Há algo de muito errado quando se normaliza uma situação em que a polícia morre tanto e mata tanto. Os brasileiros deveríamos ficar chocados em saber que tantos profissionais cujo trabalho é garantir a nossa segurança como cidadãos sejam vítimas de assassinato. Diogo Schelp para a Gazeta do Povo:
Vidas
brasileiras importam. Dependendo do contexto em que se faz essa
afirmação, há quem sinta um incômodo ou, no mínimo, uma sensação de
indiferença. Vidas brasileiras deveriam importar, mas em algumas
situações os brasileiros não se importam com elas. Nossa sociedade
normalizou as mortes que acontecem em determinadas circunstâncias,
perdendo a sensibilidade a elas. Em outras, parecemos o povo mais
solidário e indignado do mundo.
O
policial civil André Leonardo de Mello Frias, de 48 anos, foi
assassinado com um tiro na cabeça enquanto tentava afastar uma barricada
instalada por traficantes na entrada da favela do Jacarezinho, no Rio
de Janeiro, durante a Operação Exceptis, na quinta-feira (6). Frias
deixou esposa, enteado e uma mãe que vivia há três anos acamada após
sofrer um AVC. O filho é quem a sustentava e cuidava dela.
O
Brasil é frequentemente apontado como o país em que mais morrem
policiais assassinados. Em 2020, 198 agentes civis ou militares foram
mortos em serviço ou de folga, um aumento de 10% em relação a 2019,
segundo levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública.
O
Brasil também é considerado o país com a maior letalidade policial do
mundo. Em 2020, segundo o mesmo estudo, 5.660 brasileiros foram mortos
por policiais, uma redução de 3% em relação a 2019. Os números do Rio de
Janeiro costumam ditar a tendência nacional, e os dados de 2021 até
agora indicam um ano com nova alta na letalidade policial.
Só
na operação no Jacarezinho, foram 28 mortos pela ação policial. Ainda é
preciso investigar como essas mortes ocorreram; se houve, de fato,
execução sumária de suspeitos desarmados, segundo algumas denúncias.
Podem ser "todos bandidos", como afirmou o vice-presidente Hamilton
Mourão, ou podem não ser. Mas esse não é o ponto.
Há
algo de muito errado quando se normaliza uma situação em que a polícia
morre tanto e mata tanto. Os brasileiros deveríamos ficar chocados em
saber que tantos profissionais cujo trabalho é garantir a nossa
segurança como cidadãos sejam vítimas de assassinato. Muitos ficam,
muitos lamentam as mortes de policiais — mas nem todos.
Deveríamos
ficar chocados também quando uma operação policial, cuja finalidade
deveria ser prender suspeitos e levá-los à Justiça, acaba em tantas
mortes. Uma operação que resulta na perda da vida de um policial e de 28
suspeitos, além de dois civis feridos no metrô que passa perto da
favela, não pode ser considerada bem sucedida.
Todos
os brasileiros merecem um julgamento justo, mesmo os bandidos, mesmo os
assassinos. É a lei. Se não for assim, vivemos na barbárie.
As
mortes de policiais e as mortes causadas por policiais foram
normalizadas em nosso país. Mas a nossa insensibilidade coletiva para
mortes em massa ocorre também em outros contextos.
O
trânsito brasileiro é um dos mais violentos do mundo. Em 2019, mais de
30.000 brasileiros perderam suas vidas em acidentes nas ruas e rodovias
do país. O número vem caindo lentamente ano a ano, mas continua sendo
uma enormidade. Temos um dos piores índices de óbitos por 100.000
habitantes, menor apenas do que o de países como Malásia e África do
Sul.
Já
tivemos anos em que o número de mortes no trânsito foi maior do que o
de homicídios. Os brasileiros sofrem individualmente quando acidentes de
trânsito vitimizam parentes e amigos, mas, coletivamente, têm
dificuldade de assumir a responsabilidade pela tragédia diária em nosso
sistema viário — desrespeitando faixas de pedestre, limites de
velocidade e outras regras criadas justamente para salvar vidas.
Normalizamos
as mortes no trânsito e nos tornamos parte do problema. Ou somos parte
do problema e por isso normalizamos as mortes?
Agora
ocorre o mesmo com a pandemia do novo coronavírus, que está ceifando
vidas de brasileiras de tal forma que, este ano, chegamos a ter mais
óbitos do que nascimentos nos piores momentos da crise sanitária. E,
pela primeira vez desde 1940, registraremos uma redução na expectativa
de vida ao nascer.
Há
quem tente minimizar a tragédia da covid-19 dizendo que os brasileiros
seguem morrendo de outras causas. Trata-se de uma tentativa de
normalizar o aumento extraordinário no total de vidas brasileiras
desperdiçadas na pandemia.
Só
nos dois primeiros meses deste ano, foram registradas quase 20% mais
mortes no Brasil, por todas as causas, do que no mesmo período de 2020,
quando a covid ainda não havia matado ninguém no país. Entre 2019 e
2020, aumento de mortes nesses dois meses havia sido de apenas 1,4%.
Ou
seja, a covid-19 está sendo incorporada às nossas tragédias nacionais
crônicas, às quais já nos tornamos coletivamente insensíveis, junto com
as mortes no trânsito e com as mortes de e por policiais.
Não
somos um povo insensível à morte. Ao contrário, somos muito solidários e
ficamos horrorizados quando um padrasto mata sob tortura uma criança
indefesa, quando um psicopata entra numa creche e assassina bebês e
professoras a sangue frio com um facão, quando moradores e turistas são
soterrados pelo rompimento de uma barragem de uma mineradora ou quando
centenas de jovens morrem queimados em uma boate.
Mas
há um processo de embrutecimento da alma nacional quando um fenômeno
letal se perpetua, se torna diário, depois mensal, depois anual.
Nesses casos, acabamos normalizando a morte em massa. Nesses casos, é como se as vidas brasileiras não importassem.
BLOG ORLANDO TAMBOSIO
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