MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 30 de maio de 2021

Estará o Homo sapiens regredindo?

 



"Sapiens face a Sapiens", do reputado paleoantropólogo Pascal Picq, pretende desmontar ideias feitas sobre a humanidade, à luz das mais recentes descobertas científicas. Mas será que consegue? José Carlos Fernandes para o Observador:


As tendências do mercado livreiro são imprevisíveis: tal como até ao “fenómeno” Código Da Vinci os thrillers esotéricos sobre templários, evangelhos apócrifos, cifras e conspirações de sociedades secretas para dominar o mundo nunca extravasaram um círculo restrito de “iluminados”, durante décadas, os livros de divulgação científica sobre a origem do homem apenas suscitavam o interesse de um número restrito de leitores com formação na área das ciências biológicas e eram quase completamente ignorados pelas editoras portuguesas. Tudo mudou com o estrondoso êxito de Sapiens: História breve da Humanidade, de Yuval Harari, surgido em Portugal em 2015 (ver O macaco que se converteu em Deus) e que chegou a um público bem mais vasto e conquistou, inclusive, classes profissionais usualmente alheadas deste tema, como gestores, economistas e políticos. Inevitavelmente, houve autores e editoras a precipitar-se para este nicho de mercado e começaram a multiplicar-se os livros que se propõem examinar a evolução humana e a forma como as características biológicas condicionam a natureza humana e as sociedades em que vivemos, explicar o nosso “sucesso” enquanto espécie e, no caso de autores mais ousados, perspectivar possibilidades de evolução civilizacional a partir do ponto em que nos encontramos.

Esta vaga tem produzido livros instrutivos, como Encontros imediatos com a humanidade: Uma nova visão sobre a evolução humana, de Sang-Hee Lee & Shin-Young Yoon (ver Singularidades de um símio sem pêlo: Como evoluiu o Homo sapiens), ou Alteração primata: Como o mundo que criámos nos está a mudar, de Vybarr Cregan-Reid (ver A cadeira e outros grandes inimigos da humanidade), livros com perspectivas estimulantes mas prejudicados por uma exposição de ideias confusa e uma prosa inepta, como O livro dos humanos, de Adam Rutherford (ver O que distingue o Homo sapiens das outras bestas?), e obras de natureza especulativa ou até delirante, como Homo biologicus: Como a biologia explica a natureza humana, de Pier Vincenzo Piazza (ver Será a alma uma ideia obsoleta?) e as duas sequelas que Harari lançou na esteira do acolhimento entusiástico a Sapiens, Homo Deus (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte-lhe como) e 21 lições para o século XXI (ver O que devemos ensinar aos nossos filhos? Há um guru que mostra o caminho).

Apesar de o título Sapiens contra Sapiens: A trágica e esplêndida história da humanidade (Edições 70) sugerir uma tentativa de colagem ao sucesso de Sapiens, de Yuval Harari, o paleoantropólogo francês Pascal Picq não pode ser acusado de oportunismo, uma vez que desde o início do século XXI que publica regularmente livros sobre evolução humana e sobre a forma como este caminho evolutivo tem moldado o nosso comportamento e a nossa civilização.

Na verdade, a sua bibliografia neste domínio é tão prolífica que pode questionar-se a pertinência de somar mais um título à lista, mas também esta reserva pode ser afastada pelo facto de os progressos recentes no domínio da genética terem vindo a alterar rapidamente (e a baralhar) o nosso conhecimento sobre a evolução humana. Em 2006, Picq já tinha dado conta desses progressos em Nouvelle histoire de l’homme (editado em Portugal três anos depois pela Temas & Debates), mas as descobertas realizadas desde então tornaram “velha” a Nova história do homem, justificando, na perspectiva de Picq, a publicação, em 2019 (é esta a data da edição original), de um novo “ponto da situação” sobre a evolução humana, que coloca especial ênfase no propósito de, à luz das mais recentes descobertas científicas, desmontar ideias feitas sobre o Homo sapiens e os seus “primos” do género Homo.

O novo livro tem ainda a ambição – flagrantemente excessiva, sobretudo quando dispõe apenas de 210 páginas com espaçamento de linhas arejado – de analisar a evolução histórica de temas tão vastos e complexos como mitologia, religião, filosofia, urbanismo, comércio e fluxos migratórios, e de reflectir sobre os principais desafios que se põe ao mundo presente em termos demográficos, sociais, tecnológicos e ambientais.

Este turbilhão de ideias, condimentado com referências a Karl Marx e Auguste Comte, Teilhard de Chardin e Francis Fukuyama, Jean Piaget e Sigmund Freud, desemboca, nas 14 páginas do capítulo “Conclusão: Uma revolução antropológica”, onde Picq faz um diagnóstico sombrio da civilização do século XXI: “enquanto uma parte crescente da Humanidade acede a estilos de vida mais confortáveis, outra conhece a desqualificação”. Picq identifica a raiz do problema no facto de o “modelo económico e social do fim do século passado” ter induzido tão profundas mudanças que se tornou desajustado à presente realidade. A fertilidade cai, “uma parte da população vê a esperança de vida diminuir, ocorrendo o mesmo para o QI e para a libido. As actividades físicas estão a reduzir-se como nunca antes com o sedentarismo, a obesidade e o conforto. A estes aspectos juntam-se todas as doenças civilizacionais, entre as quais as que estão ligadas à poluição e aos estilos de vida citadinos”. Os Homo sapiens, apurados por milhares de anos de pressões evolutivas para triunfar como caçadores-recolectores em habitats tão diversos como a savana africana, a floresta caducifólia europeia, a tundra siberiana, a floresta tropical de Bornéu ou o deserto australiano, parecem encontrar-se “pouco adaptados à ecologia urbana nos planos económico, social e de saúde, simultaneamente” – e Picq conclui que “mais de metade da Humanidade” entrou em “evolução negativa”.

Até há bem pouco tempo, as maiores ameaças que o Homo sapiens enfrentou eram de origem natural, hoje, escreve Picq, “passaram a ser de natureza humana: doenças, indústrias, economias, urbanização, poluição”. Sem citar fontes (como é regra ao longo de todo o livro), Picq lista, “por ordem de preocupação decrescente”, as ameaças que impendem sobre a Humanidade: “as consequências das alterações climáticas, as migrações provocadas por estas e as catástrofes naturais; as fraudes maciças relativas aos dados – os ciber-ataques e a inteligência artificial; as catástrofes industriais; a destruição da biodiversidade; a dificuldade no acesso à água; ou, ainda, as bolhas especulativas no campo das finanças”. Em resumo: para Picq, o Homo sapiens é hoje a maior ameaça à subsistência do Homo sapiens – o que explica o título do livro.


Uma das questões mais debatidas da evolução humana – e que, como seria inevitável, Picq aborda neste livro – é o que terá acontecido às outras espécies do género Homo que deambularam pelo planeta ao mesmo tempo que o Homo sapiens: o Homo neanderthalensis e o Homo denisova. Sobre os denisovianos sabe-se ainda pouco, dada a exiguidade dos vestígios encontrados, mas os neandertais estão bem documentados: eram criaturas robustas, com um volume craniano superior ao do moderno Homo sapiens e alguma sofisticação civilizacional. Picq faz questão de desmontar o estereótipo, que impregna a cultura popular, dos neandertais como uns brutamontes lerdos e obtusos e realça as suas inovações no fabrico de ferramentas, armas e adornos, as suas capacidades de expressão artística e o cuidado posto no sepultamento dos seus pares, e sugere que muitas destas prática terão sido adoptadas pelos Homo sapiens. Todavia, estes atributos, que permitiram aos neandertais multiplicar-se e espalhar-se da Europa Ocidental até à China, não impediram a sua extinção.

Esta foi concomitante com a chegada à Eurásia de uma nova vaga migratória de Homo sapiens, provenientes de África. Estes já tinham começado a “infiltrar-se” na Eurásia há cerca de 300.000-200.000 anos e tudo os “invasores” ter-se-ão casalado quer com os neandertais quer com os denisovianos, uma vez que quer o registo fóssil quer algumas populações humanas modernas contêm no seu material genético presença (mais ou menos relevante, consoante as regiões) de DNA neandertal e/ou denisoviano.

