do 31 de março é outro ressurgimento desta
mentalidade de guerra, desta mentalidade partidária, como se tivéssemos
ainda a União Soviética e os Estados Unidos às vésperas de trocar bombas
atômicas. A data de 31 de março de 1964 foi uma derrota política para a
esquerda, e isto para eles já é algo a chorar, espernear e gritar.
Basta ver como tratam hoje o impeachment de Dilma. Tudo é “golpe”, mesmo
quando ocorre literalmente, como nos dois casos, a pedidos da
população. Mas as torturas, os “desaparecimentos”, o terrorismo, os
sequestros, as bombas, toda a parte realmente trágica daquele período da
nossa História não veio diretamente do 31 de março mais que teria vindo
do Comício da Central de Jango. Seria, realmente, péssima ideia
comemorar o AI-5, ainda que se possa perfeitamente defender que tenha
sido necessário no momento, dado o perigo da guerrilha comunista,
apoiada e financiada do estrangeiro. Mas foi uma tragédia. O 31 de março
não. Não houve mortes então. Não houve tortura, não houve bombas em
aeroportos ou em portas de quartéis. Isso tudo veio depois. O 31 de
março foi uma tentativa de – para usar uma palavra da moda –
“livramento”, que infelizmente gorou. Pode ser comemorado, pode ser
lamentado, mas certamente não faz sentido algum tratá-lo como a esquerda
o trata, como se naquele momento – e não no AI-5 – se houvessem aberto
as portas do inferno. Não; elas já estavam abertas, e continuaram ainda
por muito tempo. Hoje dele ardem brasinhas na Coreia do Norte e em Cuba,
com uma ou outra oculta na Nicarágua ou soltando fétida fumaça na
Venezuela. Mas, felizmente, o inferno do Século 20 e de seus confrontos
sanguinários entre ideologias ficou decididamente para trás. A História
agora, como disse o “subversivo Marques”, só se repete como farsa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário