Para o ex-secretário especial de Desburocratização Paulo Uebel, a cultura do serviço público precisa ter foco no cidadão. Entrevista a Paula Leal, da Oeste:
Ex-secretário
especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério
da Economia, Paulo Uebel deixou o governo em agosto do ano passado. Ele
pediu demissão do cargo junto com o secretário especial de
Desestatização e Privatização, Salim Mattar. O ministro da Economia,
Paulo Guedes, afirmou na época que a debandada na pasta foi um sinal de
insatisfação com o ritmo das privatizações e da agenda de reformas.
Nascido
em Porto Alegre, formado em direito pela PUC-RS, especialista em
liderança global pela Universidade Georgetown e mestrado em
administração pública (MPA) pela Universidade Columbia, em Nova York,
Paulo Uebel, 42 anos, trabalhava em um fundo de venture capital quando
recebeu o convite de Guedes para integrar o Ministério da Economia.
Durante um ano e meio, Uebel se dedicou a tornar o Estado um ente mais
dinâmico, enxuto e eficiente. “Enquanto estávamos lá, transformamos mais
de mil serviços em formato digital, o que resultou em economia anual de
cerca de R$ 2 bilhões para a sociedade e 150 milhões de horas
economizadas para o cidadão, que eram gastas com a burocracia.” Não foi a
primeira vez que Uebel vivenciou uma experiência no serviço público.
Entre 2017 e 2018, ele foi secretário municipal de Gestão da prefeitura
de São Paulo durante o governo do então prefeito João Doria (PSDB).
Em
entrevista à Revista Oeste, o advogado e empreendedor aponta avanços no
ambiente de negócios no país com a aprovação da Lei de Liberdade
Econômica, comenta a resistência de determinados setores a mudanças e
explica por que é tão difícil implementar transformações na máquina
estatal. “As mudanças no governo precisam de resiliência e de pessoas
que tenham uma mentalidade de transformação. Porque o status quo é não
fazer, não mudar, é não ter foco no cidadão.” A seguir, os principais
trechos da entrevista.
O
senhor veio da iniciativa privada e chegou a dizer, após sua
experiência no serviço público, que “quem entra liberal no governo sai
libertário”. Por quê?
No
governo federal, o nível técnico é muito alto. Mas geralmente quem vai
para o serviço público, na média, são pessoas com aversão a risco. Todas
as mudanças, todas as melhorias são lentas e graduais. Essa é a regra
no funcionalismo: fazer tudo com calma e praticar uma cultura na qual o
erro não é tolerado, mesmo que seja de boa-fé. É uma cultura para a
pessoa não fazer nada diferente, nada novo. Existe um foco grande no
processo, em fazer o processo bem-feito para que as formalidades sejam
preenchidas, mas com pouco compromisso se aquela ação vai ou não dar
resultado. A cultura do serviço público é centrada no processo e não no
cidadão.
São
tantas amarras, sempre para não dar certo, que mesmo os bons servidores
acabam ficando de mãos atadas. A pessoa entra com energia, com vontade
de fazer, e com o tempo vai ficando cada vez mais acomodada, mais
descrente. As mudanças no governo precisam de resiliência e de pessoas
que tenham uma mentalidade de transformação. Porque o status quo é não
fazer, não mudar, é não ter foco no cidadão.
Pode citar um exemplo que ilustre essa dificuldade em implementar mudanças no sistema público?
Lembro
quando estávamos discutindo um decreto para fazer uma ampla revisão
normativa. É um decreto que inclusive já foi publicado e terá impacto
muito grande na redução da burocracia, porque obriga os órgãos do
governo federal a revisar todas as normas abaixo do que for decreto.
Existe uma hierarquia legal: as leis, que dependem do Congresso; os
decretos, editados pelo presidente da República; e, abaixo dos decretos,
os atos normativos emitidos por ministros, por presidentes de
autarquias, por secretários. Só que há milhares de atos, portarias,
instruções normativas, normas regulamentadoras, resoluções. Esse decreto
simplificou o número de tipos normativos e obrigou todos eles a ser
revisados, simplificados e republicados de forma consolidada, sem
ambiguidades, para facilitar a vida do cidadão.
Até
o fim da década de 1990 vigorava no Brasil o que os advogados chamavam
de revogação tácita. Toda vez que se publicava um ato normativo, um
decreto, no final estava escrito “revogam-se todos os dispositivos em
contrário”. Só que essa revogação tácita é muito subjetiva. Cada fiscal,
cada servidor público tem uma interpretação diferente do que foi ou não
foi revogado por aquela norma. A partir da primeira década de 2000, com
a Lei Complementar nº 96, isso mudou. O legislador é obrigado a dizer
quais atos ou quais normas estão sendo revogados, para não haver dúvida.
Só que tudo o que foi publicado até a década de 1990 ainda permanece
com essa revogação tácita subjetiva, que gera uma insegurança jurídica
brutal. Um fiscal pode interpretar que a regra foi revogada, outro pode
achar que não foi. E o cidadão fica à mercê das interpretações de cada
um.
Na
discussão sobre o decreto normativo que obrigava essa revisão, várias
pessoas não queriam. “Deixa assim, é importante ter espaço para
interpretação.” Eles falavam sob o ponto de vista dos servidores, e
nunca do cidadão. O servidor tem vários órgãos de controle para dar
apoio. Só que a média da população é o pequeno empreendedor, é a pessoa
que precisa fechar o comércio para ir ao banco. Como essas pessoas vão
conhecer todas as normas, todas essas regras? Eles não têm contador,
advogado, consultor. Muitos servidores acham que o Brasil é igual a
Brasília, em que todo mundo tem curso superior, tem doutorado, mestrado.
Existe um certo descolamento da realidade. Precisamos pensar nas leis e
normas para a média da população, não para a elite da sociedade. Será
que a pessoa que tem uma sapataria, uma barraquinha de pipoca, tem
condições de acompanhar o que sai no Diário Oficial? Brasília criou uma
ilha onde as pessoas têm nível técnico muito bom, escolaridade alta, mas
não representam o Brasil.
O
senhor participou ativamente da criação da Lei de Liberdade Econômica
(13.874/2019). Qual foi o maior avanço que a aprovação desse dispositivo
legal representou em termos de facilitação do ambiente de negócios no
país?
O
principal avanço foi a inserção, pela primeira vez no Brasil, do
conceito de matriz de risco na normatividade das atividades econômicas. O
que é isso? Quando se faz uma lei, é preciso pensar no nível de risco.
Geralmente, a burocracia é justificada pelo risco. Em torno de 80% das
atividades econômicas realizadas no Brasil são de baixo risco. Para
essas atividades, não tem justificativa criar burocracia, porque não
geram risco para ninguém. Por exemplo, um sapateiro, uma papelaria, um
comércio de rua, uma costureira. Não devemos gastar o tempo da máquina
burocrática com isso, que é um tempo caro e precioso. Então, com a
aprovação da lei, todas essas atividades hoje dispensam alvará, licença,
autorização, permissão etc. Vamos gastar o tempo do Estado em coisas
relevantes, em negócios de médio e, principalmente, de alto risco. No
momento em que todos os órgãos públicos fizerem e cumprirem uma matriz
de risco, o país terá automaticamente entre 70% e 80% das atividades sem
nenhuma burocracia. O problema no Brasil é que sempre tratamos todas as
atividades econômicas como se fossem de alto risco, e isso não é uma
boa política pública.
Todas as prefeituras já estão aplicando essa dispensa de alvarás e licenças para estabelecimentos de baixo risco?
Muitas
prefeituras já estão seguindo; conheço cidades que fizeram a lei de
liberdade econômica em nível municipal e alguns Estados em nível
estadual. Cito os exemplos do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto
Alegre. Mas sei que existe muita resistência. Porque a lei de liberdade
econômica acaba com essa pequena corrupção da venda de alvarás, da
consultoria que agiliza autorização para abrir o estabelecimento, da
indicação de alguém que pode acelerar o processo. Existe uma indústria
da corrupção que é contra a redução da burocracia. Eles querem
justificar a existência de alvará, a necessidade de vistoria prévia para
atividades de baixo risco, só que não há justificativa alguma.
Algum dispositivo importante ficou de fora da Lei de Liberdade Econômica?
Sim.
Um dispositivo na lei liberava o trabalho em qualquer dia da semana e
horário. Isso gerou uma resistência muito grande, os partidos de
esquerda não queriam autorizar o trabalho nos fins de semana, abrir no
domingo. Foi um retrocesso. Se o empreendedor quer abrir, talvez para
ele seja mais importante trabalhar no domingo do que na terça, porque na
terça ele pode querer pegar o filho na escola, ou tirar o dia para
resolver questões burocráticas, ou ficar com a família. Há quem prefira
trabalhar à noite, de madrugada. Quando o Estado começa a microgerenciar
e interferir na vida das pessoas e definir o horário em que elas podem
trabalhar, na minha opinião, é um abuso.