A migração de Homo sapiens para a Europa intensificou-se há cerca de 45.000 anos e foi acompanhada por um progressivo declínio da implantação dos neandertais, que ficaram remetidos às regiões mais remotas e agrestes da Península Ibérica, onde os últimos membros terão vivido há cerca de 37.000-35.000 anos.

É tentador ver uma relação causa-efeito entre a chegada do Homo sapiens e a extinção dos neandertais, mas os elementos de que se dispõe não são conclusivos e os paleoantropólogos têm opiniões muito diversas sobre o assunto. Terá o Homo sapiens simplesmente ocupado o lugar de predador de topo deixado vago por um Homo neanderthalensis em declínio devido à incapacidade de adaptação a alterações climáticas ou sem defesa contra novas doenças trazidas pelos recém-chegados? Ou terá o Homo sapiens movido uma guerra implacável e sistemática contra o Homo neanderthalensis?

Há quem sugira que o Homo sapiens possuía uma organização social mais harmoniosa e coesa – ou, simplesmente, mais eficaz – e foi, paulatinamente, suplantando neandertais e denisovianos, não pelo recurso à violência (terreno no qual os neandertais teriam vantagem, pelo menos no domínio da força física e endurance) mas por conseguir explorar mais eficientemente os recursos naturais pelo quais competia e conseguir reproduzir-se mais rapidamente. Há também quem sugira que a compleição mais possante dos neandertais, se bem que constituísse uma vantagem no confronto físico directo, podia ser-lhes adversa em períodos de escassez de alimentos, já que o mais franzino Homo sapiens era capaz de sobreviver com menos calorias. A indubitável persistência de genes neandertais e denisovianos nos Homo sapiens modernos pouco ou nada diz sobre a natureza das relações estabelecidas entre as espécies: os híbridos terão nascido de uma atracção mútua entre pares num contexto de coabitação pacífica entre espécies (a hipótese mais “romântica”)? Ou terão sido fruto de uma cultura de conquista e domínio, que dá aos machos triunfantes o direito a servirem-se das fêmeas dos derrotados?

Tal como a paleoantropologia não está hoje em condições de elucidar cabalmente a forma como o Homo sapiens tomou o lugar do Homo neanderthalensis na Eurásia, também é possível que os arqueólogos do futuro fiquem intrigados perante as provas de que, na viragem dos séculos XX/XXI, a relevância da cultura francesa no mundo tenha entrado em declínio acentuado e tenha dado lugar à cultura anglo-saxónica. Portugal é um dos países em que esta mudança de paradigma é evidente: viveu, culturalmente, na órbita de Paris no século XIX e na primeira metade do século XX e, a partir do final do século XX, foi ficando cada vez mais permeável à cultura anglo-saxónica. Esta tendência é evidente no declínio acentuado dos estudantes que escolhem aprender francês face aos que optam pelo inglês e na origem dos livros de não-ficção que são publicados em Portugal, e é particularmente notória no que respeita à origem das obras de divulgação científica que são vertidas para a língua portuguesa.

Pode atribuir-se o avassalador crescimento da influência anglo-saxónica ao facto de os EUA serem uma super-potência em termos de meios de comunicação de massas, produção de conteúdos e investigação & desenvolvimento, ao facto de o estatuto do inglês como língua franca planetária ter sido reforçado pelo desenvolvimento avassalador da World Wide Web. Mas há outra razão poderosa para explicar a proporção minguante de livros de divulgação científica originários de França que são traduzidos em português (e noutras línguas): os académicos franceses de hoje tendem a expressar-se num registo pedante, farfalhudo, confuso, indisciplinado e pouco rigoroso. Talvez um dia uma equipa de sociólogos, linguistas e historiadores da ciência seja capaz de explicar o que levou uma das Pátrias do Iluminismo a converter-se, volvidos dois séculos e meio, no Império da Obscuridade Pomposa.

