Encontramos as mesmas figuras alucinadas que, movidas por um desejo de
pureza irreal, se lançam contra as “elites” dissolutas ou corrompidas.
João Pereira Coutinho, via FSP:
A classe trabalhadora está a morrer nos Estados Unidos. Corrijo. Não
está a morrer, está a matar-se. “Mortes de desespero”, eis a expressão
que estudiosos como Anne Case e Angus Deaton pesquisam há vários anos.
Os instrumentos do fim são conhecidos. Armas. Álcool. Drogas. Vale tudo
para acabar com vidas de naufrágio.
Aliás, não apenas a classe trabalhadora. Informa o New York Times, a
partir das pesquisas do casal Case e Deaton, que o cenário é idêntico
para a classe média branca sem formação universitária. O desespero mata
com igual intensidade. E de onde vem esse desespero? Sim, a desigualdade
crescente. Sim, a falta de serviços públicos de saúde. Sim, o
outsourcing industrial que a globalização trouxe no seu rastro.
Se a depressão, como dizia Freud, é a incapacidade de projetarmos um
futuro para nós, há uma parte da América que está coberta por essa nuvem
negra. A violência contra os próprios é uma saída. Outra é acreditar em
políticos redentores que sejam capazes de tornar a América grande outra
vez. Quem não entende o fenômeno populista como um fenômeno
intrinsecamente revolucionário, lamento, passou ao lado dessa história.
O escritor francês Éric Vuillard não passou. Já falei de Vuillard a
propósito do seu A Ordem do Dia, uma novela breve sobre a ascensão de
Hitler ao poder (prêmio Goncourt em 2017). Vuillard é essa estranha
combinação: ensaísta, historiador, romancista. Certo é que essa
literatura “mestiça” transporta uma força meditativa que se ajusta aos
problemas do nosso tempo.
O seu mais recente livro, La Guerre des Pauvres (“A guerra dos
pobres”), confirma o que digo. Superficialmente, o tema que ocupa
Vuillard perde-se na memória do século 16. E a figura central – Thomas
Münzer (1489-1525) – tem interesse para teólogos ou especialistas sobre a
Reforma Protestante. Mas Münzer, aquele rapaz que viu o pai ser
enforcado pelas autoridades feudais germânicas (curioso: Lênin, que
admirava Münzer, também ficou indelevelmente marcado quando jovem ao
testemunhar a execução do irmão pelas autoridades do czar), chamou a si
uma tarefa radical: convocar os miseráveis para um ajuste de contas com
os príncipes.
Nas palavras de Éric Vuillard, Münzer sentia “uma sede de pureza”,
uma intolerância face à “imundície” do poder, uma exasperação face ao
“gentil povo cristão” que, pela sua passividade, se limitava a repetir
os versículos em latim sem compreender o que dizia. A Bíblia deveria ser
vertida na língua vulgar; o conhecimento deveria ser extensível aos
maltrapilhos; e a eles deveria ser confiada a espada para punir os
enganadores de Cristo.
A violência foi a etapa seguinte. Exércitos de gente pobre destrói e
saqueia as cidades e os seus palácios. Cabeças rolam, cabeças são
expostas em piques. Mas tudo termina em Frankenhausen, na batalha do
mesmo nome, quando as forças militares de Philip de Hesse e de George da
Saxônia massacram os camponeses. Münzer seria capturado e teria o mesmo
destino do pai.
Na pequena e preciosa obra de Vuillard, Münzer não é apenas
apresentado como um revolucionário protestante, interessado em salvar os
espíritos pela força da fé e da espada. Ele ocupa um lugar primeiro na
longa lista de revolucionários políticos que tiveram na Revolução
Francesa o seu apogeu. Mas não só. Vuillard vê nas guerras dos
camponeses do século 16 o espírito que preside a muitas das rebeliões
populistas do nosso presente.
Encontramos as mesmas figuras alucinadas que, movidas por um desejo
de pureza irreal, se lançam contra as “elites” dissolutas ou
corrompidas. Encontramos o mesmo ódio ao “velho discurso” das elites,
com a diferença de que, agora, não é o conhecimento bíblico que deve ser
democratizado; é todo o tipo de conhecimento, vertido no caos moral e
epistemológico da internet. Encontramos o mesmo apelo ao “verdadeiro
povo”, por oposição a um povo falso ou vendido, que não merece
sobreviver no novo reino dos justos. E encontraremos a mesma destruição
desencantada, os mesmos exércitos de seguidores atraiçoados e os mesmos
salvadores reduzidos à condição paradoxal de homens “frágeis e
violentos”, “inconstantes e severos”, “enérgicos e repletos de
angústia”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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