O
senhor se dedicou muito à pauta da transformação digital durante sua
permanência no governo. Na prática, quais foram os avanços nessa área?
A
transformação digital é uma pauta necessária e irreversível. Publicamos
um decreto que prevê mais de 50 ações e metas que o governo federal vai
adotar até dezembro de 2022 para transformar todos os serviços em
formato 100% digital. Evidentemente, não serão digitalizados aqueles que
ainda requerem a presença física do cidadão, como coleta de biometria,
perícia, exames físicos. Enquanto estávamos lá, transformamos mais de
mil serviços em formato digital, o que resultou em economia anual de
cerca de R$ 2 bilhões para a sociedade e 150 milhões de horas
economizadas para o cidadão, que eram gastas com a burocracia.
No
INSS, promovemos a transformação digital de 90 dos 96 serviços
oferecidos. Há quem resista, quem diga que quem usa o INSS é mais velho e
prefere o atendimento presencial. Os números não mostram isso. Em maio
de 2019, em torno de 10% das demandas do INSS entravam pelos canais
remotos — telefone e internet — e 90% pelos canais físicos, via
agências. Depois da transformação digital, a situação se inverteu: 90%
dos serviços passaram a entrar pelos canais remotos e só 10% pelos
canais físicos. Mesmo a população mais vulnerável, mais velha prefere o
acesso remoto, com o apoio da família, pois é mais fácil. E para quem
está na base da pirâmide, os mais vulneráveis sem acesso à internet,
também será melhor porque essas pessoas encontrarão agências mais vazias
e poderão ter um atendimento presencial mais rápido. A transformação
digital não beneficia apenas quem tem acesso à internet, beneficia
também quem não tem.
Como
lidar com a postura de parte do empresariado brasileiro que quer
burocratizar para criar reserva de mercado e dificultar a entrada de
concorrentes?
Outro
avanço importante na Lei de Liberdade Econômica é que ela contempla um
artigo que veda o abuso regulatório. Primeiro, é preciso entender o
conceito do termo. O abuso regulatório ocorre quando se usam as normas
regulamentadoras de uma lei para criar reserva de mercado, para produzir
favorecimento para uma indústria ou para uma carreira, e isso,
infelizmente, acontece muito no Brasil. Lembra da discussão sobre a
obrigatoriedade de que todos os carros tivessem kit de primeiros
socorros, com extintor de incêndio? Existe um lobby pelo fornecimento
desses produtos que cria uma demanda obrigatória. Por exemplo, o
fabricante de adesivos obriga todos os elevadores do Brasil a ter um
adesivo com a advertência de que é preciso verificar se o elevador está
parado no andar. Uma editora que obriga todos os comércios a ter um
Código do Consumidor impresso no balcão. As piscinas de condomínios que
exigem a contratação obrigatória de um salva-vidas. Os empresários e
profissionais, em vez de serem demandados pela qualidade do seu
trabalho, pela importância do seu produto, querem que o Estado crie uma
obrigação para o cidadão consumir determinado produto ou serviço. Isso é
um abuso, uma distorção. Outro exemplo, as reformas de calçada que
requerem a instalação de piso tátil. Nunca vi cego usar piso tátil. Qual
o porcentual de cegos na população que justifica essa intromissão? É
uma situação em que estão fazendo política com o dinheiro dos outros.
Defende-se
a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, mas quando o assunto é
a liberdade econômica muitos entendem que é preciso regulação. Por que é
tão importante garantir a liberdade econômica para a sociedade?
A
liberdade econômica é uma decorrência lógica do princípio democrático
de que o poder emana do povo. E, se o poder emana do povo, não cabe ao
Estado limitar um direito tão importante que é o direito ao trabalho. No
momento em que o Estado cria uma série de amarras, burocracias,
dificuldades sem fundamento, isso acaba subvertendo a ordem de que o
poder emana do povo e ele passa a emanar do Estado. A liberdade
econômica serve para garantir o direito de as pessoas produzirem o
próprio sustento, se for uma atividade de baixo risco. Se for uma
atividade de médio a alto risco, aí o Estado pode ter um papel
regulador, de fiscalização.