Poucas obras oferecem prova tão evidente da tendência do académico gaulês para se exprimir de forma arrebicada e caótica como Sapiens face a Sapiens. Não estão em causa as credenciais de Pascal Picq como paleoantropólogo – o que é duvidoso é que ele seja capaz de expor os seus conhecimentos e raciocínios de forma perceptível e consequente. Sapiens face a Sapiens combina uma ambição insensata – sintetizar, num espaço exíguo, centenas de milhares de anos de evolução, cobrindo as mais diversas facetas da Humanidade – com o mais completo desleixo e a mais absoluta falta de consideração pelo leitor. Os franceses, vivendo imersos neste “caldo de cultura”, parecem estar habituados a que um livro seja uma tagarelice ziguezagueante, inconsequente e pedante, pelo que na Amazon.fr o livro tem uma cotação de 4.3 em 5, apurada a partir das opiniões de 93 leitores.

Um dos raros leitores a emitir opinião desfavorável observa que o livro é “demasiado técnico” e emprega “um vocabulário fora do alcance do leitor médio”. Labora num equívoco: a “inacessibilidade” de Sapiens face a Sapiens não decorre do uso de jargão científico nem de requerer que o leitor possua conhecimentos profundos de paleoantropologia, resulta de Picq não saber comunicar ou de, sabendo-o, não estar para se incomodar em estruturar argumentos e elaborar um discurso congruente. Não há uma página de Sapiens face a Sapiens que não tenha pelo menos uma frase ineptamente formulada, pouco rigorosa, enigmática ou tola; as tentativas de “coloquialidade” são um fiasco; as linhas de raciocínio raramente são desenvolvidas até ao fim; temas díspares colidem caoticamente; e pululam afirmações grandiloquentes ou bizarras para as quais o autor não fornece fundamentação.

Como remate deste desleixo generalizado e como é frequente nos livros franceses de divulgação científica, o volume não inclui índice remissivo nem referências bibliográficas. A ausência de índice remissivo pode ser vista como uma admissão implícita de que autor e editor não esperam que passe pela cabeça de algum leitor usar o livro para confirmar uma informação ou refrescar um conceito. É um livro que, uma vez terminado o suplício de o ler, ficará fechado para sempre. Quanto à ausência de referências bibliográficas, seria sempre reprovável num livro de divulgação científica, mas é absolutamente inadmissível num livro que trata temas extremamente complexos e polémicos e que têm estado sujeitos a constante revisão à luz de descobertas arqueológicas e genéticas recentes.

E, todavia, não faltam leitores e críticos que parecem ter ficado muito satisfeitos e enriquecidos com a experiência – seria interessante confrontá-los, parágrafo a parágrafo, para apurar se perceberam e assimilaram alguma coisa do que “leram”.

Em França, Pascal Picq desfruta de prestígio suficiente para que se venda bem qualquer coisa que leve o seu nome na capa, mas no meio editorial anglo-saxónico, um autor, mesmo que credenciado, que submetesse a um editor o manuscrito de Sapiens face a Sapiens, receberia provavelmente uma resposta do tipo: “A colecção de apontamentos soltos que me enviou contém algumas ideias com potencial. Crê que seria capaz de seleccionar as mais relevantes e escrever um livro a partir delas?”.

Para se ter uma ideia de quão remisso e desconexo é esta obra tome-se, entre muitos exemplos possíveis, o trecho que vai das últimas linhas da página 154 às primeiras linhas da 156.

Descrevendo as mudanças decorrentes da transição da caça-recolecção para a agricultura, escreve Picq que “a este aspecto junta-se a propagação das doenças contagiosas ligadas à concentração de habitantes. A selecção infantil encontra-se confrontada com novos factores de selecção, nomeadamente através de escolhas alimentares mais limitadas, sem esquecer o risco de carências”. O primeiro período é claro, mas o segundo, embora permita intuir vagamente do que está Picq a falar (se se estiver por dentro do assunto), é uma amálgama de ideias coladas por uma sintaxe duvidosa.

Prossegue Picq: “Os nossos sistemas genéticos ainda trazem essa marca no que diz respeito a várias alergias, como o favismo, a intolerância às favas”. Picq parece sugerir que as alergias que hoje afligem o homem nasceram quando o homem se tornou agricultor, mas não explica a relação entre os dois fenómenos. E introduz, sem mais explicações, o “favismo”, doença que a esmagadora maioria dos leitores não conhecerá, nem sob esta designação nem com o nome oficial de “deficiência em glucose-6-fosfato desidrogenase, e que está longe de resumir a uma “intolerância às favas”.

