De boatos sobre personagens menores, mas cultuados oficialmente, a temas históricos relevantes, pode dar cadeia contestar a versão oficial. Vilma Gryzinski:
Os
regimes autoritários são prolíficos em criar piadas involuntárias. Na
China de Xi Jinping, que está dando uma guinada forte à esquerda em
todas as esferas, a última “piada” é igualar, na censura, questões
históricas de grande importância a brincadeiras que mencionem os heróis
da narrativa oficial do regime comunista.
O
levantamento dos casos que redundaram em penas de prisão desde que
entrou em vigor a nova lei, em março, foi feito por Steven Lee Myers
para o New York Times.
O
mais absurdo envolve uma mulher identificada apenas como Xu, de 27
anos. Ela fez um post ridicularizando os “machistas do teclado”, homens
que ficam fazendo reclamações misóginas pela internet e “se acham um
Dong Cunrui”.
O
personagem mencionado faz parte dos livros de história usados nas
escolas, onde aparece como um herói da revolução comunista: preferiu
explodir a si mesmo junto com um bunker das forças nacionalistas, em
1948, para não perder a oportunidade de um ataque aos inimigos na guerra
civil.
A
mulher mencionada não criticou o herói oficial. Ao contrário, usou-o
como exemplo de grandeza para zoar os celibatários involuntários que não
têm a mesma estatura. Mesmo assim, ela foi condenada a sete meses de
prisão.
Outro
caso, mais conhecido de “difamação de mártires e heróis” , é o do
blogueiro Qiu Ziming. Em junho, ele pegou oito meses de cadeia, além de
uma sessão pública de arrependimento transmitida pela televisão, por
contestar se realmente apenas quatro militares chineses haviam sido
mortos num confronto com a Índia numa fronteira disputada entre os dois
países no alto das montanhas do Himalaia.
O
choque aconteceu em junho do ano passado e azedou as relações entre os
dois países mais populosos do mundo. Como as respectivas forças
fronteiriças têm o compromisso de não usar armas de fogo, os chineses
atacaram usando mas, barras de ferro e uma profusão de armamentos
primitivos, mas eficazes. A Índia admitiu ter sofrido vinte baixas.
Não
é impossível que os dois países tenham mentido sobre as respectivas
perdas. Prender um blogueiro por contestar os números é um ato do mais
perfeito autoritarismo.
A
censura a posts considerados provocativos é feita pela Agência Chinesa
de Ciberespaço, que criou até um disque-denúncia para patrulhar os
desvios.
A
Agência também publicou uma lista dos “dez boatos” que é proibido
discutir. A lista inclui banalidades, como debater se os “cinco heróis
da montanha Langya” realmente saltaram para a morte para não serem
feitos prisioneiros depois de infligir muitas baixas aos inimigos, ou
apenas escorregaram na região escarpada.
Historiadores
chineses pesquisas fontes primárias do Japão e não encontraram
registros de baixas no episódio mencionado. O caso ganhou conotação
política e provocou o fechamento de uma revista mensal dedicada a temas
histórico, em 2016.
Na
lista dos assuntos proibidões também constam temas de abrangência e
importância muito maiores, como debater se as tropas do Exército
Vermelho pouparam forças contra os japoneses durante a II Guerra Mundial
para poder se concentrar mais no combate aos nacionalistas – finalmente
derrotados em 1948.
Outro
tema explosivo: a Guerra da Coreia, celebrada como um dos grandes
acontecimentos nacionais da historiografia oficial, foi desfechada sob o
falso pretexto de que os americanos pretendiam invadir a China
comunista?
É
absurdo colocar assuntos tão relevantes – que, obviamente, devem ser
estudados e perscrutados por historiadores – ao lado de boatos como o de
que o filho de Mao Tsé Tung, Mao Anying, foi morto por um bombardeiro
americano durante a mesma Guerra da Coreia porque acendeu um fogareiro
para fazer arroz chop suey e deu a pista de sua localização.
“Esse
chop suey foi a melhor coisa que aconteceu na Guerra da Coreia”, zombou
um comentarista de de Nanchang, devidamente preso no mês passado.
A
campanha contra a “difamação de mártires e heróis” faz parte do grande
reajuste político que Xi Jinping está imprimindo em todas esferas do
país. De forma geral, ele obedece à lógica de voltar aos princípios
originais do “comunismo ao estilo chinês” e segurar o espírito
capitalista que começou a se disseminar desde as grandes reformas
lançadas por Deng Xiaoping.
A
abertura para a propriedade privada e a livre iniciativa, sob
supervisão e com participação do estado, liberou as forças econômicas
que impulsionaram o milagre chinês, um dos maiores acontecimentos da
história recente.
Agora,
Xi Jinping e a cúpula comunista querem fazer uma correção de rota,
sabendo que a prosperidade econômica traz inevitavelmente um desejo
maior de liberdades individuais e políticas.
O
grande arco de retorno aos princípios comunistas inclui desde a
condenação de jovens blogueiros que adotam trajes e estilos
“feminilizados” até o enquadramento dos bilionários que começaram a
aparecer demais, como Jack Ma.
Exatamente
há um ano, homem mais conhecido do país, Jack Ma,, cuja empresa, a
Alibaba, a “Amazon da China”, chegou a valer um trilhão de dólares,
desapareceu durante vários meses. A oferta pública de ações que faria
sumiu do mapa. Ma ressurgiu depois de receber uma multa de 2,8 bilhões
por formação de monopólio e não abriu a boca desde então.
Embora
menos conhecidas, outras intervenções espalharam-se por empresas de
alta tecnologia, finanças e até do ramo das aulas particulares onde pais
zelosos colocavam seus filhos para melhorar as chances em escolas mais
disputadas.
Outro
sinal de que o parafuso está apertando: todos os integrantes do
judiciário e dos contingentes da polícia e dos órgãos de segurança – de
dimensões chinesas – voltaram a fazer sessões de doutrinação política,
inspirada em exemplos de Mao Tsé Tung.
Xi
Jiping dá a entender que tudo está relacionado ao objetivo da
“prosperidade para todos” – e possivelmente muitos chineses mais pobres
não fiquem exatamente condoídos com os apertos em empresários e
executivos no topo da pirâmide.
Mas,
como em todos os regimes autoritários, a prioridade número um de Xi
Jinping é preservar o próprio poder. Manter o controle do Partido
Comunista Chinês, cujas rédeas ele concentra, é a forma mais lógica de
não ser ultrapassado por forças poderosas, sejam bilionários com ideias
próprias, historiadores que ousam investigar a história ou blogueiros
atrevidos.
Nada
é suficientemente pequeno ou irrelevante para escapar do regime que
tudo vigia. Até discussões sobre a exata extensão da Longa Marcha, o
deslocamento que Mao liderou para tirar as forças comunistas da ofensiva
pesada dos nacionalistas e colocá-las em posição de, anos depois,
ganhar a guerra civil. Discutir se ela realmente se estendeu por nove
mil quilômetros também está na lista que pode dar cadeia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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