Todos
os países com altos níveis de IDH [Índice de Desenvolvimento Humano]
possuem mais liberdade econômica do que o Brasil. Porque lá o Estado
serve à sociedade, ele não manda na sociedade. Precisamos buscar essa
inversão no país e recolocar o Estado na sua posição original, ou seja, o
poder emana do povo e o Estado serve às pessoas. Jamais o Estado pode
existir para dificultar a vida do cidadão.
O senhor é um crítico do termo “serviço público gratuito”. Por quê?
Se
analisarmos os países desenvolvidos, eles falam em serviços públicos.
Eles não usam o conceito de serviço público gratuito. Aqui no Brasil, os
sindicatos sempre falam que o serviço é público, gratuito e de
qualidade. São três falácias: primeiro que não é público, é estatal.
Existe uma diferença entre público e estatal. Segundo, que ele não é
gratuito, é supercaro. E, na maioria das vezes, mais caro do que você
encontra na iniciativa privada. Em terceiro lugar, ele não é de
qualidade, é de baixa qualidade. Principalmente, se comparado ao custo
que tem. Mas, como existe o mito da gratuidade, o cidadão é enganado,
ele não olha para a qualidade porque acha que está recebendo de graça.
Tipo, “se você ganhou, não pode reclamar”. Só que o cidadão não está
ganhando, é uma contrapartida pelos impostos pagos, e paga-se muito
imposto. Proporcionalmente, os pobres são os que mais pagam.
Trabalhadores que recebem até dois salários mínimos gastam
aproximadamente 54% do que ganham com tributos. Só que a pessoa não sabe
disso, pois são tributos indiretos. Vai comprar pão, tem carga
tributária; vai comprar leite, arroz com feijão, tem incidência de
imposto. Toda hora que você está consumindo no Brasil, você está pagando
imposto. Só que o Estado não dá transparência.
Do
outro lado, quando você consome um serviço público, não há como saber
quanto exatamente custa aquele serviço. E ninguém dá transparência
porque não interessa ao Estado brasileiro mostrar quão ineficiente ele
é. Por exemplo, uma mãe colocou o filho na creche de graça. O certo
seria dizer: “Seu filho na creche custa por ano R$ 9,5 mil. Assina aqui
para ficar ciente de que, do total do que a sociedade pagou de imposto,
R$ 9,5 mil serão gastos com seu filho”. Todos os serviços públicos que o
cidadão consome deveriam ser individualizados e ter um custo. No
momento em que se diz que é de graça, você está enfraquecendo o
exercício de cidadania daquela pessoa porque ela não tem condições de
dizer se o serviço é caro, é barato, se está valendo ou não a pena. No
momento em que se começar a ver o preço real do serviço público, a
indignação vai ser brutal.
O senhor acredita que a reforma administrativa será aprovada em 2021?
A
janela de oportunidade para aprovar a reforma administrativa é este
ano. Ano que vem, esquece. O lado bom é que foi retomada a discussão da
reforma. Recentemente, recebi um convite para participar de uma
audiência pública na Câmara dos Deputados para falar sobre o tema. É um
bom sinal de que está andando. É o maior programa social do governo,
pois tem impacto nos três Poderes e nos três entes federativos: governos
municipais, estaduais e federal. Haverá impacto direto na qualidade dos
serviços públicos, porque moderniza muito as regras do funcionalismo.
Para se ter uma ideia, as normas que vigoram no Brasil foram desenhadas
na década de 1980. Imagine quanto o mundo mudou de lá para cá — são 40
anos de mudanças, de aperfeiçoamentos. E as regras continuam iguais.
Precisamos modernizar o marco constitucional do funcionalismo para ter
uma força de trabalho mais eficiente, mais produtiva e mais alinhada com
as demandas de hoje. Precisamos ter regras para evitar os privilégios, e
na reforma tem um capítulo inteiro que veda benefícios como férias
superiores a 30 dias, aumentos retroativos, aumentos que permitem que o
servidor ganhe mais só em decorrência do tempo, mesmo que o sujeito não
faça nada. Outro ponto que precisa acabar é a aposentadoria compulsória
como modalidade de punição. Isso não existe. O sujeito é punido e como
punição ele recebe aposentadoria integral. É uma sacanagem. Fora que a
reforma também moderniza as novas admissões para o futuro, incorporando
regras e práticas usadas em países desenvolvidos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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