As favas desaparecem imediatamente de cena, pois as linhas seguintes tratam, de forma telegráfica e atabalhoada, da exposição dos humanos às doenças dos animais que foram alvo de domesticação na Eurásia neste período. No parágrafo seguinte, muda de continente: “No Novo Mundo, nas Américas [Picq presume que os leitores sabem o que é o “favismo”, mas teme que não saibam o que é o “Novo Mundo”], os maravilhosos agricultores ameríndios [Picq continua a recear que não se perceba que fala da América, pelo que especifica que os agricultores da América são “ameríndios”; não se percebe é porque os classifica de “maravilhosos” – seriam os agricultores chineses ou mesopotâmicos “horrendos”?] domesticaram poucos animais – lama, porquinho-da-índia, vicunha”.

Assim escrito, fica-se com a ideia que os ameríndios não domesticaram mais animais por falta de interesse ou de competência, mas, como Jared Diamond explica no crucial Armas, germes e aço, esta breve lista de domesticações (de que Picq omitiu o peru) resulta de os Homo sapiens que entraram nas Américas há 12.000 anos serem caçadores experientes e extraordinariamente eficazes que se depararam com presas que não estavam preparadas para os enfrentar, pelo que, em escassos milhares de anos, chacinaram praticamente toda a fauna susceptível de domesticação; esta falta de “convívio” com as doenças transmitidas pelo gado bovino e suíno teria consequências trágicas a partir de 1492, quando os ameríndios se viram indefesos perante as doenças de origem bovina e suína trazidas pelos europeus.

No final da página 155, Picq menciona um dos fenómenos mais intrigantes na nossa história evolutiva, que é a redução da volumetria cerebral a partir do final do Paleolítico: o cérebro “dos Sapiens do fim do Paleolítico conta com mais de 1500 centímetros cúbicos, em comparação com os 1340 centímetros cúbicos dos Sapiens actuais. Como se deu esta redução e porquê? É um dos efeitos da co-evolução”. Para a maioria dos leitores, habituada a associar automaticamente volume craniano a inteligência e progresso civilizacional, este dado será surpreendente e contra-intuitivo, pelo que ficará em pulgas para que Picq explique no que terá consistido essa “co-evolução” – porém, quando se vira a página, Picq muda abruptamente de agulhas, passando a dissertar sobre a difusão da mutação que causou o prolongamento da actividade da enzima lactase em humanos adultos, entre povos criadores de gado bovino, ovino e caprino, e não volta a mencionar o fenómeno da redução do volume cerebral até ao fim do livro. Ora, não só esta regressão na inteligência individual (mas não necessariamente da inteligência colectiva) dos Homo sapiens é um dos assuntos mais fascinantes da evolução humana, como a discussão das possíveis razões para ela ter acontecido poderia iluminar o tempo em que vivemos e, em particular, a sensacional afirmação feita por Picq na última página do livro, de que, “mais de metade da Humanidade” entrou em “evolução negativa”. A eventual regressão da humanidade é um assunto sério – um dos mais sérios que é possível imaginar-se – mas, infelizmente, Picq não está disposto a explaná-la ou discuti-la, limita-se a afirmá-la, sem ter o respaldo de dados ou argumentos. Não é de admirar que também não esteja interessado em estabelecer uma associação entre a (eventual) “regressão” da inteligência à entrada para o Neolítico e (postulada) “regressão” da inteligência do dealbar do século XXI.

Apurar se, no nosso tempo, a Humanidade se prepara para ascender a um patamar superior do seu processo evolutivo – dando-nos o ensejo, segundo Yuval Harari, de nos convertermos em semi-deuses – ou se entrou num caminho descendente, como afirma Picq, é um magno debate que extravasa o escopo deste artigo. Mas é impossível não reparar na multiplicação de sintomas de “evolução negativa” e um deles é, ironicamente, que um dos mais destacados intelectuais franceses escreva um emplastro como Sapiens face a Sapiens, que haja editoras disposto a publicá-lo e que leitores, crítica e comunidade académica o louvem quase unanimemente.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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