Reportagem de Renan Barbosa para a Gazeta do Povo:
Anunciada nesta quarta-feira (25), a decisão do Facebook de retirar do ar 196 páginas e 87 perfis
de sua plataforma levantou a discussão sobre a possibilidade e os
limites da intervenção do Estado nas atividades de empresas,
especialmente nas gigantes da internet. O tema desperta ainda mais
dúvidas do que certezas, na medida em que estudiosos de todo o mundo
começam - a bem da verdade - a tatear um velho problema nas roupas novas
do mundo digital.
No Brasil, a ação do Facebook, inédita em sua abrangência, gerou críticasde liberais e conservadores, que consideraram a medida uma forma de censura. O Ministério Público Federal (MPF) também reagiu, cobrando explicações da plataforma,
e deu prazo que se esgota no final da tarde desta sexta-feira (27) para
que a rede social envie a relação de todas as páginas e perfis
removidos e a justificativa para a exclusão de cada um.
“As normas
constitucionais e legais que regulam a internet no Brasil atuam sempre
com vistas à liberdade de expressão, ao direito de acesso de todos à
informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na
condução dos assuntos públicos; e a impedir a censura, bem como a
discriminação dos usuários, por motivo de origem, raça, sexo, cor,
idade, orientação política, entre outros, competindo ao MPF atuar nesse
sentido”, escreveu o procurador Ailton Benedito, do MPF de Goiás, para
justificar sua atuação.
A confusão começou
com o próprio anúncio do Facebook, em comunicado oficial assinado por
seu líder de Cibersegurança, Nathaniel Gleicher, que afirmou que os
perfis excluídos formavam uma “rede coordenada” que “escondia das
pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar
divisão e espalhar desinformação”, sem explicar o que seriam “divisão” e
“desinformação”. Quem primeiro fez referência à rede de perfis ser
ligada ao Movimento Brasil Livre (MBL), um dos principais apoiadores do
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, foi a reportagem da
Agência Reuters, que revelou o caso.
No comunicado, o
Facebook faz referência ainda ao item 17 da Parte IV de seus Termos da
Comunidade, uma espécie de convenção de condomínio da rede social: “A
autenticidade é o pilar de nossa comunidade. Acreditamos que as pessoas
se responsabilizam mais pelo que dizem e fazem quando usam identidades
genuínas. É por isso que exigimos que as pessoas se conectem ao Facebook
com o nome real. Nossas políticas de autenticidade têm a intenção de
criar um ambiente seguro em que as pessoas possam confiar e se
responsabilizar mutuamente”. Manter múltiplas contas ou compartilhar a
conta com terceiros é um caso de infração desta regra, segundo as normas
da plataforma.
De com o Facebook, a
violação da regra de autenticidade gera a exclusão de contas e páginas.
Por sua vez, de acordo com o item 18, a disseminação confirmada de
notícias falsas - o que deve ser averiguado pelas agências de checagem
parceiras do Facebook no projeto anunciado em maio no Brasil e que já se
estende a 17 países - gera apenas a redução do alcance das postagens.
Quantas das páginas que saíram do ar disseminam notícias falsas, ainda é
um mistério, porque a plataforma não divulgou a lista de todas as
afetadas.
O Facebook costuma
argumentar que não divulga com detalhes os procedimentos de investigação
interna para que os usuários da rede não aprendam a burlar os esforços
da plataforma.
Liberdade e interesse público
O inferno astral pelo
qual tem passado o Facebook desde 2016 levanta cada vez mais a
discussão sobre uma regulação da atividade dos gigantes da internet – e
incentiva a plataforma a tomar a dianteira para não ser atropelada por
políticos e agências reguladoras. Em um vídeo institucional de
divulgação de seus esforços para combater notícias falsas, o Facebook
mesmo destaca uma fala da senadora democrata Dianne Feinstein que resume
tudo. Em audiência do Comitê de Inteligência do Senado dos Estados
Unidos, em novembro do ano passado, que discutiu a influência da Rússia
nas eleições presidenciais de 2016, a senadora avisou: “Vocês criaram
essas plataformas e agora elas estão sendo mal utilizadas. São vocês que
têm de fazer algo sobre isso – ou nós iremos fazer”.
Paulo José Araújo da
Cunha, professor do Departamento de Jornalismo da UnB, acredita que a
decisão do Facebook veio em boa hora para barrar o impacto de
informações falsas. “Pela própria natureza dessas informações e da forma
como são distribuídas, a velocidade de divulgação é extremamente
superior à dos ritos processuais da justiça brasileira”, afirma. "Espero
que o Facebook tenha equilíbrio suficiente para realizar esse movimento
em relação a todos os movimentos e matizes ideológicos. Sabemos que
existem os movimentos de fake news de esquerda, e eles merecem punição
da mesma forma", opina.
