No centro, o valente Puigdemont, que fugiu para a Bélgica. |
Alberto Gonçalves, demolidor: "A primeira e última vez que escrevo sobre a Catalunha", artigo semanal publicado no Observador. Corrosivo: "o problema
não é a questão da independência, já que para mim a Catalunha poderia
decretar a secessão face à península, ao continente e ao próprio
planeta. O problema – se a palavra não é excessiva – é que os argumentos
da independência são ridículos, dado pressuporem uma pureza 'étnica',
uma vontade geral e uma tirania de Madrid que só alucinados detectam":
Segundo a lenda
familiar, estreei-me em Espanha com quinze dias de idade. Desde então,
voltei lá com tanta frequência que nem reparo quando isso acontece. Por
facilidade geográfica, vou a Espanha dezenas de vezes por ano, jantar,
encher o depósito do carro, comprar calças, assistir a um concerto,
cumprir a escala de um voo, etc. A “minha” Espanha é sobretudo Castela,
com raras incursões pela Galiza e Extremadura e raríssimos desvios pelo
País Basco, Andaluzia e Canárias. Acresce que a “minha” Espanha tem
limites. Ou um limite: a Catalunha. É do conhecimento de sete leitores
desta coluna que nunca visitei a Catalunha e, principalmente, nunca me
ocorreu visitar a Catalunha. Porque fica à desamão. Porque não aprecio
os gatafunhos do Miró. Porque, ao invés de quase toda a gente, em viagem
sou um turista e não desejo receber o tratamento que os catalães
dedicam aos turistas. Porque tendo a antipatizar com o tipo de
indivíduos que se entusiasmam com as “ramblas” de Barcelona ou lá o que
é. Porque os indígenas falam um dialecto similar ao do dr. Costa. Porque
me apetece torturar barbaramente os jornalistas que, a fim de exibir
familiaridade “local”, repetem “mossos de esquadra” frase sim, frase
não. Porque não.
Sucede que, nas
últimas semanas, o destino resolveu pôr à prova o meu desinteresse pela
Catalunha. Era como se a enxurrada de notícias sobre a região
pretendesse exclusivamente atrair-me para a dita. Nas entrelinhas das
incontáveis “reportagens” e “análises” a propósito, o universo parecia
sussurrar-me: “Vês o quanto a Catalunha é fascinante?” Se apostou que eu
corrigiria a atitude, o universo perdeu. No máximo, conseguiu fazer com
que a Catalunha descesse uns degraus no meu “ranking” privativo de
paragens a evitar, situando-se hoje entre Islamabad, as colónias de
leprosos na Índia e Oliveira do Hospital durante o acampamento do BE.
O problema não é a
questão da independência, já que para mim a Catalunha poderia decretar a
secessão face à península, ao continente e ao próprio planeta. O
problema – se a palavra não é excessiva – é que os argumentos da
independência são ridículos, dado pressuporem uma pureza “étnica”, uma
vontade geral e uma tirania de Madrid que só alucinados detectam. O
problema é que as consequências da independência seriam uma calamidade,
quer ao abrir escusadíssimas feridas, quer ao afugentar do território a
exacta riqueza que os heróicos catalães recusam partilhar. O problema é
que o cabeça (ou o penteado) da independência é material de anedotas, um
valente que ao primeiro percalço se retira estrategicamente para
dirigir a resistência a partir de Bruxelas. O problema é que os partidos
que apoiam a independência são abrigo de evidentes demagogos, que se
promovem à custa da crendice dos simples. O problema é que as criaturas
que por cá defendem a independência constituem uma amostra
representativa da demência humana, campeões da autodeterminação dos
povos contanto que os povos se determinem de acordo com os apetites
deles. Além disso, a História lembra que as emancipações perante Espanha
costumam correr impecavelmente: para meninos mimados a fingir
maioridade, chegou-nos, e sobrou-nos, D. Afonso. De seguida foi sempre a
descer até chegar aos penosos dias presentes, cujo expoente talvez
sejam as homilias do franciscano Louçã na televisão, nos jornais, na
rádio e na cassete pirata.
Contas feitas, a
conversa da independência da Catalunha serve de uma única coisa:
exemplo. Veja-se o meu. Enquanto cidadão português, sinto-me vítima de:
a) opressão (o fisco confisca-me boa parte dos rendimentos para
financiar delírios sortidos); b) colonialismo (sou forçado a renunciar a
remotas tradições, leia-se não sustentar parasitas, em prol de hábitos
esquisitos, importados de Moscovo, do Largo do Rato ou do Chapitô); c)
discriminação (as forças ocupantes privilegiam colaboracionistas na hora
de repartir o saque) e d) etc.
É hora de dizer basta
(está dito). É também hora de me declarar independente de Portugal, ou
pelo menos da parcela de Portugal que apanha com as Irmãs Mortágua em
cima e, em lugar de mudar apavorada de canal, comenta: “O pensamento
destas raparigas denota considerável razoabilidade…”. À semelhança do
circo catalão, este é um exercício unilateral. Mas, ao contrário dos
“mossos”, os de esquadra e os que deviam dormir nela, eu sozinho sou uma
população culturalmente coesa, parlamentarmente unânime, socialmente
pacífica, racialmente harmoniosa, religiosamente pura, ideologicamente
digna e, salvo violência extrema, estruturalmente indivisível. A
propósito de auto-determinação dos povos, tudo em mim se encontra
bastante determinado a viver à revelia do jugo lusitano, incluindo, ou
especialmente, dos respectivos políticos, legisladores, senadores,
aduladores, impostores e arredores. De brinde, fiquem (por favor) com o
hino e a bandeira: em cinco minutos arranjo melhor.
Caso, conforme é
previsível, os defensores de certas independências não se conformem com a
minha, sigo para o exílio. Depois, se me apetecer discursar às massas,
revelo o endereço. Mas, enfim livre ou ainda reprimido, há um sítio onde
escusam de procurar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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