Esse equilíbrio não é
simples e especialistas em direito digital e políticas públicas estão
apenas começando a tatear o desafio, mesmo nos Estados Unidos. A
princípio, por ser uma empresa privada, deve-se evitar a interferência
indevida do Estado nas atividades do Facebook. Também é preciso observar
que os usuários concordam com uma série de cláusulas quando assentem
aos termos de uso. Se a plataforma prevê uma série de regras – como a
proibição do terrorismo, do anonimato, da pedofilia e de discursos de
ódio – cuja infração deliberada pode resultar na exclusão de páginas e
perfis, a ação desta quarta-feira estaria, a princípio, protegida pela
autonomia da empresa.
“As relações entre o
Facebook e seus usuários são relações entre agentes privados”, destaca
Jacqueline Abreu, advogada especialista em direito digital e doutoranda
pela USP. “É claro que essas plataformas podem ouvir demandas para
melhorar seus procedimentos, como aumentar a transparência e criar
mecanismos de recursos contra suas decisões, e elas podem inclusive
incorporar essas demandas, mas a regra geral nesse caso ainda é aquela
que se aplica nas relações entre agentes privados”, afirma.
Se a regra é geral, o
que muitos estudiosos têm tentado equacionar são as exceções. Com a
dimensão que tomou, o Facebook adquiriu um potencial de impacto sobre o
bem comum bem maior do que o escopo puramente empresarial de suas
atividades. Hoje em dia, um sem-número de discussões políticas bem mais
amplas do que a mera disputa eleitoral acontece no Facebook, de modo que
a qualidade do espaço público se confunde, em alguma medida, com a
qualidade da esfera digital sustentada pela plataforma.
Desse ponto de vista,
é positivo que o Facebook tome a dianteira e, em colaboração com a
sociedade civil, tente conceber soluções para melhorar a qualidade dessa
esfera digital, sem que o Estado precise intervir com mão pesada. Nesse
contexto, a questão é saber se, com essas ações, o Facebook não estaria
atingindo direitos dos usuários e, assim, contrariando outras dimensões
do interesse público.
Luca Belli,
pesquisador do Centro de Teconlogia e Sociedade (CTS) da FGV-Rio e
organizador do livro “Termos de Uso e Direitos Humanos”, considera que
plataformas que oferecem serviços que tenham se tornado essenciais para o
exercício de direitos fundamentais - como a liberdade de expressão -
deveriam retirar do ar apenas os conteúdos que contrariem os limites
legais de um país. “Qualquer mecanismo de remoção de conteúdo deveria
estar claramente explicado e oferecer a possibilidade de recurso em face
da decisão”, afirma ainda.
“O Estado deveria
definir princípios que as plataformas deveriam seguir na sua avaliação
de qual conteúdo é ‘questionável’. Assim, os princípios seriam definidos
pelo Estado e implementados pelo setor privado no âmbito de uma
co-regulação”, sugere.
“A ponderação dos
limites à liberdade de expressão é uma atividade própria dos juízes,
portanto tal atividade não deve ser integralmente delegada a plataformas
privadas, cujo principal interesse não é a maximização dos direitos
humanos dos usuários mas a maximização dos benefícios - e minimização
dos custos - da plataforma mesma. Assim, devemos sempre lembrar que o
objetivo das plataformas é definição do mecanismo mais rápido e
econômico; não é a definição do mecanismo mais justo”, diz.
Para Francisco Brito
Cruz, diretor do centro de pesquisas InternetLab, a ação do Facebook
contra a rede de páginas supostamente ligadas ao MBL não foge aos
padrões de transparência da empresa, que já tomou decisões de eliminar
páginas da plataforma sem entrar em pormenores nas justificativas. “Mas
quando o Facebook começa a tomar decisões que impactam grupos políticos
relevantes, como o MBL, e quando esses impactos são impactos políticos
importantes, o Facebook precisa ter em mente que a legitimidade da sua
decisão é proporcional ao quanto de transparência e accountability eles
conseguem dar à decisão”, afirma Brito Cruz.
Quando se pensam nos
parâmetros que o Facebook deveria seguir ao aplicar seus termos de uso e
se esses parâmetros deveriam observar garantias legais – como o devido
processo legal e o direito ao contraditório, por exemplo – existe um
desafio adicional: as garantias de qual país? “A internet desafia
jurisdições, e o Facebook é uma empresa que aplica políticas
globalmente. Quais regras serão aplicadas, as do Brasil ou dos Estados
Unidos?”, questiona Brito Cruz.
Para o diretor do
InternetLab, como o Facebook é uma ferramenta que depende de seus
usuários, a empresa terá de se equilibrar entre todas essas demandas,
por vezes contraditórias. “O Facebook se parece muito com um Estado no
momento em que toma decisões de interesse público. Da mesma maneira que,
quando o Estado toma essas decisões, precisa se justificar, porque
assim constrói a legitimidade de suas decisões, esses mecanismos de
prestação de contas de contas, transparência e accountability também são
a única salvação para o Facebook ”, opina.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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